Opinião

Decreto nº 11.374/2023 e o princípio da anterioridade tributária

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28 de março de 2023, 9h06

No final de 2022, no último dia útil do ano, por meio do Decreto nº 11.322/2022, que iniciaria sua produção de efeitos em 1º de janeiro de 2023 (domingo), o governo de Jair Bolsonaro, por meio do vice Hamilton Mourão, optou por diminuir as alíquotas de PIS e Cofins incidentes sobre receitas financeiras, o que ocasionou forte irresignação por parte do governo eleito, que iniciou seu mandato no dia seguinte.

Diante disso, assim que empossado, o novo governo editou o Decreto nº 11.374/2023, assinado no dia 1º de janeiro 2023 e publicado em 2 de janeiro de 2023, restabelecendo as alíquotas de PIS e Cofins sobre as receitas financeiras, prevendo a sua produção de efeitos desde já, sem a observação da anterioridade nonagesimal, prevista no artigo 150, inciso III, alínea c, da Constituição.

Tal medida foi objeto de inúmeras ações por parte dos contribuintes, que entendem ter sido desrespeitado o princípio da anterioridade nonagesimal, bem como de ação direta de constitucionalidade por parte da União, que visava afastar a aplicabilidade do referido princípio ao caso em análise.

No entendimento da Fazenda Nacional, o Decreto nº 11.374/2023 não precisaria observar a anterioridade, uma vez que o Decreto nº 11.322/2022, que diminuiu as alíquotas de PIS e Cofins, produziu efeitos apenas em dia não útil (domingo) e foi revogado imediatamente pelo novo decreto, não havendo efetivo aumento de tributo, já que o contribuinte sequer poderia ter praticado qualquer operação que teria ensejado o auferimento de receitas financeiras, sujeitas à alíquota minorada.

Além disso, a anterioridade não seria aplicável, já que não houve tempo hábil para que tenha sido gerada expectativa por parte do contribuinte a ser protegida pelo princípio da segurança jurídica.

Com o devido respeito, entendo que tal posicionamento não se compatibiliza com a melhor interpretação da Constituição.

Para avaliar se a anterioridade seria aplicável ao caso, deve-se responder as seguintes perguntas: 1) houve efetivo aumento de tributo, considerando que o Decreto nº 11.322/2022 foi revogado por outro decreto publicado no primeiro dia útil seguinte? 2) Foi o contribuinte surpreendido com a referida alteração, de forma que deve ser protegido em virtude do princípio da segurança jurídica?

Com relação ao primeiro questionamento, entendo que houve, sim, aumento de tributo pelo Decreto nº 11.374/2023, independentemente de os efeitos da diminuição se iniciarem em dia não útil e ainda que se concorde com a premissa de que não houve tempo hábil para que a diminuição pudesse incidir sobre qualquer operação.

Primeiramente, não há qualquer impedimento para que uma regra inicie sua produção de efeitos em dia não útil. Não havendo regra que vede a fixação do marco para a produção de efeitos de um comando normativo a partir de um dia não útil, não há por que se entender que o prazo deve ser postergado para o próximo dia útil da semana.

Além disso, o fato de as alíquotas terem sido minoradas por pouco tempo e o fato de que não houve a efetiva incidência das alíquotas minoradas em algum caso concreto também não descaracterizam o aumento de tributo. O aumento ao que anterioridade se refere é aquele que se dá no plano abstrato. Até porque ainda que o contribuinte não pratique fatos geradores sobre os quase incidiria a alíquota minorada, ele pode planejar praticar.

A regra do artigo 150, inciso III, alínea c, da Constituição é bem objetiva: se no tempo "t1" a alíquota é "x" e no tempo "t2" um diploma normativo afirma que a alíquota passará a ser "x+1", deve-se aguardar o período de 90 dias para que a alteração surta efeitos no caso das contribuições sociais. Pouco importa se entre "t1" e "t2" se passaram minutos, horas, dias, meses ou anos.

No caso concreto, o Decreto nº 11.322/2022 determinou que a partir de 1º de janeiro de 2023 as alíquotas do PIS e da Cofins incidentes sobre as receitas financeiras seriam diminuídas. Com isso, assim que o relógio indicou 00:00 do dia 01/01/2023, as alíquotas de PIS e Cofins passaram a ser de 0,33% e 2%, respectivamente. Um dia depois, o Decreto nº 11.374/2023 revogou a referida alteração e, a partir do dia 02/01/2023, as alíquotas de PIS e Cofins voltaram a ser de 0,65% e 4%, respectivamente. Portanto, é inequívoco que houve um aumento na alíquota, tendo sido realizadas operações com base na alíquota minorada ou não.

Quanto ao argumento referente à segurança jurídica, entendo que uma vez considerado que houve aumento de tributo e que a norma do artigo 150, inciso III, alínea c, da Constituição é aplicável, não cabe analisar se esse aumento de fato causou insegurança jurídica ou não, para fins de determinar a partir de quando a nova regra deve passar a surtir efeitos.   

Até porque, caso acolhido o entendimento da Fazenda, surgiria o seguinte questionamento: por quanto tempo é necessário que uma diminuição de tributos surta efeitos para que seja mandatória a aplicação da anterioridade?

A Constituição, ao dispor que é vedada a cobrança de tributos "antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou", buscou justamente evitar que essa pergunta precisasse ser respondida, estabelecendo uma conduta clara a ser seguida. Publicada lei que prevê aumento de tributo, não importa por quanto tempo a diminuição tenha surtido efeitos, e mesmo que estes tenham se dado em dia não útil, sua aplicação só se inicia após 90 dias, no caso das contribuições sociais.

É verdade que a anterioridade tem fundamento na segurança jurídica, mas também é verdade que houve a positivação de uma regra [1] que não pode ter seu conteúdo ignorado. O desrespeito ao comando claro, com a adição de novos critérios não contido na regra, cria um problema de confiança [2] e de eficiência [3]. De confiança porque sem um critério claro, não se sabe quando a alteração pode surtir efeitos de imediato ou não; e de eficiência porque obriga o intérprete (contribuinte, fisco, legislativo, judiciário) a levar em consideração outros fatores que não contidos na resposta que é dada pela regra, como evidenciado acima. Tais problemas são causa de insegurança jurídica.

Daí porque o conteúdo das regras deve ser observado, mesmo que eventualmente haja um conflito com a sua finalidade subjacente. Ou seja, ainda que se admita que não houve insegurança gerada, a regra deveria ser respeitada. A regra tem razão de ser independente de sua finalidade e sua observância, sim, é que confere segurança jurídica ao ordenamento.

Em um exemplo mais singelo, é como uma regra que estabelece um limite de velocidade em uma rodovia. Ela tem como objetivo indicar qual a velocidade segura para evitar acidentes, mas nem sempre alguém que está dirigindo abaixo do limite o faça de forma segura ou alguém que esteja dirigindo acima do limite o faça imprudentemente. De todo modo, segue-se a regra, sem incrementar outros critérios não contidos no comando, para evitar que o condutor seja obrigado a avaliar vários fatores ao trafegar nas ruas, inclusive para fins de evitar multas de trânsito, sabendo com segurança como pode e como não pode agir [4].

Em síntese, importa mais o que a Constituição disse do que porque disse ou o que queria dizer, em especial no âmbito do direito tributário, que é ramo do direito em que a estabilidade importa em especial.

Portanto, entendo que o Decreto nº 11.374/2023, ao deixar de prever a produção de efeitos do aumento das alíquotas de PIS e Cofins sobre receitas financeiras a partir de noventa dias, violou o comando expresso do artigo 150, inciso III, alínea c, da Constituição.

[1] ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 212.

[2] SCHAUER, Frederick. Playing by the rules. New York: Oxford University Press, 1991. p. 137.

[3] Idem, Ibdem. p. 145.

[4] Exemplo extraído de: SCHAUER, Frederick. Playing by the rules. New York: Oxford University Press, 1991. p. 87.

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