Opinião

Consequências do descumprimento do poder de requisição da Defensoria

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3 de novembro de 2023, 6h32

A Defensoria Pública, desde sua criação, passou por notável evolução normativa.

A instituição, inicialmente consagrada em tímida previsão constitucional veiculada na mesma seção que tratava da advocacia, hoje é objeto de amplo arcabouço normativo constitucional e legal que detalha e consagra sua missão, assegurando-lhe o instrumental necessário para seu pleno cumprimento.

É à luz de tal arcabouço normativo, que consagra a Defensoria Pública como "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado", prevendo ser sua missão "a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados" (artigo 134, caput, da Constituição Federal), que o Supremo Tribunal Federal decidiu ser constitucional o poder de requisição previsto na Lei Complementar 80/94 e também em diversas leis orgânicas das defensorias estaduais.

Vale transcrever trecho da ementa do julgamento da ADI 6.852, em que, superando o entendimento plasmado, anteriormente, na ADI 230, restou consagrado que: "1. O poder atribuído às Defensoria Públicas de requisitar de qualquer autoridade pública e de seus agentes, certidões, exames, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e demais providências necessárias ao exercício de suas atribuições, propicia condições materiais para o exercício de seu mister, não havendo falar em violação ao texto constitucional" e "2. A concessão de tal prerrogativa à Defensoria Pública constitui verdadeira expressão do princípio da isonomia e instrumento de acesso à justiça, a viabilizar a prestação de assistência jurídica integral e efetiva".

A bem lançada conclusão alcançada pela corte foi replicada em diversas outras ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas pela Procuradoria-Geral da República.

E, de fato, irretocável o entendimento esposado pela Corte constitucional, pois não se vislumbra no poder de requisição da Defensoria Pública qualquer hediondo privilégio ou despropositado tratamento díspar, mas sim instrumento por meio do qual, na realidade, se concretiza a isonomia e se qualifica a prestação de assistência jurídica pelas Defensorias Públicas, tudo à luz das vulnerabilidades concretas que assolam o público-alvo da instituição.

Importante anotar que muitas das ações diretas de inconstitucionalidade acima referidas tiveram por objeto, como já dito, previsões do poder de requisição consagrados em leis orgânicas estaduais, sendo certo que algumas destas legislações consagram, diferentemente da Lei Complementar federal 80/94, a possibilidade do poder de requisição ser dirigido a entidades particulares. Menciono, a título de exemplo, as leis orgânicas estaduais das seguintes Defensorias: DPE-MG, DPE-RO, DPE-CE, DPE-AP, DPE-AM, DPE-MT.

Considerando que todas essas ações foram julgadas improcedentes, de rigor a conclusão de que o Supremo Tribunal Federal afirmou a constitucionalidade do poder requisição da Defensoria inclusive em relação aos particulares.       

Neste diapasão, e na esteira do que se infere da teoria dos poderes implícitos, tem-se que tal poder deve, de fato, ser extensivo aos particulares.

Isto posto, é importante observar que em nenhuma das decisões proferidas pela corte constitucional houve maior aprofundamento a respeito das consequências de eventual descumprimento da requisição. E tal reflexão é indispensável, na medida em que de tais efeitos depende, em última análise, a efetividade da prerrogativa.

A prática cotidiana dos membros da Defensoria revela que nem sempre as requisições são cumpridas e, quando o são, por vezes não se respeita o prazo assinalado pelo defensor ou defensora de que emanou a ordem.

Neste ponto, cumpre ressaltar que a requisição, consoante ensinam Diogo Esteves e Franklyn Roger Alves da Silva, "não depende de qualquer controle judicial prévio para que produza seus regulares efeitos jurídicos; uma vez concluído o ato requisitório, o comando nele embutido está disponível para interferir na esfera jurídica do indivíduo, impondo o fornecimento da informação ou a realização da providência requisitada" [1].

Nesta mesma linha, escreve Guilherme Peña de Moraes, que ensina que a requisição "é exigência legal, enquanto que requerimento é solicitação de algo permitido por lei", asseverando, ainda, que "não poderão as autoridades públicas ou seus agentes deixar de atender às requisições dos Defensores Públicos, desde que lhe sejam fornecidos os dados suficientes para persecução, sob pena de desobediência, sem prejuízo de eventuais sanções disciplinares" [2].

E à luz de tais ensinamentos, escrevem, em brilhante obra, Gustavo Junqueira, Daniel Zveibil e Gustavo Reis que a "doutrina dedicada ao estudo da Defensoria Pública realça a natureza de ato administrativo da requisição – seguindo os passos da doutrina clássica que trata do instituto original –, extraindo, daí, os atributos próprios desse tipo de ato e outras consequências" [3].

Conclui-se, na esteira do exposto, que, salvo no caso de existência de manifesta ilegalidade do quanto requisitado, a requisição é vinculante, traduzindo-se, pois, em verdade ordem.

Assentadas tais premissas, cabe perscrutar as consequências do eventual descumprimento de tal poder/prerrogativa pelos agentes públicos ou por particulares.

Quanto aos agentes públicos, é possível a responsabilização na seara administrativa-disciplinar, bem como na seara cível (se houver dano) e penal. Já em relação aos particulares haverá possibilidade de responsabilização no âmbito cível (se houver dano) e criminal.

A apuração de responsabilidade administrativa do agente público, de cunho eminentemente disciplinar/funcional, deve ser levada a cabo pelos órgãos correicionais competentes para tanto.  

Já a responsabilidade no âmbito cível merece uma análise mais pormenorizada.

Com efeito, é imperioso destacar que, no plano hipotético, é possível imaginar situações em que o não atendimento da requisição dê causa ou, ao menos, contribua para a causação de prejuízos concretos à parte assistida.

Neste contexto, pode-se afirmar, a nosso ver, que o não atendimento, pelo particular, de requisição da Defensoria ensejará ato ilícito indenizável – a depender, evidentemente, da existência de dano patrimonial ou extrapatrimonial e do nexo causal entre o descumprimento e o dano (artigo 186 c/c 927, caput, do Código Civil).

Já em relação ao descumprimento da requisição pelo funcionário público, tem-se que possível a responsabilização do Estado pelo comportamento omissivo do agente que descumpri-la, nos termos do que dispõe o artigo 37, §6º, da Constituição, segundo o qual as "pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".  

Em ambos os casos, a legitimidade ativa será da pessoa que teve seus direitos violados pelo não atendimento do poder-prerrogativa.

Também na seara coletiva é possível vislumbrar situações em que exista dano a direitos da coletividade decorrentes, ao menos em parte, do não atendimento da requisição, o que dará lugar à ação civil pública manejada pela Defensoria, em legitimidade extraordinária, em face do particular ou do poder público, visando a reparação dos danos sofridos pela coletividade, também com fulcro no que prevê o artigo 37, §6º, da Constituição Federal.

Destaque-se que, nos casos em que houve responsabilização do poder público, caberá ação de regresso contra o agente público omisso.

Trago à baila um exemplo que pode elucidar o contexto em que pode surgir a responsabilização civil: imagine-se que um pai comparece à Defensoria Pública desesperado porque seu filho, internado em hospital particular, necessita de tratamento cuja cobertura foi negada, de forma indevida, pelo plano de saúde. Suponha-se que tal genitor não tenha trazido consigo qualquer documento que comprove o quadro clínico do infante. O genitor narra, ainda, dificuldade na obtenção dos documentos. O membro da Defensoria, diante da impossibilidade de manejo imediato de ação, decide se valer do poder de requisição, oficiando o Hospital a fim de obter esclarecimentos a respeito do quadro clínico do infante, da necessidade do tratamento pretendido e, ainda, a remessa de documentos pertinentes. Imagine-se que o hospital não cumpra a requisição e que, logo em seguida, advenha óbito ou prejuízo grave à saúde da criança. Em tal caso, vislumbra-se na omissão do hospital ato ilícito indenizável – sem prejuízo da responsabilidade da própria operadora do plano de saúde pela indevida negativa de cobertura. E isso porque o não atendimento da requisição impediu a tutela integral e adequada dos direitos do infante, contribuindo para a ocorrência do dano.

Nesse contexto, o não atendimento da requisição da Defensoria e a consequente impossibilidade eventual de defesa adequada e integral dos direitos da pessoa assistida consubstancia-se em uma inércia agravada que, ainda que não seja a exclusiva causadora do dano, deve ser devidamente considerada na apuração de responsabilidades.  

Isto posto, cumpre destacar que a responsabilidade do particular, em casos tais, será subjetiva. Já quanto à responsabilidade do Estado cabe discussão, pois há controvérsia a respeito da aplicabilidade da responsabilidade objetiva em decorrência de ato omissivo do agente público.

No âmbito jurisprudencial parece prevalecer a tese segundo a qual a responsabilidade será subjetiva (STJ — AgInt no AREsp 1000816-SP, AgInt no AREsp 1249851-SP, AgInt no REsp 1628608-PB, AgInt no REsp 1773523-RJ, REsp 1793090-RS e REsp 1782133-RJ).

Há, contudo, relevantes vozes em sentido contrário, a exemplo de Hely Lopes Meirelles [4].

De todo modo, considerando que a responsabilidade do particular será sempre subjetiva e o fato de que prevalece o entendimento de que a responsabilização do agente público em casos tais dependeria da demonstração de negligência do Estado (o que, na hipótese, decorreria da ausência de fiscalização e mesmo, eventualmente, de capacitação de seus agentes) de rigor dimensionar a questão à luz de critérios objetivos que podem auxiliar o julgador na conclusão a respeito da existência ou não do elemento subjetivo e, por conseguinte, da responsabilidade.  

Assim é que temos por razoável a exigência, para fins de responsabilização civil do particular ou do Poder Público, da presença dos seguintes requisitos cumulativos:

  • A requisição descumprida deve ser emanada com prazo específico para cumprimento, concedido pelo membro da Defensoria Pública;
  • O prazo concedido deve ser razoável e guardar relação com a urgência do caso concreto;
  • É indispensável que haja comprovação do recebimento do ofício em que se veiculou a requisição, bastando, para tanto, o comprovado envio para o endereço, seja físico ou eletrônico;
  • A requisição não pode aviltar a autonomia institucional de outros órgãos ou Poderes da República ou a independência funcional ou técnica de seu destinatário;
  • A requisição não pode ter por objeto informações cujo sigilo está previsto em lei, destacando-se a possibilidade de, nestes casos, acionar, imediatamente, o Poder Judiciário visando a obtenção das informações (vide, a título de exemplo, o que dispõe o artigo 8º, §2º, da Lei 7.347/85).

Aos requisitos acima aliam-se, evidentemente, os demais usuais em matéria de responsabilidade civil do Estado.

Acrescente-se que incabível controle judicial da pertinência do quanto requisitado para atingimento de determinados objetivos, pois tal análise é exclusiva do membro da Defensoria, a quem cabe traçar estratégias e eleger os melhores instrumentos para tutelar os direitos da pessoa assistida.

Não se descura, ainda, da possibilidade acionamento do Poder Judiciário para obtenção do objeto da requisição. Mas fazê-lo sem antes levar a cabo a requisição é esvaziar o relevante poder-prerrogativa, adicionando na elaboração da estratégia de defesa dos direitos a imponderável possibilidade de descumprimento da requisição. De mais a mais, há casos em que o dano pode ocorrer no período de tempo existente entre o descumprimento da requisição e o acionamento do Poder Judiciário.

Por fim, há a possibilidade de responsabilização criminal do agente ou particular que descumprirem a requisição.

Temos que em caso de descumprimento da requisição pelo particular, haverá prática, em tese, do delito de desobediência (artigo 330 do Código Penal).

Já na hipótese do agente ativo ser funcionário público, há debate a respeito do correto enquadramento típico da conduta.

Há julgados do Superior Tribunal de Justiça que esposam o entendimento de que de acordo com "doutrina de escol, o funcionário público pode ser sujeito ativo do crime de desobediência, desde que, como na espécie, não seja hierarquicamente subordinado ao emitente da ordem legal e tenha atribuições para cumpri-la" (vide RHC 85.031 / DF, REsp 556.814-RS e  RHC 13.964-SP).

De outro lado existem aqueles que entendem que caso o agente ativo seja funcionário público, estar-se-á diante da prática, em tese, do delito de prevaricação (artigo 319 do Código Penal).

Esposamos o entendimento de que o descumprimento da requisição, seja por parte do particular, seja por parte do agente público, configura o delito de desobediência.

Conclui-se, pois, que o descumprimento da requisição emanada da Defensoria Pública pode ensejar as seguintes consequências: a) responsabilização administrativa, de cunho disciplinar, do agente público; b) responsabilização civil do Estado pela omissão do agente público; c) responsabilização civil do particular, ante a configuração de ato ilícito indenizável (artigo 186 c/c 927 do Código Civil); d) responsabilização criminal, pela qual tanto o particular quanto o agente público responderão pela prática do delito de desobediência, ressalvado, quanto ao último, o entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que o crime, na hipótese, seria o de prevaricação.

 


[1] (Esteves, Diogo, e Franklyn Roger Alves Silva. Princípios Institucionais da Defensoria Pública, 3ª edição).

[2] (MORAES, Guilherme Peña de. Instituições da Defensoria Pública. São Paulo: Malheiros, 1999. Cap. XIV, p. 288 apud Junqueira, Gustavo, et al. Comentários à Lei da Defensoria Pública. Disponível em: Minha Biblioteca, (2nd edição). Editora Saraiva, 2021.)

[3] (Junqueira, Gustavo, et al. Comentários à Lei da Defensoria Pública. Disponível em: Minha Biblioteca, (2nd edição). Editora Saraiva, 2021.).

[4] (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28ª ed. Atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros Editores, 2003).

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