Opinião

Os 32 anos da Lei de Locações Urbanas e os novos desafios digitais

Autor

  • Rodrigo Elian Sanchez

    é advogado sócio fundador do escritório Rodrigo Elian Sanchez Advogados especialista em Processo Civil pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e mestre em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

    View all posts

3 de novembro de 2023, 9h15

Celebrada como uma legislação que buscou o desenvolvimento social e a proteção às atividades produtivas, rompendo com a visão única de proteção do inquilino, a Lei Federal nº 8.245/91 — conhecida como Lei de Locações Urbanas — acaba de completar 32 anos em meio a novos debates, frutos de um novo mundo interconectado e com uma ampla discussão que já chegou aos tribunais superiores do Brasil sobre as chamadas locações de curtos períodos, introduzidas pelas novas plataformas digitais.

Instituída com o objetivo de consolidar as regras nacionais em relação a locação de imóveis urbanos destinados a uso residencial ou comercial, assim como os procedimentos relacionados às locações, como o despejo, ação renovatória ou revisional de locação, a Lei Federal nº 8.245/91 trouxe à sua época um espírito modernizador que, entre outras mudanças, possibilitou a livre pactuação do índice de reajuste (artigo 18).

Promulgado em outubro de 1991, o novo diploma revogou as normas legais anteriores, especialmente a antiga lei do inquilinato (Lei n° 6.649, de 16 de maio de 1979), o Decreto nº 24.150 de 20 de abril de 1934 (conhecido como "Lei das Luvas"), que disciplinava as condições e processo de renovação  dos contratos de locação de imóveis destinados a fins comerciais ou industriais, bem como a Lei no 6.239, de 19 de agosto de 1975, que disciplinava as ações de despejo de hospitais, unidades sanitárias oficiais, estabelecimentos de saúde e ensino.

Este espírito modernizador também possibilitou a revogação da antiga Lei nº 6.698, de 10 de outubro de 1979, que restringia a autonomia das partes em relação ao índice de reajuste do aluguel nas locações residenciais, que era então limitado à variação do valor nominal da Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN).

Com a entrada em vigor da Lei 8.245 e a possibilidade de livre ajuste do índice de reajuste, o "mercado" consagrou o IGP-M como o índice mais utilizado para locações imobiliárias. A supremacia teve seu fim, com a crise do coronavírus, em que o IGP-M, por ter como principal componente o Índice de Preços ao Produtor Amplo (IPA) [1], se descolou da realidade inflacionária[2], especialmente daquela do mercado imobiliário, tendo sido em grande parte sido substituído, em negociações ou por medidas judiciais, pelo IPC-A.

A Fundação Getúlio Vargas, que calcula e divulga mensalmente o IGP-M, ao verificar que ele se tornou inadequado para o reajuste de aluguéis, desenvolveu o Índice de Variação de Aluguéis Residenciais (Ivar). O índice foi "lançado" em janeiro de 2022 e não se sabe ainda se irá efetivamente "pegar".

Em todo caso, a movimentação natural em busca do melhor índice é um exemplo de sucesso da Lei 8.245/91 que não buscou "dirigir" detalhes econômicos e financeiros dos contratos de locação.

A Lei 8.245/91 pode ser elogiada em vários aspectos, como por ter trazido regramento para locações em shopping centers (artigo 54) e por ter dado tratamento sistemático à questão do inquilinato urbano, em nítida vantagem sobre o sistema anterior, multifacetado e de difícil compreensão.

Se a legislação anterior à Lei 8.245/91 tinha nítido aspecto protecionista, visando proteger o locatário, visto como a parte mais fraca da relação contratual, a Lei 8.245/91 buscou suavizar tal aspecto [3].

Ao longo dos anos, o texto legal sofreu importantes reformas, especialmente em 2009 (Lei nº 12.112, de 2009) e em 2012 (Lei nº 12.744, de 2012), sendo que a primeira trouxe novos mecanismos para tornar mais célere o despejo do locatário inadimplente, e a segunda disciplinou o "built to suit" (contrato atípico misto).

Apesar de ter dado importante passo para sair da dicotomia entre "proteger a propriedade privada" ou "proteger o inquilino", o texto legal ainda carrega forte traço de dirigismo estatal, com base na premissa da supremacia do interesse publico sobre a vontade dos contratantes, compreendida em matéria de locação urbana, como questão fundamental de organização urbanística e social.

São exemplos deste dirigismo a proibição: (1) da exigência de mais de uma garantia pelo locador (artigo 37); (2) de exigir o pagamento do aluguel antecipadamente, caso tenha sido oferecida garantia à locação; a impossibilidade de o valor da sublocação ser superior ao da locação (artigo 43); (3) de cláusulas que visem a elidir o direito à renovação prevista no artigo 51, ou que restrinjam a prorrogação da vigência contratual da locação residencial prevista no artigo 47 [4].

Inovação no mercado imobiliário
Por outro lado, desde a promulgação da Lei nº 8.245/91, o mercado imobiliário sofreu grandes alterações, sendo a mais recente o surgimento das locações de curtos períodos, introduzidas pelas plataformas digitais.

Inicialmente, alguns defenderam que o artigo 48 da Lei 8.245/91 que regula a locação por temporada, destinada para lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão somente por determinado tempo, e contratada por prazo não superior a 90 dias, poderia ser aplicado a essa nova modalidade de locação.

Entretanto, a locação por temporada não se amolda perfeitamente a este modelo de negócio, já que: (1) há a proibição expressa para contratos com prazo de mais de 90 dias, sob pena de tornar-se contrato de locação por tempo indeterminado (artigo 50); (2) prevê a necessidade de se descrever todos os móveis localizados no imóvel a ser locado (artigo 48, parágrafo único).

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em especial sua 4ª Turma, no julgamento do Recurso Especial nº 1.819.075/RS, entendeu que os contratos de locação de curta duração mediados por sites eletrônicos são contratos atípicos de hospedagem, que não se amoldam a nenhuma das hipóteses previstas na Lei 8.245/91 e teriam aspectos de hospedagem e em algumas situações, poderiam ter aspectos "consumeristas".

Por outro lado, e com a popularização das plataformas online de aluguel de imóveis, muitos condomínios têm restringido as locações de curta duração, com a alegação de riscos à segurança e ao sossego dos moradores, em razão da alta rotatividade de pessoas no condomínio, o que tem gerado diversos conflitos na Justiça entre os locadores e os condomínios que não os admitem.

No 32º aniversário da promulgação da Lei nº 8.245/91, devemos celebrar os avanços trazidos e aproveitar a oportunidade de atualização da lei para novas situações que eram inimagináveis ao legislador de 1991.

 


[1] O IPA, por sua vez, capta a variação dos preços de commodities, sendo que por conta da pandemia do Covid-19, commodities como minério de ferro, cana-de-açúcar e milho tiveram aumento expressivo .

[2]Como na ocasião da pandemia a grande maioria dos contratos de locação estavam indexados ao Índice Geral de Preços e Mercado (IGP-M) o poder legislativo, chegou inclusive a propor projeto de lei (1026/21) para limitar os reajustes das locações à variação do IPC-A. Em 2020 o IGP-M acumulou alta de 23,14%, contra 4,52% do IPCA. O deputado federal Vinicius Carvalho, autor do projeto, assim justificou a iniciativa: "Defendemos a livre negociação, mas não podemos deixar o lado mais fraco dessa relação à mercê das regras do mercado". A situação torna-se mais grave, segundo ele, diante do quadro de crise econômica provocado pela pandemia. […] "Os inquilinos estão desesperados com os índices de reajuste dos contratos de aluguel neste período de pandemia". JUNIOR, Janary. Projeto limita reajustes de aluguel residencial e comercial ao IPCA. Agência Câmara de Notícias, Brasília – DF, 08/04/2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/744099-projeto-limita-reajustes-de-aluguel-residencial-e-comercial-ao-ipca/. Acesso em 11. outubro.2023.

[3] Tucci e Villaça Azevedo ao comentar o art. 46 da Lei n.º 6.649/79, destacam que: "a preocupação dos elaboradores da novel legislação inquinaria em proteger, nesse particular, o contratante economicamente mais fraco, ou seja, o inquilino". AZEVEDO, Álvaro Villaça; TUCCI, Rogério Lauria. Tratado de locação predial urbana. São Paulo, Saraiva, 1988, p. 580.

[4] Anteriormente, o art. 30 do Dec. 24.150/34, já considerava "nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que visem a elidir os objetivos da presente lei".

Autores

  • é advogado, sócio fundador do escritório Rodrigo Elian Sanchez Advogados, especialista em Processo Civil pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e mestre em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!