Opinião

Alternativas para a tramitação de medidas provisórias no Congresso

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25 de março de 2023, 9h23

Discussões sobre o modelo de tramitação de medidas provisórias vêm sendo travadas desde… Ora, desde a Constituinte em 1987, quando o instituto foi pensado para substituir o decreto-lei.

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De lá para cá, quase todos os modelos possíveis de tramitação já foram aplicados ou pensados: instrução em comissão mista e apreciação em sessão conjunta; instrução em comissão mista e apreciação bicameral; instrução em uma comissão mista permanente; instrução nas CCJs de cada Casa; início alternado da tramitação entre as casas; tempo mínimo de tramitação em cada Casa…

O modelo constitucional vigente de 2012 a 2020 contava com a instrução conjunta da medida provisória em comissão mista constituída ad hoc, isto é, uma comissão era constituída para cada medida provisória editada. Após o emendamento geral, aberto a todos os membros do Congresso nos seis primeiros dias de vigência da MP, cabia à comissão aprovar um parecer e encaminhar a matéria para votação nos plenários, primeiro da Câmara e depois do Senado.

O funcionamento das comissões mistas ampliou o debate público, na medida em que permitiu maior participação da sociedade civil, a realização de audiências públicas, a prestação de informações por parte do governo e um debate técnico mais aprofundado [1]. Aumentou-se o escrutínio sobre o trabalho dos relatores e permitiu-se uma distribuição mais equânime das relatorias [2].

Além disso, houve um reequilíbrio bicameral, primeiro porque os senadores puderam participar das discussões sobre a MP ainda em sua fase inicial nas comissões mistas, segundo porque, regimentalmente, há uma alternância entre as Casas no que tange às relatorias. Assim, metade das MPs conta como relator um senador, sendo a outra metade relatada por deputados, o que, evidentemente, confere maior destaque à atividade dos senadores em comparação com o modelo anterior.

O grande entrave se deu com relação ao tempo de tramitação nas comissões. Seja pela complexidade do tema, o que naturalmente consome bom tempo de análise, seja mesmo como tática parlamentar para evitar alterações em plenário [3], o fato é que as comissões mistas concentraram a maior parte do tempo de tramitação de uma MP, deixando aos plenários da Casa pouco tempo de análise. O jogo passou a ser jogado nas comissões. Não à toa, observou-se grande desgaste da base de apoio ao governo de 2013 a 2015 em virtude do maior poder de barganha conferido aos parlamentares na apreciação das medidas provisórias.

Se no modelo em que a MP começa a tramitar diretamente na Câmara o Senado tende a ser prejudicado por receber a matéria perto do fim do prazo, agora a dificuldade temporal se estendeu igualmente às duas Casas, demandando soluções internas para lidar com a questão. Por exemplo, ainda em 2013 a Presidência do Senado tomou decisão de não submeter à voto qualquer MP que chegasse com menos de sete dias para o fim do prazo. Decisões semelhantes foram tomadas pela presidência da Câmara em 2015 e em 2017, balizando, ainda que informalmente, o prazo de atuação das comissões mistas.

Rito na pandemia e as emendas de plenário
Com a pandemia, houve uma costura jurídica entre o Congresso e o STF (ADPF 663) que resultou na assinatura do Ato Conjunto das Mesas do Senado e da Câmara nº 1, de 2020, conferindo sistemática provisória de tramitação às MPs, dispensando a análise da comissão mista e levando a matéria direto ao plenário da Câmara.

A Câmara voltou a ter o controle temporal sobre a tramitação das MPs, bem como sobre todas as relatorias. Foi, em suma, o modelo que funcionou na prática de 2001 a 2012, mas com uma diferença crucial.

No modelo de tramitação instituído pelo Ato Conjunto nº 1/2020, foi permitida a apresentação de emendas de plenário. O emendamento geral, aberto a todos os parlamentares, continuou na etapa inicial de tramitação das MPs; mas agora era possível também a apresentação de emendas em plenário até o início da discussão. As emendas de plenário, assim, ampliaram o leque de escolhas disponíveis aos parlamentares, facilitando a construção de acordos partidários e permitindo a redação de um texto de consenso. E isso passou a ocorrer tanto na Câmara quanto no Senado.

As emendas de plenário constituíram inegável avanço na tramitação das MPs. Como se trata de matéria com vigência imediata, os efeitos de suas alterações jurídicas já são sentidos pelos setores envolvidos. Não se trata aqui de projeto de lei, onde especialistas do setor discutem em tese o efeito de possíveis alterações legais. Uma vez que a medida provisória já se faz sentir na ponta, é o próprio destinatário da medida que passa a se mobilizar para pedir alterações ao Congresso. Mas esse processo leva certo tempo [4].

O modelo regimental de emendamento geral apenas no início de tramitação das MPs engessava a atuação política, posto que não permitia alterações ulteriores quando a discussão sobre a matéria já se encontrava mais madura, com o aporte de mais informações tanto de especialistas quanto dos setores afetados pela medida.

Para contornar tal limitação, sucedâneos regimentais eram utilizados à exaustão, como as emendas aglutinativas na Câmara ou as emendas de redação no Senado.

Em se tratando de um presidencialismo de coalizão como o brasileiro, qualquer instrumento legislativo que facilite a busca de acordos políticos é bem-vindo, para que não se tenha de recorrer, de um lado, à obstrução que adota uma estratégia de all or nothing, e, de outro, à "tratoragem" regimental. Portanto, ao se considerar um modelo para a tramitação de MPs, certamente o momento de emendamento, ou melhor dizendo, os momentos possíveis de emendamento ao texto principal, é fator a se ter em conta, dado a experiência recente. 

O papel do Senado
Mas, afinal, a instalação das comissões mistas vai ou não beneficiar o Senado?

Ao possibilitar que os senadores participem da discussão ainda na fase das comissões, e que assumam metade das relatorias, o modelo constitucional traz, sim, benefícios ao Senado.

Porém, a questão temporal tende a ser ainda mais agravada. Com o aumento de mais uma etapa no trâmite das MPs, tanto a Câmara quanto o Senado tendem a analisar as medidas provisórias já no final do prazo.

O agravante é que aqui há uma dispersão decisória, dificultando a atribuição de responsabilidades ou a cobrança de atores. No modelo em que a Câmara detém, sozinha, o controle temporal das MPs, qualquer responsabilidade do atraso na análise recairá sobre o Presidente da Câmara. Se ele pode esticar em excesso o tempo de análise na Câmara, em prejuízo dos senadores, pode, igualmente, ser cobrado e responsabilizado. O mesmo não ocorre na vigência das comissões mistas, onde, devido à dispersão, é difícil a cobrança de responsabilidades.

Daí o dilema para os senadores: maior participação nas comissões, mas menos tempo de análise em plenário. E os senadores que não têm assento nas comissões? E a impossibilidade de alterar o texto em plenário pela limitação temporal?

Em trabalho a ser publicado, Bedritichuk e Veroneze demonstram a baixa quantidade de alterações promovidas pelo Senado nas MPs não orçamentárias de 2012 a 2021. Em apenas 22 vezes em todo o período analisado o Senado aprovou alterações nas MPs, número que corresponde a apenas 7% do total de MPs analisadas pela Câmara Alta.

O dado mais interessante é que dessas 22 MPs alteradas pelo Senado, dez foram alteradas no ano de 2021. E, ainda mais interessante, dessas dez MPs alteradas em 2021, 9 o foram por intermédio de emendas de plenário. Esses dados, somados à análise feita pelos autores do tempo disponível para apreciação do Senado, sugerem que as alterações promovidas pelos senadores às MPs têm mais ligação com a possibilidade de apresentar emendas de plenário do que com o fator temporal em si.

Esse, portanto, é outro argumento que pesa a favor da continuidade das emendas de plenário em um novo modelo.   

Alternativas propostas
Modelos já pensados no passado começam a ser rediscutidos nesse contexto. Como visto, não há solução simples, e minúcias do processo legislativo, ignoradas no grande debate, apresentam impactos significativos, como mostrado na questão das emendas de plenário.

Cada modelo traz suas complexidades e é pensado tendo em vista determinado objetivo. Abaixo segue uma relação das principais questões consideradas:

— prazo fixo para cada arena: acaba com o problema temporal ao determinar que cada arena decisória (comissão mista, Câmara e Senado) tenha prazo certo de análise. O grande problema desse modelo é articular um prazo fixo para a comissão e a obrigatoriedade de seu parecer. Se houver um prazo fixado para a comissão, o que ocorre se ela não apresentar seu parecer tempestivamente? Se a solução for o prosseguimento da tramitação à Câmara, a tendência natural é o esvaziamento da comissão mista, o que, de fato, já ocorreu no passado. Se a MP perder a eficácia na comissão, tais colegiados se convertem então num campo de batalha, onde qualquer obstrução bem conduzida por poucos parlamentares pode decretar a morte da agenda do governo. Repare que são essas duas possibilidades de interpretação que travaram a promulgação da PEC 91/2019, já "aprovada" nas duas Casas.

— regime de urgência na comissão mista: permite o aprofundamento dos debates na comissão mista, com todas as vantagens da análise prévia em um colegiado menor, conferindo instrumentos regimentais para acelerar a votação em tais arenas e, assim, evitar a obstrução que prejudica os plenários. A dificuldade está em saber se tais instrumentos serão de fato efetivos para a finalidade a que se propõem. 

— comissão mista permanente: ideia sempre aventada quando se discute a alteração constitucional das MPs, pois uma única comissão pode criar uma jurisprudência própria e dar efetividade ao controle dos pressupostos das MPs e também evita a dispersão decisória. Porém, confere muito poder a um só ator (o presidente) e, dada a diversidade de temas de medidas provisórias, não alcança o principal ganho das comissões, que é a especialização temática dos debates.

— comissão mista não paritária: aumenta o número de deputados no colegiado misto, permitindo participação mais proporcional dessa Casa nos trabalhos da comissão. No entanto, o modelo dificulta o processo decisório, uma vez que cada votação deve ser feita separadamente em cada Casa, o que, inclusive, aumenta o poder de veto de cada uma delas separadamente.

— comissões de cada Casa: desloca a instrução conjunta, promovida por uma comissão mista que reúne deputados e senadores, para alguma comissão própria de cada Casa, trazendo uma tramitação totalmente bicameral. Se começar a tramitar pela Câmara, o modelo acaba alijando o Senado tanto da apresentação de emendas quanto da participação em comissão mista na fase inicial das MPs. Há a predominância da Câmara, pois, na construção inicial de acordos, o Senado não participará de nenhuma forma, nem com emendas, nem com contribuições na comissão temática. Além disso, como a MP dispõe de prazo, há a tendência de um retrabalho nas Casas no que tange à análise (audiências repetidas com os mesmos atores). Por fim, a depender do tratamento dado em cada Casa, pode redundar novamente num "império do relator".

— início alternado de tramitação: já foi inclusive aprovado pelo Senado (PEC 1/1995) e permite maior igualdade entre as duas Casas, mas encontra forte resistência entre os deputados, que perdem a primazia de Casa iniciadora, especialmente em se tratando de matéria de iniciativa do Executivo. Além disso, o modelo pode gerar as "MPs laranjas", editadas apenas para evitar que determinada MP comece sua tramitação em uma das Casas.

Seja como for, o Congresso tem diante de si novamente a questão das medidas provisórias, devendo conciliar em algum modelo constitucional ou regimental valores que muitas vezes andam em direções opostas, como a apreciação das MPs no prazo constitucional e o necessário aprofundamento dos debates, ou o prestígio necessário ao trabalho democrático e eficiente da comissão mista e algum mecanismo para não prejudicar a análise em plenário.

 


[1] BEDRITICHUK, Rodrigo R. Da popularidade ao impeachment: medidas provisórias, mudanças institucionais e a crise política no Governo Dilma. Brasília: Senado Federal, 2017.

[2] FERREIRA JÚNIOR, Nivaldo Adão. Instituições informais, ambiente institucional e presidencialismo de coalizão: redesenho do processo político decisório no Congresso Nacional a partir de estudo de caso para as Medidas Provisórias. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

[3] BEDRITICHUK, Rodrigo R. Medidas Provisórias e seu papel no presidencialismo de coalizão. Revista IELP de Estudos Legislativos e Políticas Públicas, Brasília, p. 32-42, 24 fev. 2021.

[4] AMORIM NETO, Octávio e TAFNER, Paulo. Governos de coalizão e mecanismos de alarme de incêndio no controle legislativo das Medidas Provisórias. In: DADOS  Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 45, nº 1, 2002.

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