Opinião

Por que não fazemos bons planos diretores no Brasil?

Autor

  • Vinícius Monte Custodio

    é doutor em Direito Econômico e Economia Política pela Universidade de São Paulo mestre em Direito Urbanístico e Direito Ambiental pela Universidade de Coimbra e advogado.

7 de novembro de 2023, 6h30

De acordo com a Constituição de 1988, o plano diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbanos, sendo obrigatório para os municípios com mais de 20 mil habitantes e devendo ser aprovado pela Câmara Municipal. Ainda segundo a CR, cabe a esse instrumento expressar as exigências fundamentais de ordenação da cidade a que a propriedade urbana deve atender para cumprir sua função social.

Expressar as exigências fundamentais de ordenação da cidade, como o próprio nome evidencia, significa dizer que o plano diretor não deve ser uma mera carta de boas intenções. Antes, ele há de regular efetivamente as relações sociais que atuam sobre o espaço visando a sua edificação, mais especificamente o uso, o parcelamento e a ocupação do solo.

Por sua vez, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001 — ECi), lei federal que estabeleceu as diretrizes gerais da política urbana, densificando o capítulo da política urbana da CR, trouxe algumas importantes disposições sobre o plano diretor, tais como a circunscrição de sua abrangência espacial ao território do município como um todo e o dever de o poder público revisá-lo, no mínimo, a cada dez anos.

Diversamente do ECi, o plano diretor não é uma lei de sistematização do planejamento urbanístico, ao menos não deveria ser. Seu papel não é suplementar as legislações urbanísticas federal e estadual, mas realizar o planejamento urbanístico propriamente dito. Os planos urbanísticos, e o plano diretor em particular, hão de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Enquanto lei que é, o plano diretor deve limitar-se a materializar juridicamente as decisões tomadas no planejamento municipal.

A diferença é que, enquanto planos urbanísticos são caracterizados em especial por sua coesão dinâmica, leis de sistematização do planejamento urbanístico, como o ECi, são caracterizadas por sua coesão estática. Numa perspectiva diacrônica, a coesão dinâmica significa que o objeto de aplicação dos planos urbanísticos (a realidade urbana) é alterado à medida que eles são aplicados, causando sua progressiva desatualização e necessidade de revisão. E numa perspectiva sinérgica, a coesão dinâmica significa que a eficácia dos planos urbanísticos, bem assim a essência do fenômeno urbanístico, decorre somente (ou sobretudo) de grupos complexos e coerentes de normas, e não de normas isoladamente consideradas. Por outro lado, o objeto de leis como o ECi não se altera à medida que elas são aplicadas nem sua eficácia é necessariamente comprometida quando consideradas de modo isolado.

Tanto isso é verdade que, ao consagrar a gestão democrática da cidade como diretriz da política urbana, consistente no direito de a população e as associações representativas dos vários segmentos da comunidade de participarem na formulação, execução e acompanhamentos do planejamento municipal, o ECi limitou essa participação aos planos, programas e projetos urbanísticos.

O que se observa, no entanto, é que os planos diretores, em grande medida, funcionam tais quais leis de sistematização do planejamento urbanístico. Em vez de efetivamente planejarem o território municipal, perdem-se em tarefas que lhes são estranhas, como a classificação de zonas, o desenvolvimento do regime jurídico de instrumentos jurídicos, a instituição de fundos municipais etc.

Planos diretores não têm de definir, por exemplo, o que é zona residencial, suas eventuais subdivisões nem quais usos são conformes, desconformes ou tolerados nela. Partindo de uma prévia definição dada por leis de sistematização do planejamento urbanístico, a missão do plano diretor, ao revés, é simplesmente determinar, em procedimento participativo com a população, quais frações do território devem ser zonas residenciais. O zoneamento abstrato (premissa maior) e as consequências jurídicas (conclusão) de cada zona são fixadas por aquelas leis, ao passo que o plano diretor fixa o zoneamento concreto (premissa menor).

Da mesma forma, a título ilustrativo, planos diretores não precisam desenvolver o regime jurídico de operações urbanas consorciadas, ditando o conteúdo mínimo das leis municipais específicas que as instituírem, a forma de aplicação dos recursos auferidos nas operações, o procedimento para a emissão de certificados de potencial adicional de construção, entre outras questões. Todos esses temas fogem do propósito de um plano diretor, pois são aspectos estáticos do planejamento urbanístico, que independem da situação do território municipal. O que o plano diretor há de fazer em relação às operações urbanas consorciadas é indicar, se for o caso, de modo relativamente genérico, as áreas que lei municipal específica poderá delimitar para sua aplicação.

Essa miopia do poder público faz com que os debates, audiências e consultas públicas de planos diretores padeçam de um desvio produtivo que sequestra tempo de discussão de questões que estão verdadeiramente relacionadas com o bem-estar dos habitantes da cidade para tratar de assuntos meramente técnicos. Isso torna a participação dos reais interessados no plano diretor desinteressante e distante, frustrando a gestão democrática da cidade. Além disso, em vez de serem instrumentos de planejamento formatados para certo município, os planos diretores se tornam leis genéricas que, com uma mudança aqui e outra ali, poderiam ser transplantados para qualquer outro município. Daí a grande sensação de que muitos planos diretores são cópias uns dos outros.

Um efeito bastante palpável desse equívoco conceitual é a (falsa) necessidade de separação o plano diretor das leis de uso, parcelamento e ocupação do solo urbano. Não existe qualquer dúvida de que o planejamento do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano sejam exigências fundamentais de ordenação de uma cidade. Sendo assim, por que editar mais de uma lei para dispor sobre esses assuntos se o próprio plano diretor poderia (e deveria) contemplá-los? Do ponto de vista da eficiência do poder público, isso é absolutamente injustificável.

O município de São Paulo, por exemplo, tem um plano diretor (Lei nº 16.050/2014, recentemente revisada pela Lei nº 17.975/2023) e a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei nº 16.402/2016).

No caso do município do Rio de Janeiro a situação é pior: só existe o plano diretor (Lei Complementar nº 111/2011), pois a Lei de Parcelamento do Solo Urbano (inicialmente o Projeto de Lei Complementar nº 29/2013 e depois o Projeto de Lei Complementar nº 56/2018) e a Lei de Uso e Ocupação do Solo (inicialmente o Projeto de Lei Complementar nº 33/2013 e depois o Projeto de Lei Complementar nº 57/2018) nunca foram votadas pela Câmara Municipal. Na prática, o uso, o parcelamento e ocupação do solo da capital fluminense continuam regidos pelo Decreto nº 322/1976, e pelo Decreto nº 3.046/1981 (Zona Especial 5 do Plano Piloto da Baixada de Jacarepaguá), como se nada houvesse mudado em quase meio século na cidade.

Felizmente, o novo plano diretor carioca, que está prestes a ser votado pelo Legislativo, seguiu o bom exemplo de Belo Horizonte (Lei nº 11.181/2019) e unificou os regimes jurídicos numa única lei (Projeto de Lei Complementar nº 44/2021), embora ainda incorrendo nos mesmos vícios do plano diretor belo-horizontino, que tem pretensões de sistematização do planejamento urbanístico, em vez de apenas planejar o município.

Outro ponto em que os planos diretores no Brasil pecam bastante é quanto ao entendimento do alcance da política urbana. A política urbana é uma política setorial, assim como o são as políticas agrária, de energia, de recursos hídricos, de resíduos sólidos, de segurança pública, de transportes etc., cujo objeto é o planejamento e o controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo para fins de edificação. Portanto, o plano diretor é um instrumento de planejamento de natureza físico-territorial, sendo impertinente veicular nele diretrizes, e.g., de educação, esportes, saneamento básico, saúde, a menos que tais normas estejam voltadas à regulação da distribuição de equipamentos públicos no município. Do contrário, essas diretrizes estarão mais bem entregues aos setores e instrumentos competentes, como os planos municipais de saneamento básico, previstos na Lei nº 11.445/2007.

Por fim, raros são os planos diretores que estabelecem a programação do desenvolvimento urbano, o que se constata pela completa ausência de metas quantitativas e geográficas. Não basta ao plano diretor, por exemplo, prescrever a redução do déficit de moradias populares como objetivo da política urbana se isso não for acompanhado de metas de unidades habitacionais de interesse social a serem geradas (por construção de novos imóveis, reconversão de imóveis comerciais, desapropriação, por arrecadação de bens vagos etc.) em determinada área do município. Se os planos diretores não estabelecem programas, as leis orçamentárias, que devem seguir as diretrizes e prioridades contidas naqueles, ficam desconectadas dos objetivos da política urbana e estes, por sua vez, viram somente figura de retórica. Além disso, sem o estabelecimento de programas urbanísticos, os projetos urbanísticos da administração pública municipal perdem ancoragem no plano diretor, funcionando solipsística e aleatoriamente, ao sabor dos sentimentos momentâneos. O resultado final é que a cidade acaba por se desenvolver à revelia do plano diretor, e não em orientada por ele.

Autores

  • é advogado, mestre em Direito Urbanístico e Direito Ambiental pela Universidade de Coimbra e doutorando em Direito Econômico e Economia Política na Universidade de São Paulo.

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