Opinião

A quem socorre enfraquecer o Carf? A quem interessa a falta de debate?

Autor

  • Fredy José Gomes de Albuquerque

    é conselheiro titular do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza e membro honorário da Academia Cearense de Letras Jurídicas.

29 de março de 2023, 21h39

O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais vem sendo objeto de acalorado debate que o aponta como fator de represamento de créditos tributários, os quais solucionariam os agudos problemas brasileiros. Muitas críticas ao órgão focam na necessidade arrecadatória, com interpretações que colocam em xeque a paridade de julgamentos e a atividade judicante dos conselheiros, sugerindo que recursos sejam decididos pelo próprio Fisco.

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A quem interessa sua reconfiguração para atender a um modelo arrecadatório? A quem serve o enfraquecimento de instituição quase centenária, de atuação séria e independente, que realiza o filtro da legalidade tributária? Sendo o Carf o último apelo administrativo para reverter equívocos praticados no lançamento de tributos, em que medida seria razoável sua extinção? É lícito presumir que os interessados sejam considerados sonegadores?

São questões de fáceis respostas, jamais por quem não conhece a realidade. Para criticar é preciso conhecer, ao menos, imaginar de perto!

Imagine que uma empresa do Simples Nacional (pizzaria, barbearia, escritório, colégio, indústria, etc.) seja fiscalizada e excluída do regime simplificado e, com isso, seja-lhe exigido o recolhimento acumulado dos tributos no período. Nada errado; esse é o procedimento. Porém, imagine que a administração tributária, por eventual equívoco, deixe de oportunizá-la apurar os tributos mediante análise de sua contabilidade, ao arrepio do regime tributário correto. Tudo errado a partir daí! A quem interessa manter autuações equivocadas?

Hipoteticamente, imagine que uma indústria fabrique determinado produto cuja produção exija incorporar outros bens, mas que o Fisco não os considere insumos, majorando o valor do tributo. Nesse caso, os fatos demandariam uma análise do seu processo produtivo e da essencialidade do bem utilizado, seja para aumentar, seja para reduzir a tributação. A quem interessa não investigar a realidade e desconsiderar fatores econômicos do caso concreto? É lícito que a arrecadação sobrepuje a verdade e limite direitos?

Atente à possibilidade de um sindicato, uma federação empresarial, uma fundação de cultura ou educacional, uma associação civil filantrópica que presta serviços hospitalares, os quais gozam de imunidade para pagamento de tributos, percam tal condição por ato declaratório da administração tributária e contra eles seja exigida a tributação acumulada de vários anos, ficando ameaçada a própria continuação de suas atividades. Qual o sentido de impedir que tais entidades defendam seus direitos perante um órgão autônomo?

Imagine a hipótese de um trabalhador ser demitido da empresa onde foi empregado por décadas e reclame verbas rescisórias na Justiça do Trabalho. Após longos anos de espera, já idoso, tenha recebido o FGTS e adicional de 40%, devidamente atualizados, sobre os quais o Fisco entenda ser correto lançar auto de infração para cobrança de Imposto de Renda na alíquota máxima. É justo afastar desse trabalhador a possibilidade de se defender perante o Carf, para demonstrar que tais verbas são isentas por lei? É lícito impedir que a sociedade se defenda de situações que precisam ser ajustadas?

Presuma que uma pessoa jurídica tenha pago tributos durante o ano e, ao final do exercício, apure prejuízo em sua operação. Sendo recuperáveis tais adiantamentos, mediante pedidos de restituição/compensação, poderia o Fisco deixar de conceder o crédito por exigências formais parcialmente cumpridas? A quem interessaria não aprofundar a análise do direito creditório do interessado quando for plenamente possível diligenciar para materializar a verdade?

Uma verdade verificável deve sucumbir aos formalismos que atendam a pretextos arrecadatórios? A quem interessa enfraquecer o órgão que aprofunda tais análises e filtra equívocos procedimentais para atender a justiça fiscal desejada por todos? Caminhar para trás significa caminhar?

As hipóteses possíveis são incontáveis, nas mais diversas áreas da tributação federal, que ocasionam demandas de inúmeras ordens, mas têm um elemento em comum: a divergência interpretativa entre Fisco e contribuinte, decorrente de uma complexidade normativa que tenciona debates jurídicos em torno de temas intrigantes. A quem recorrer para realizar o filtro adequado?

O Carf é exatamente o órgão de proteção da legalidade no âmbito administrativo tributário. É lá onde os contribuintes, de todos os portes e áreas de atuação, podem exercer a defesa de direitos em última instância federal, mediante intenso contraditório, assim como a própria Fazenda Pública exerce a defesa de suas exigências e interpretações. Realizam-se julgamentos essenciais a pessoas físicas e jurídicas, em ambiente desconectado de interesses arrecadatórios.

Quanto às críticas, baseiam-se na premissa equivocada — e não raro leviana — de que seu modelo paritário serviria ao aparelhamento privado e seria uma forma de grandes empresas, pretensamente sonegadoras, cooptarem membros para emplacarem teses absurdas, mediante práticas não republicanas.

Ledo engano; a carapuça não cabe!

Primeiro, ao fazerem tal acusação genérica, assumem – ou deveriam assumir – o ônus de informar onde está o erro, inclusive, mediante denúncia aos órgãos de controle federal e à própria direção da entidade. As críticas generalistas, quase sempre com narrativas de intensa coloração ideológica, não servem à melhoria da instituição e não apontam em nenhuma direção.

Segundo, a ascensão profissional ao Carf requer rigoroso procedimento de validação prévia do comitê de acompanhamento, seleção e análise de Conselheiros, formado pela Presidência do órgão, Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, representante de confederações empresariais, da sociedade civil e da OAB. Na prática, demanda-se comprovação de experiência técnica e notório saber, além de submissão à análise investigativa de órgãos de inteligência governamental, para o exercício de tal função pública.

Terceiro, os números não mentem! As decisões são majoritárias (por unanimidade ou maioria), ou seja, não costuma haver empate ou dúvida relevante que leve ao empate. Os dados abertos [1] da instituição apontam os seguintes percentuais de julgamentos majoritários: 95% (2021/2022), 97% (2020), 94% (2019) e 93% (2018). Na prática, seja para manter ou desconstituir o lançamento, as decisões adensam posições comuns de julgadores. Quem diz o contrário costuma desconhecer a realidade do órgão.

Desse total, 76,61% são favoráveis à Fazenda Pública e 23,39% ao contribuinte, conforme recente estudo científico do Insper [2], que demonstra inexistir ataque aos créditos tributários analisados, muito pelo contrário, as teses vencedoras são as fazendárias!

Todas as instituições podem e devem ser melhoradas. As críticas construtivas ao aperfeiçoamento do Carf são importantes. Ao longo do tempo, o próprio órgão promoveu ajustes relevantes e obteve, durante os três anos consecutivos que antecederam a pandemia, certificação do ISO:9001, fruto de ajustes sucessivos de métodos, além de realizar transparência plena em distribuição de processos, realização de audiências com patronos, sessões públicas de julgamentos, publicação de dados abertos acerca de seu estoque e fluxo processuais, acompanhamento da atividade de conselheiros, dentre outras medidas.

Além disso, o Carf é um celeiro de conhecimento, onde são debatidos temas tributários nacionais relevantes. Suas decisões aprofundam análises, verticalizam a complexa eficiência probatória e buscam afastar incertezas. A excelência de julgamentos é uma regra, quase sempre reconhecida pelas partes, mesmo quando vencidas.

Até mesmo as demandas judiciais posteriores recebem casos esmiuçados, onde a fértil produção de provas e argumentação técnica produzida servem como ferramentas adicionais para fundamentação e motivação de decisões de magistrados.

A quem socorre enfraquecer o Carf? A quem interessa o obscurantismo, a escuridão, a falta de debate? A quem serve esvaziar a atuação desse relevante órgão da sociedade? Parafraseando Renato Russo, "quando a esperança está dispersa, só a verdade me liberta".

Que a luz não sucumba à desinformação!

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