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A oralidade e as condições de comunicação — parte 2: oralidade no processo penal

Autor

  • Thiago M. Minagé

    é advogado criminalista professor de Processo Penal pós-doutor pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro doutor e mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá conselheiro estadual da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil-RJ e presidente da seção do Rio de Janeiro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

30 de março de 2023, 16h34

Spacca
Analisar o processo penal no contexto latino-americano é desafiador, em especial, por conta de sua complexidade histórica, social, jurídica e cultural. Mas esse é o caminho que me dispus a percorrer nessa sequência (trilogia) de textos[1] sobre a oralidade. Como bem pontuado por Caíque Galícia e Vinícius Vasconcelos[2], a própria história da identidade latino-americana não decorre da visão bucólica de indígenas cooperando pela paz social e resolução pacífica dos conflitos, mas, eminentemente, deriva das marcas de um continente com veias abertas (Galeano, 1984) desde a colonização exploratória europeia.

Agora tentarei propor a ressignificação de dois conceitos básicos do processo penal natureza jurídica e finalidade do processo , passando pelo sistema processual, para, só então, demonstrar a identificação dos equívocos e destacar os impedimentos para o avanço prático-teórico da implementação de um processo oral que se paute na cultura das audiências.

Os autores clássicos que antecederam o contexto constitucional de 1988 entendiam e explicavam o processo penal de forma distinta da perspectiva de hoje. A natureza jurídica era de potestade do Estado. Por exemplo, José Frederico Marques[3] afirmava que da prática de um fato delituoso nasce para o Estado o Direito de punir. Na mesma linha Hélio Tornaghi[4] dizia: “Diante do juiz criminal, é meio hábil para tornar efetiva não apenas a sanção criminal, mas ainda para o ressarcimento e reparação civil”. Em momento mais recente, temos o posicionamento de Fernando da Costa Tourinho Filho[5], que embora tenha escrito já na vigência da atual Constituição, deixa clara sua matriz teórica em tempos passados, por exemplo, quando diz que “no instante em que alguém realizada a conduta proibida… o Estado tem o dever de infligir a pena ao autor da conduta proibida”. Constatação: a finalidade do processo penal é/era aplicar a lei penal.

Ocorre que tais perspectivas mudaram e se tornaram insustentáveis. Como dizer que o Estado tem o direito/dever de punir antes de uma sentença condenatória ser alcançada pelo trânsito em julgado? Como manter a perspectiva de finalidade do processo penal como instrumento de aplicação da lei penal, como se dele (Direito Penal) dependente fosse e, pior, como se mero carimbador/chancelador de condenação fosse? Estaríamos negando a autonomia científica processual penal.

A proposta que trago como forma de ressignificação desses institutos é a de que a natureza jurídica do processo penal é um verdadeiro direito fundamental de cidadania[6] [7], que está muito bem-posto por José Emilio Medauar Ommati[8] quando diz que “no âmbito do Judiciário, a equidade é a exigência no sentido de que a estrutura do Poder Judiciário seja construída de tal forma que garanta a todos os envolvidos em um processo os mesmos direitos e obrigações, aquilo que na tradição brasileira conhecemos como os direitos processuais, tais como, e fundamentalmente, contraditório, ampla defesa, isonomia, e devido processo legal". Uma realidade pós-constituição que ainda é rejeitada por grande parte dos juristas.

Compreendendo a natureza jurídica do processo penal, avançamos com a importância de entender o fenômeno processual conjugado com o Direito material, pois é dessa perspectiva que se caminha para identificação da finalidade do processo penal, como bem-posto por Juarez Tavares. A teoria crítica do delito tem como objetivo estabelecer limites dogmáticos ao poder punitivo do Estado por meio de um controle sobre as agências de intervenção e sobre a jurisprudência. Essa é uma tarefa que corresponde à estrutura do Estado Democrático de Direito, que tem por base a proteção da dignidade da pessoa humana, dos direitos humanos e da cidadania. Ou seja: processo penal é limitador do poder.[9]

Continuando, como bem pontuado por Fauzi Hassan Choukr[10], a concepção de processo como instrumento de garantia dos direitos fundamentais, não só, confirma sua natureza de direito fundamental, como também, corrobora a finalidade limitativa do exercício do poder, quando diz:  Do ponto de vista restritivo a finalidade do processo “em si” e a partir do conceito de processo aqui empregado, tem-se que ele serve à preservação da liberdade justa, com o que se supera a compreensão que o processo penal é um mecanismo prioritariamente voltado para a punição.

Portanto, identificar a natureza jurídica e a finalidade do processo penal, de nada adiantará se não estivermos inseridos em uma compreensão lógica de sistema processual adequado, que inevitavelmente ditará a forma de desenvolvimento do processo para interpretação e aplicação das normas processuais penais. Por isso, definir o método de leitura compreensiva do processo penal significa definir qual é o nosso paradigma de leitura, buscar o ponto fundante do discurso. Aqui, a opção é pela leitura constitucional e, dessa perspectiva, visualizar o processo penal como instrumento das garantias constitucionais[11].

Passando para a compreensão do que seria um sistema acusatório, importante destacar a afirmação de Leandro Gornick Nunes[12] de que o processo acusatório é cognitivo, imune ao arbítrio, com igualdade entre os sujeitos… com respeito aos pressupostos do agir comunicativo, ou seja, igualdade entre os sujeitos comunicantes e aceitação do resultado por esses sujeitos, desde que respeitadas as regras processuais democráticas. Logo, trata-se de um processo muito mais vinculado à filosofia da linguagem e muito mais democrático.

Dispensamos muitas forças para dizer que uma das principais características de um sistema acusatório, seria a divisão de funções entre acusar, defender e julgar. Sim, é uma das características mais importantes, mas nitidamente insuficiente. Agora, é necessário voltarmos os esforços para a implementação da oralidade que, consequentemente, trará consigo a publicidade e o aprimoramento do contraditório.

Vejam que a oralidade é uma forma de comunicação mediante o uso da palavra, onde, sob a perspectiva jurídico-processual, adquire conotações que transcendem a simples expressão verbal, logo, não se resume a uma oratória[13], como muitos insistem em confundir. De fato, refere-se a um sistema de direitos e garantias inseparáveis, que exige a compreensão do sistema processual adequado (acusatório), princípios fundantes (contraditório, presunção de inocência), natureza jurídica do processo criminal (direito fundamental), finalidade do processo criminal (limitação de poder e garantia de direitos) e cultura das audiências para tomada de decisões.

A oralidade é valiosa na medida em que permite alcançar o imediatismo. Ou seja, a oralidade é um instrumento a serviço da celeridade. Por quê? A importância do imediatismo que entendemos como o contato direto do julgador com as provas produzidas/apresentadas pelas partes  remete a três razões: (1) ordena ao juiz e ninguém menos que o juiz seja aquele que conhece a prova, proibindo a delegação de funções; (2) permite ao juiz testemunhar diretamente a "fonte" da informação com a qual o levará à sua decisão, evitando assim o risco de distorção sofrida pela informação quando recebida de “segunda mão”; e (3) permite que o juiz possa julgar, testemunhar e controlar o modo como a informação é produzida. Sem contar a questão persuasiva pelo recorte argumentativo.


[1] MINAGÉ, Thiago M. A oralidade e as condições de comunicação — parte 1: fala escrita e fala falada. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mar-22/thiago-minage-oralidade-condicoes-comunicacao-parte.

[2] GALÍCIA. Caíque.  VASCONCELLOS, Vinicius. O esvaziamento do direito ao recurso na prática brasileira. In: Desafiando a Inquisição: Ideias e propostas para a Reforma Processual Penal no Brasil. Centro de Estudios de Justicia de las Américas, CEJA. Santiago, Chile, 2016.   

[6]LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal. Introdução Crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 30.

[7]LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Tradução de Maria da Conceição. Brasília: UNB, 1980. O autor deixa claro que, a via procedimental incorreta acarreta a ilegitimidade estatal. O estado exerce seu poder e, por questões óbvias, a via procedimental incorreta acarreta a ilegitimidade estatal

[8] OMMATI, José Emílio Madauar. Uma Teoria dos Direitos Fundamentais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2016, p. 57-58.Já no âmbito do judiciário, a equidade é a exigência no sentido de que a estrutura do Poder Judiciário seja construída de tal forma que garanta a todos os envolvidos em um processo os mesmos direitos e obrigações, aquilo que na tradição brasileira conhecemos como os direitos processuais, tais como, e fundamentalmente, contraditório, ampla defesa, isonomia, e devido processo legal.

Portanto, com base em Ronald Dworkin, compreendo que os direitos fundamentais são princípios ou argumentos de princípio, devendo os juízes sempre decidir os casos a eles submetidos com base em princípios, de modo a afirmar os direitos dos cidadãos. As políticas ou argumentos de política, servem, nessa ótica, para a realização dos princípios, dos direitos fundamentais.

[9] TAVARES, Juarez. Fundamentos de Teoria do Delito. 1.ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 535. A teoria crítica do delito tem como objetivo estabelecer limites dogmáticos ao poder punitivo do Estado por meio de um controle sobre as agências de intervenção e sobre a jurisprudência. Essa é uma tarefa que corresponde à estrutura do Estado Democrático de Direito, que tem por base a proteção da dignidade da pessoa humana, dos direitos humanos e da cidadania. (…) com isso, assegura-se a real integração do sujeito na ordem jurídica, a qual deverá servir de parâmetro para todas as medidas relacionadas à delimitação do processo de imputação objetiva e subjetiva, bem como dos fundamentos da culpabilidade. É o que penso. O processo é mais uma estrutura de exercício limitado de poder, assim como o Direito Penal. Logo o Direito limita poder no limite da previsão legal. Quando Juarez aponta o processo de imputação objetiva e subjetiva refere-se ao Direito Penal e talvez a crítica à teoria finalista e função do Direito Penal de von Listz. O direito “penal” refere-se à pena, e também à culpa. Logo a atribuição de responsabilidade penal precisa ser revista pelos fundamentos do Direito Penal contemporâneo como reconhecimento de culpa criminal.

[10] CHOUKR, Fauzi Hassan. Iniciação ao Processo Penal. 1ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 22.

[11] LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal. Introdução Crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 29.

[12] NUNES, Leandro Gronick. Sistema processual Penal adversarial: entre A democratização e o Eficientismo neoliberal. In: Desafiando a Inquisição: Ideias e propostas para a Reforma Processual Penais no Brasil. Centro de Estudios de Justicia de las Américas, CEJA. Santiago, Chile, 2016.

[13] MENDOZA; Laura Gabriela Bravo. El Principio de Oralidad En la Reforma Constitucional Al Sistema de Justicia Penal. FACULTAD DE DERECHO Y CIENCIAS SOCIALES. Morelia, Michoacán, 2011, p. 14-15

Autores

  • é advogado, pós-doutorando na UFRJ/FND, professor de Processo Penal, conselheiro estadual da Ordem dos Advogados do Brasil-RJ e presidente da Abracrim-RJ.

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