Opinião

Teoria Queer do Direito e cotas para transgêneros em concursos públicos

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28 de março de 2023, 15h07

Reconhecida pela revista norte-americana Time como uma das principais líderes influentes da nova geração, Pabllo Vittar carrega em sua trajetória muitos sucessos e diversos prêmios, estando entre as drags mais populares do mundo.

Gabriel Renne/Divulgação
A artista drag Pabllo Vittar, de IndestrutívelGabriel Renne/Divulgação

Em 2018, a artista lança o single Indestrutível, produzindo um videoclipe cujo ponto central é a dor causada pelo ódio, discriminação e intolerância. A primeira imagem do vídeo traz a informação de que "73% dos jovens LGBTs sofrem bullyng nas escolas". A narrativa da violência LGBTfóbica sofrida pelo adolescente no colégio é sobreposta pela voz de Pabllo, que canta "eu sei que tudo vai ficar bem e as minhas lágrimas vão secar". O clipe prossegue, mostrando o dia a dia daquele adolescente, vítima da intolerância na escola, ao mesmo tempo que a música diz "se recebo dor, te devolvo amor".

É dentro desta perspectiva cantada por Pabllo que questionar a categorização e a hierarquização de indivíduos em função do sexo e do gênero se faz pujante.

Na análise desenvolvida por Foucault, a gestão e política da vida (biopoder), indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, tinha um objeto principal: o corpo. Este poder, todavia, não deve ser visto apenas de forma vertical, exercido pelo Estado; o controle dos corpos também depende de aparelhos reguladores horizontais, tais como a religião, a família, as escolas. É nesse contexto de micropoderes que Foucault afirma que o sexo passou a ser um foco de disputas políticas [1].

Tendo como base os pensamentos de Judith Butler, assim como o gênero, o sexo também é discursivo e cultural. Ao contrário do que defendiam as teorias feministas anteriores, para a filósofa, o gênero seria um fenômeno inconstante e contextual, permitindo-se, pois, repensar as identidades, independentemente da lógica binária dos sexos [2]:

"Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a consequência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino tanto um corpo masculino como um feminino."

A partir de uma Teoria Queer do direito é possível edificar uma concepção capaz de romper com a lógica binária e cisheteronormativa vigente, na qual repousa a atual política de cotas no ordenamento jurídico brasileiro.

De se ressaltar que a concepção de identidade de gênero e orientação sexual não se confundem. No âmbito internacional, os chamados "Princípios de Yogyakarta" compreendem "orientação sexual" como a capacidade de cada pessoa de experimentar uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como de ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas.

Por sua vez, entende-se como "identidade de gênero" a experiência interna, individual e profundamente sentida que cada pessoa tem em relação ao gênero, que pode, ou não, corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo-se aí o sentimento pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive o modo de vestir-se, o modo de falar e maneirismos.

Nessa ordem de ideias, a caracterização da pessoa trans não está necessariamente ligada à identificação com o sexo oposto, podendo permear diferentes formas de neutralidade, ambiguidade, multiplicidade, parcialidade, outrogeneridade, fluidez, rompendo com a estrutura de um sistema sexual binário.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, exercendo função de controle de convencionalidade preventivo e emitindo interpretação sobre as disposições da CADH, editou a Opinião Consultiva OC-24/17, ocasião em que tratou das obrigações estatais em relação à mudança de nome, à identidade de gênero e os direitos derivados de um vínculo entre casais do mesmo sexo.

Sobre isso, a Corte IDH opinou que os estados devem garantir que as pessoas interessadas na retificação da anotação do gênero ou menções do sexo, sem mudar seu nome, bem como na adequação da imagem nos registros em conformidade com a identidade de gênero autopercebida, possam acessar um procedimento 1) baseado unicamente no consentimento livre e informado, sem que sejam exigidos certificações médicas e/ou psicológicas ou outras que possam resultar critérios patologizantes, 2) rápido e na medida do possível gratuito; 3) sem exigir cirurgias e/ou tratamento hormonal.   

Após vinte anos da primeira visita ao Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) retornou ao país, em 2018, concluindo abrangente diagnóstico sobre a situação de direitos humanos, por meio de um relatório emitido no ano de 2021 [3].

No que toca às pessoas LGBTQIA+, a CIDH destacou que o Brasil tem um grande desafio quanto à defesa e promoção dos direitos deste segmento populacional, o que envolve, essencialmente, a criação e o fortalecimento de mecanismos voltados ao atendimento dessas pessoas, além de políticas e projetos para promover seus direitos, incluindo a mudança cultural por meio de uma educação inclusiva de perspectiva diversificada de gênero.

Especialmente em relação às pessoas trans e de gênero diverso, a CIDH manifestou especial preocupação quanto aos atos de violência cometidos. Destacou que, de acordo com dados da sociedade civil, 164 das pessoas trans foram violentamente assassinadas em 2018 e 124 em 2019. Segundo levantamento de 2019, 80% desses crimes mostraram alto requinte de crueldade, como o caso de Quelly da Silva, mulher trans que, depois de morta na cidade de Campinas (SP), teve seu coração arrancado e substituído por uma imagem religiosa [4].

Além disso, segundo levantamento da Antra, o Brasil lidera, com 52% das mortes, o ranking mundial de assassinatos de transgêneros (Antra, 2018) [5]. Somado a isso, estima-se que a expectativa de vida desta população é de 35 anos, ou seja, menos da metade da média nacional [6].

Em relação às dificuldades vivenciadas no ambiente escolar, com base no estudo realizado pela RedeTrans (Tabuol, 2018), em 2017, em média 82% de travestis e transexuais abandonaram o ensino médio entre os quatorze e os dezoito anos [7].

Quanto ao mercado de trabalho, pesquisa da Antra (2018) revelou que 90% deste público estava se prostituindo no país e apenas 10% possuía trabalho com carteira assinada.

Inegável, portanto, a necessidade da instituição de ações afirmativas em prol da pessoa trans, com o escopo de reduzir a discriminação e preconceito enfrentados por essa população.

A Constituição de 1988, em diversas passagens, demonstra o apego à igualdade na perspectiva formal e material. O direito à igualdade implica dever de promoção, o que traz como consequência um dever de inclusão, não se aceitando a continuidade de situações fáticas desiguais.

É nesta linha que as políticas de ações afirmativas são conceituadas como medidas públicas ou privadas, de caráter coercitivo ou não, que visam a promover a igualdade substancial, através da discriminação positiva de pessoas integrantes de grupos que estejam em situação desfavorável e que sejam vítimas de discriminação e estigma social [8].

Para além desta concepção clássica da ideia de igualdade, de viés individualista, há o conceito de igualdade como não submissão, desenvolvido pelo professor argentino Roberto Saba [9], segundo o qual o direito não pode ser completamente cego às relações existentes em determinado momento histórico entre diferentes grupos.

Nesta perspectiva estrutural do princípio da igualdade, desenvolvida por Saba, "a ignorância nem sempre é neutra e a cegueira a respeito dos efeitos de um ordenamento jurídico cego às diferenças pode ter como consequência certo tipo de tratamento desigual".

Através da política de cotas para a população trans, garante-se uma justiça compensatória, tendo-se em conta que a situação atual desta população  majoritariamente segregada, excluída, prostituída  decorre de um histórico de discriminação. Igualmente, as cotas atingem a justiça distributiva, já que num Estado que se pretende democrático, seu dever precípuo é o resgate e a promoção das minorias. Permitir-se-á, enfim, que a pessoa trans adentre em espaços de poder aos quais não possuem acesso, fortalecendo a autoestima do grupo.

Sem prejuízo das discussões e críticas a respeito da adoção do sistema de cotas para transgêneros, já existem projetos de lei que visam adotar essa ação afirmativa, como o PL 225/2017, discutido na Câmara Municipal de São Paulo, de iniciativa da vereadora Isa Penna. Além deste, há o PL nº 134 de 2018 que dispõe, no artigo 70, que "a administração pública assegurará igualdade de oportunidades no mercado de trabalho a transgêneros e intersexuais, mediante cotas, atentando ao princípio da proporcionalidade"Por sua vez, o estado do Rio Grande do Sul, em 2021, editou decreto criando cotas para pessoas trans e população indígena em concursos públicos estaduais.

Em decisão pioneira, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo publicou edital para o cargo de defensor público, trazendo previsão de reserva a candidates trans de 2% das vagas oferecidas, nos termos da Deliberação CSDP nº 400, de 27 de maio de 2022.

Dessa maneira, as cotas em concursos públicos para transgêneros já são uma realidade no país, sendo objeto de projetos de lei, possuindo, inclusive, decreto estadual editado, isso em razão da situação incontestável de vulnerabilidade que estão inseridos os transgêneros, notadamente os transexuais e travestis, decorrência de um pensamento preconceituoso e discriminatório.

A morte do policial e ativista trans Paulo Vaz, no ano passado, causou grande comoção no movimento LGBTQIA+. Conhecido como Popo, Paulo trabalhava como policial civil em São Paulo e era uma das figuras de grande influência na web para o orgulho da identidade transexual. No último 8 de março, o deputado federal Nikolas Ferreira, durante a sessão solene realizada em homenagem às mulheres afirmou que "as mulheres estão perdendo seu espaço para homens que se sentem mulheres", utilizando a tribuna parlamentar para proferir discurso de ódio.

É levando em conta essa política da vida, que adestra e dociliza corpos, estratifica e hierarquiza a sociedade é que devemos pensar numa nova proposta, num novo pacto social, consistente na superação da subordinação de um grupo por outro e cujo dispositivo de poder está, inevitavelmente, imbricado em um sistema sexo/gênero.

Sob a lente da Teoria Queer, Preciado [10] pontifica que

"O sexo, como órgão e prática, não é nem um lugar biológico preciso nem uma pulsão natural. O sexo é uma tecnologia de dominação heterossocial que reduz o corpo a zonas erógenas em função de uma distribuição assimétrica de poder entre os gêneros (feminino/masculino), fazendo coincidir certos afectos com determinados órgãos, certas sensações com determinadas reações anatômicas."

É chegada a hora de suplantar os padrões binários e cisheteronormativos, sendo inaceitável que o sistema jurídico vigente privilegie uma determinada forma de sexualidade em detrimento de outras. Não há nenhuma ingenuidade aqui, afinal, como Vittar canta em Indestrutível, "sei que não é fácil assim, mas vou aprender no fim".

O Brasil atual, à semelhança do videoclipe, exprime um cotidiano das imagens em preto e branco que acompanham aquele adolescente vítima da intolerância LGBT na escola, mescladas com a imagem da drag que, em uma sala repleta por espelhos, repetidamente canta "se recebo dor, te devolvo amor".

Que estejamos próximos do final deste clipe, assistindo à Pabllo surgindo no palco, poderosa, com um discurso enfático dizendo: "está na hora de transformar o preconceito em respeito".


[1] FOUCAULT, 2013, p. 236.

[2] BUTLER, Judith. Problemas de Gênero, 21ª Ed – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 26

[8] SARMENTO, Daniel. Direito constitucional e Igualdade Étnico-racial. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 78.

[10] PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrassexual. Práticas subversivas de identidade sexual; tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2014, p. 25

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