Opinião

Futuro das pessoas idosas dependentes se não houver investimentos nas Ilpis

Autor

  • Cláudio Stucchi

    é advogado especialista em Políticas Públicas de Assistência Social Redes SUAS/SUS Legislação do Terceiro Setor Compliance (Integridade) e Governança Institucional e professor de Mentorias Online (EAD) para Assistentes Sociais Dirigentes e Contadores.

26 de março de 2023, 15h15

É constante o aumento da procura e demanda por acolhimento institucional de pessoas idosas que se encontram no grau 3 de dependência pelos [1] Cras, Creas e demais atores do sistema de garantias dos direitos das pessoas idosas.

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Essa constatação, segundo informações que recebemos semanalmente em nosso escritório, repassadas por clientes e representantes das Ilpis (instituições de longa permanência para idosos) que se relacionam conosco, decorre principalmente pelas modificações nas relações das famílias.

São pessoas longevas debilitadas, acamadas, portadoras de doenças crônicas, degenerativas e demenciais, com limitações fisiológicas e orgânicas, com comorbidades e declínios funcionais e cognitivos, que necessitam de cuidados integrais, desde tratamento médico até de saúde mental!

Nessa perspectiva vale destacar que diversos fatores determinantes e históricos incorrem para o acréscimo acentuado de encaminhamentos para a institucionalização de pessoas idosas: envelhecimento da população brasileira em crescente escala; desigualdades sociais; prevalecimento da pobreza e da miséria (condicionamento econômico de baixa qualidade de vida); insuficiência de políticas públicas setoriais; falta de materialização das leis de proteção às pessoas com 60 anos ou mais e desarranjos familiares, dentre outros.

Dados mencionados nas conferências municipais de Defesa dos Direitos das Pessoas Idosas de diversas localidades e em diversas Lives (transmissões ao vivo online na internet) conduzidas por gerontólogos e agentes públicos das secretarias municipais de assistência social.

Deve-se considerar que, ao mesmo tempo que cresce a demanda externa por acolhimento  existe a demanda interna. Ou seja, dentro de cada Ilpi ocorre o fenômeno natural da "migração" das pessoas idosas residentes com [2] grau 1 e 2, para o grau 3 de dependência. Essas alterações de estado de saúde biológica e mental ocorrem com o avanço de idade de cada residente, tendo como fator preponderante o histórico de vida e as condições sociais de cada um.

Oportuno mencionar a preocupação externada pelos doutos integrantes da Câmara Técnica de Legislação e Normas (CTLN) do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) no Parecer nº 067/2019/CTLN/Cofen, que confirmou a legitimidade da utilização do Sistema de Classificação de Pacientes (SCP) nas ILPIs: "O crescimento das ILPIs ocorreu como resposta às demandas de uma sociedade onde aumenta a expectativa de vida e diminui a disponibilidade de recursos familiares para o cuidado dos idosos. Dentro deste quadro, torna-se urgente o estudo da evolução que essas instituições têm sofrido nos últimos anos, cujo melhor espelho, são as transformações ocorridas na legislação relativa ao asilamento de idosos. O estudo desta legislação no momento atual é de grande importância, pois a desatenção em relação a essa classe de serviços resultará, no futuro, num incontornável prejuízo para o atendimento de idosos, quando as projeções demográficas apontam um boom de velhos com simultânea falência da capacidade da família em oferecer cuidados". 

Mesmo que sejam evidentes os graves contornos que a tormentosa situação revela, não se nota quase nenhuma mobilização entre os atores das redes do Sistema Único de Assistência Social (Suas)  e do Sistema Único de Saúde (SUS), em nenhuma das esferas (federal, estadual, distrital e municipal), para o diálogo e busca conjunta de soluções. Em igual perspectiva, vigora silenciosa inércia e passividade por parte da maioria das Ilpis que, historicamente não possuem o costume de elaborar um planejamento estratégico sistemático. Observa-se que os dirigentes institucionais adotam, sobretudo, uma cultura imediatista de gestão!

Protagonismo que as ILPIs precisam apresentar
Entretanto, se acontecer a articulação entre os atores das redes Suas e SUS e representantes das Ilpis, diversas questões relevantes e inadiáveis poderão ser abordadas, tais como:

— Apresentação pela Ilpi do Plano de Atenção Integral à Saúde da Pessoa Idosa, aprovado pela Vigilância Sanitária, ao gestor municipal de Saúde e ao Conselho Municipal de Saúde, para que esses atores conheçam a estrutura de [3]serviços de atenção primária em saúde, ofertados pela entidade, seus procedimentos e peculiaridades, exigindo, que todas as pessoas idosas institucionalizadas sejam atendidas em todos os fluxos da rede do SUS (com [4]território reconhecido), consoante os princípios da universalidade, equidade e integralidade.

— Conhecimento por parte da Administração Pública municipal e dos demais atores do Sistema de Garantias dos Direitos das Pessoas Idosas, de que a Ilpi não possui mais capacidade de atendimento de pessoas idosas com grau 3. No entanto se houver aporte orçamentário governamental para o custeio parcial dos serviços de saúde ofertados pela Ilpi, a capacidade de atendimento será restabelecida com a contratação de mais recursos humanos necessários (RDC nº 502/2021 e [5] NOB-RH/SUAS).

— Apresentação pela Ilpi, de seu Protocolo de Acolhimento Institucional à Administração Pública Municipal e aos demais atores do Sistema de Garantias dos Direitos das Pessoas Idosas, com vedação de acolhimento de pessoas idosas com transtornos mentais e outras que necessitem de assistência médica permanente e/ou de enfermagem intensiva — e exigência para que o gestor municipal de Saúde execute o programa "Estratégia Saúde da Família" na sede da Ilpi, com fundamento no artigo 15, §1º, inciso IV, da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto da Pessoa Idosa):  Artigo 15. É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de Saúde (SUS), garantindo-lhe o acesso universal e igualitário, em conjunto articulado e contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, incluindo a atenção especial às doenças que afetam preferencialmente os idosos. §1o A prevenção e a manutenção da saúde do idoso serão efetivadas por meio de: IV — atendimento domiciliar, incluindo a internação, para a população que dele necessitar e esteja impossibilitada de se locomover, inclusive para idosos abrigados e acolhidos por instituições públicas, filantrópicas ou sem fins lucrativos e eventualmente conveniadas com o Poder Público, nos meios urbano e rural.

No compasso da realidade, prevalecem, de fato, os encaminhamentos dos Cras (Centro de Referência da Assistência Social) e dos Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), as requisições do Ministério Público e os mandados (tutelas de urgência) expedidos pelo Poder Judiciário. Referenciamos essa afirmação com base nas reuniões consultivas que realizamos com grupos de gestores das secretarias municipais de Assistência Social, com assistentes sociais das Ilpis filantrópicas e com membros de diversos Conselhos Municipais da Pessoa Idosa, de diversas regiões do país.

Evidente que são medidas de proteção às pessoas idosas em estado de vulnerabilidade social e/ou com risco pessoal. No entanto, urge a necessidade de fomento financeiro público às entidades cuidadoras de pessoas idosas, a fim de se evitar um colapso nesse relevante serviço de interesse público e social!

E assim, as Ilpis, que consistem em [6] "ponta da rede", acolhem mais e mais pessoas idosas dependentes e com transtornos mentais, e às vezes, pessoas que não são idosas! Fica muito evidente que nesses casos específicos a assistência social, como política pública resgatadora de direitos, tem menos intensidade no contexto operacional das Ilpis. Por sua vez, a saúde, com as peculiaridades dos cuidados integrais e intensivos, se sobrepõe de modo incontroverso, em razão da quantidade de procedimentos e metodologias aplicadas e nos custos gerados para as Ilpis!

Com efeito, a prevalência dessa "sobrecarga" eleva de modo avassalador os custos dos serviços ofertados pelas Ilpis. E essas organizações da sociedade civil (OSCs), apesar de prestarem relevantes serviços de atenção primária em saúde para a [7]população idosa interna "migrante" e para "novas" pessoas idosas dependentes (recém-admitidas), não possuem o devido respaldo orçamentário da Administração Pública municipal (parceiro governamental e principal tomador dos serviços).

Para fins de orientação é de fundamental importância que cada Ilpi, por meio de sua equipe de referência, realize o mapeamento de sua capacidade de atendimento: por grau de dependência e por número de idosos e de idosas, considerando a configuração (planta baixa) dos dormitórios instalados nas alas masculina e feminina. A seguir temos um exemplo de mapeamento de uma Ilpi hipotética:

Mapeamento da Capacidade de Atendimento da ILPI

Grau de Dependência

 

Homens

Mulheres

Total

Grau I

08

06

14

Grau II

08

06

14

Grau III

06

04

10

Total

22

16

38

Neste exemplo nota-se que a capacidade de atendimento dessa Ilpi hipotética se limita a 38 pessoas idosas. E sua capacidade para atender pessoas idosas institucionalizadas dependentes com grau 3 é de no máximo dez pessoas assistidas (seis homens e quatro mulheres).

O mapeamento facilita a comparação entre o número de cuidadores existentes e o número ideal de cuidadores, quando se considera o dimensionamento disposto na [8] RDC nº 502/2021, estabelecida pela [9] Anvisa. Dessa maneira a administração da Ilpi saberá a quantidade de cuidadores que deverá manter, e, por consequência saberá também qual o valor das receitas financeiras que terá que captar para cobrir esses custos.

Cumpre salientar que, com esse planejamento a instituição conseguirá projetar a [10] reserva de capacidade  para atender as próprias pessoas idosas residentes na Ilpi, que hoje se encontram no grau 2 e que a qualquer momento poderão "migrar" para o grau 3 de dependência. Nesses casos podemos afirmar que se trata da [11] "reserva operacional de capacidade de atendimento".

Se esse planejamento estratégico não for elaborado, poderá ocorrer afetação negativa nas rotinas dos profissionais da equipe técnica interdisciplinar da Ilpi e sobrecarga aos trabalhadores, em especial nos cuidadores, inclusive com o surgimento de doenças ocupacionais do trabalho, gerando riscos de passivo trabalhista.

Nnegligência orçamentária do Poder Público
Vem de encontro com essa realidade de escassez de dotação pública orçamentária a lição de [12]Camarano e Kanso: "…neste livro, apontam para uma necessidade urgente de investimentos a fim de ampliar a oferta de leitos nas instituições brasileiras. Se as projeções se confirmarem, pode-se esperar, para os próximos dez anos, um crescimento no número de idosos demandantes de cuidados não familiares que poderá variar de 100% a 500%. Isto significa que, para atender esta demanda, o número de leitos nas instituições terá de, no mínimo, dobrar".

Como se nota, os direitos humanos e constitucionais das pessoas idosas que apresentam vulnerabilidades e necessidades de cuidados intensivos, estão ameaçados pela constante e crescente falta de vagas nas Ilpis. Em nossas observações profissionais com pessoas do segmento de políticas públicas de proteção social especial, verifica-se que as Ilpis filantrópicas estão operando no limite máximo de suas respectivas capacidades de atendimento.

Nos parece que persiste um descaso do [13]Estado brasileiro em relação à necessidade de fortalecimento econômico e material das Ilpis filantrópicas. Nessa linha de pensamento destaca-se o magistério de: [14] Giacomin e Couto: "Dito de outra forma, o mesmo Estado que se propõe a normatizar a fiscalização dos serviços não os apoia efetivamente com recursos ou participação do serviço de saúde no cuidado às pessoas idosas institucionalizadas, exceto em situações nas quais o gestor local é sensível a esta questão".

Cabe ressaltar com todas as letras uma lamentável constatação, do ponto de vista público-orçamentário: há décadas a maioria das Ilpis filantrópicas brasileiras vêm prestando serviços de cuidados intensivos de saúde às pessoas idosas abrigadas em suas unidades domiciliares, graças às contribuições recebidas de seus assistidos, doações de pessoas físicas e jurídicas e resultados líquidos de eventos beneficentes realizados. No entanto, as Ilpis não recebem nenhum repasse orçamentário do Poder Público para o custeio de serviços de saúde!

Essas abnegadas "casas" oferecem suas estruturas técnicas e operacionais de saúde, sobretudo em atenção primária: na prevenção de doenças, na reabilitação física, em boas práticas de higiene pessoal, na ocupação terapêutica, no tratamento de feridas e de diversas patologias, nos cuidados paliativos, dentre outras atividades essenciais para a longevidade saudável e dignidade das pessoas idosas assistidas.

No entanto, quase não há o reconhecimento da Administração Pública, tanto em apoio material ou operacional e nem tampouco em dotação e aporte orçamentário para o custeio dos serviços de saúde que as Ilpis ofertam ao seu público-alvo!

Considerações Finais
Um aspecto que muito preocupa, consiste na falta de protagonismo e desenvoltura da maioria dos conselhos municipais da Pessoa Idosa na questão esculpida neste artigo. Presumimos, com base nas diversas capacitações que conduzimos em vários [15] CMPIs e interações com os conselheiros municipais e análises de suas atas e instrumentais correlatos, que a manifestação a respeito da necessidade de maiores investimentos orçamentários nos programas e serviços ofertados pelas Ilpis às pessoas idosas, não fazem parte da pauta das reuniões dos referidos conselhos, nem tampouco de suas comissões temáticas.

Conforme demonstrado no presente artigo, existem alternativas de solução para as questões problemáticas que afligem as Ilpis que integram o Sistema de Garantias dos Direitos das Pessoas Idosas. Todavia, as dificuldades precisam ser expostas e debatidas, de maneira articulada e deve haver comprometimento de todas as partes envolvidas.

Seguramente as Ilpis, com a devida assessoria jurídica especializada, poderão exercer o papel de organizações indutoras para o aperfeiçoamento dessas instâncias intersetoriais! As Ilpis possuem larga experiência na defesa dos direitos constitucionais e humanos das pessoas idosas vulneráveis, principalmente pelo relevante papel desenvolvido pelas suas assistentes sociais!

O envelhecimento humano deve ser tratado com a máxima urgência e prioridade. Se os problemas crônicos e históricos não forem discutidos e equacionados, poderá acontecer um colapso nos sistemas públicos-políticos.

Em que pese a existência de tantos desafios, há esperanças de que as pessoas idosas de hoje e do futuro tenham o tratamento e os cuidados que o Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2003) e a Lei da Política Nacional da Pessoa Idosa (Lei nº 8.842/1994) preconizam! Que prevaleçam as leis, a vontade política e os esforços conjuntos dos organismos do primeiro e do terceiro setor!

 


[1] Cras: Centro de Referência de Assistência Social e Creas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social.

[2] Grau de dependência I: idosos independentes, mesmo que requeiram uso de equipamentos de auto-ajuda. Grau de dependência II: idosos com dependência em até três atividades de autocuidado para a vida diária tais como: alimentação, mobilidade, higiene, sem comprometimento cognitivo ou com alteração cognitiva controlada.

[3] É de fundamental importância destacar a conceituação elaborada por Watanabe que assim leciona: "[…] a ILPI é um serviço de assistência de natureza médico-social, sociossanitária e deve proporcionar cuidados e ser um lugar para se viver com dignidade. Seus cuidados devem abranger a vida social, emocional, as necessidades de vida diária e assistência à saúde, caracterizando-se assim como um serviço híbrido, de caráter social e de saúde". WATANABE, Helena Akemi Wada; DI GIOVANNI, Vera Maria. Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI). In: Envelhecimento & Saúde (Boletim do Instituto de Saúde), p. 69-71, São Paulo, Abr. 2009.

[4] A moradia das pessoas idosas institucionalizadas fica instalada na sede da ILPI. Portanto a moradia faz parte do território de atuação e de responsabilidade das equipes de atenção básica e de atenção domiciliar da Rede do SUS.

[5] Resolução nº 269, de 13 de dezembro de 2006, estabelecida pelo Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS. Aprova a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social (NOB-RH/Suas).

[6] Termo usualmente falado em reuniões com os atores das Redes Suas e assistentes sociais das Ilpis filantrópicas que pode ser interpretado desta forma: as Ilpis são as instituições onde os procedimentos de solicitação de vaga de acolhimento de pessoa idosa são finalizados.

[7] Para fins didáticos e para maior elucidação do tema, utilizamos essa expressão para a identificação exemplificativa de pessoas idosas institucionalizadas que possuíam a condição avaliativa em grau I e II e que, posteriormente migraram para a condição avaliativa de grau III (dependentes, sem nenhuma autonomia).

[8] Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. RDC nº 502, de 27  de maio de 2021, publicada no Diário Oficial da União em 31 de maio de 2021, na seção 1, página 110.

[9] Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

[10] Estrutura mínima que garanta o atendimento integral e todos os cuidados necessários para as pessoas idosas institucionalizadas que a qualquer momento passarão a ser dependentes. A referida reserva é uma forma de evitar que os direitos dessas pessoas idosas assistidas tenham perecimento por falta de estrutura interna da Ilpi.

[12] CAMARANO, Ana Amélia (Organizadora). Cuidados de longa duração para a população idosa: um novo risco social a ser assumido? – Rio de Janeiro: Ipea, 2010, p.

[13] Em sentido amplo (União, Estados, Distrito Federal e Municípios).

[14] GIACOMIN, Karla C.; COUTO, Eduardo C. A fiscalização das ILPIs: o papel dos Conselhos, do Ministério Público e da Vigilância Sanitária. In: ALCÂNTARA, Alexandre de Oliveira; CAMARANO, Ana Amélia; GIACOMIN, Karla Cristina. Política nacional do idoso: velhas e novas questões. Rio de Janeiro: Ipea, 2016, p. 174.

[15] Conselhos Municipais da Pessoa Idosa.

Autores

  • é advogado, especialista em Políticas Públicas de Assistência Social, Redes SUAS/SUS, Legislação do Terceiro Setor, Compliance (Integridade) e Governança Institucional e professor de Mentorias Online (EAD) para Assistentes Sociais, Dirigentes e Contadores.

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