Falência da sustentação oral
no processo civil brasileiro
24 de março de 2023, 6h38
No discurso do processo civil brasileiro é recorrente a ideia de que a sustentação oral corresponde a uma garantia essencial do jurisdicionado. Sob esse ângulo, é também comum que o elemento seja relacionado diretamente a fatores como o duplo grau de jurisdição ou, mesmo, o devido processo legal e o a acesso à justiça. Sustenta-se, como consequência, que residiria aí uma peça determinante para o quebra-cabeças da matéria.
O confronto entre essa premissa e o mundo dos fatos, contudo, parece vir se mostrando desafiador. Na realidade, bastam algumas indagações, pautadas em nosso cotidiano forense, para notar que (ao menos no processo civil [1]) o modelo de sustentações orais hoje existente se encontra em colapso. O cenário exige reflexões e desconstruções, permitindo seu realinhamento.
De fato, que espécie de impacto a atual conformação da garantia tem agregado à administração e à concretização do serviço justiça? Como o emprego das sustentações orais, em demandas civis, tem condicionado a tramitação de processos nos Tribunais e a condução de suas sessões de julgamento? Em termos práticos, a garantia em questão é, sempre, utilizada de modo a verdadeiramente contribuir com o deslinde do processo?
Acreditamos que a resposta às indagações coloca em evidência um tema que, muitas vezes, assume a condição de tabu no processo civil brasileiro. Trata-se do fato de o atual modelo de sessões de julgamento ter se tornado insustentável. A longuíssima duração dos atos, para a qual as sucessivas sustentações nem sempre alinhadas às funções do instituto contribuem decisivamente, impõe prejuízos a todos os envolvidos. Esse gargalo, embora por vezes estranho ao processo dos livros, cria um embaraço gigantesco ao processo da realidade.
Indo além, a visão sacralizada e individualista [2] da garantia em questão faz com que o problema, muitas vezes, seja visto como prejudicial apenas à magistratura. Nesses casos, partindo de um discurso maniqueísta de nós contra eles, argumenta-se que a prerrogativa de sustentação seria titularizada pela advocacia — incumbindo ao Judiciário a adoção de medidas para acomodá-la. Isso, mesmo que mediante soluções simplistas e inexequíveis ("realizem mais sessões"; "contratem mais servidores e julgadores", etc).
Em nossa visão, contudo, essa visão conflituosa e binomial não deve prosperar. E isso por diferentes fatores: 1) primeiramente, pois as respostas simplistas em questão imporiam ao próprio contribuinte fardos (ainda mais) pesados para a manutenção do (já custoso) serviço justiça; 2) além disso, porque o processo civil contemporâneo não deveria mais autorizar (se é que algum dia autorizou) uma visão antagônica entre partes e julgador. No ponto, é oportuno lembrar a própria previsão constitucional de que o advogado é indispensável à administração justiça — o que justifica que também atue com zelo e candura para esse fim; e, 3) por último, e de maneira mais pragmática, porque a atual lógica de sustentações orais é prejudicial ao próprio advogado que deseja fazer uso finalística e concretamente adequado do instituto.
Realmente, seguindo um movimento mais geral do processo brasileiro, o emprego de sustentações orais parece estar submerso em um contexto de tragédia dos comuns [3]: por se assegurar que a prerrogativa seja utilizada de qualquer maneira, por qualquer ator e em quase qualquer caso (CPC, artigo 937), seu emprego é banalizado e perde em potência [4].
Não bastasse, o desenho faz com que o interessado na sustentação deva se submeter a um caminho tortuoso para concretizá-la, aguardando por horas a fio o exame de processos que não lhe dizem respeito e, comumente, vendo seu processo migrar de sessão em sessão.
Nesse quadro, consideramos que o estudioso do processo deve pensar em formas de readequar as diferentes cartas trazidas à mesa. E isso, primeiramente, porque não nos parece existir qualquer garantia processual que possa ser tida como absoluta ou ilimitada [5]. Pelo contrário, em um arranjo proporcional, é indispensável que as diferentes linhas estruturais, culturais e normativas da disciplina sejam colocadas em um constante (e complexo) trabalho de afinamento [6]. E o mesmo vale para o tema da sustentação oral. É preciso repensar a sua dinâmica, de modo coerente com fatores como a gestão judiciária e a razoável duração do processo. Sua previsão não deve ser sacralizada, exigindo adequação e ponderação.
Como exemplo lapidar desse quadro, recorda-se que é praxe de diferentes tribunais (por vezes incluída em norma regimental [7]) que, em momento anterior à sustentação oral isolada (i.e, deduzida por apenas um dos polos da disputa), proceda-se à comunicação do patrono responsável quanto ao seu eventual êxito no recurso. O propósito é bastante óbvio: tendo havido sucesso, inexistiria motivo para a posterior sustentação oral; se o ato se presta ao convencimento, não haveria justificativa para a sua ocorrência nas hipóteses em que o julgador já se dissesse convencido — tratando-se de providência que, apenas, tomaria tempo de todos os presentes e protelaria a sessão.
Ocorre que, na prática forense, não é de todo incomum que, mesmo em tais hipóteses, manifeste-se interesse na realização da sustentação oral. Seja por questões contratuais, seja por eventuais desalinhamentos na relação de agência entre representante e representado [8], o ato é assim consolidado. Mesmo com o jogo ganho, impede-se, sem motivo processualmente relevante, que o juiz proceda ao seu apito final. Nessas hipóteses, consideramos que a sustentação oral deveria ser peremptoriamente vetada, vez que inútil ao deslinde do processo.
Essa espécie de realinhamento nos parece ainda mais oportuna por força de um fator consequencialista relativamente claro: a manutenção da atual moldura fará com que a sustentação oral ou se converta cada vez mais em uma fachada de legitimação ou possa futuramente encontrar seu fim. Dessa forma, acreditamos que conformar o instituto é indispensável para permitir a sua sobrevivência e a sua real funcionalização; para que sua atual circunstância de falência se converta, ao menos, em um gradual processo recuperacional.
Nesse quadro, uma interessante proposta, que está longe de ser inédita, seria a inversão da ordem atualmente existente na tramitação do processo nos Tribunais. Sob esse prisma, se hoje a sustentação oral tem assento antes da exposição de voto pelo relator, seria oportuno que ela passasse a ocorrer após esse momento. Isso, com o propósito de permitir um real exercício de diálogo com as razões que levam o julgador ao provimento ou ao desprovimento da medida recursal.
Como destacado, essa proposta está longe de ser inédita — tendo sido explicitamente trazida até mesmo em sede legislativa, por força de previsão posta no Estatuto da Advocacia [9]. O dispositivo, porém, teve sua constitucionalidade rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal, sob os argumentos centrais de que não caberia à parte se pronunciar após efetivada a prestação jurisdicional (o que, no entendimento posto, seria consolidado já com a prolação do voto) e de que o julgador não deveria ocupar assento no contraditório (STF, ADI 1127).
Respeitosamente, contudo, a perspectiva em questão não nos parece se confirmar ou mesmo dialogar com o atual design esperado do processo. Na realidade, a possibilidade de inversão dos fatores serviria para permitir que as alegações orais cumprissem de maneira mais consolidada sua finalidade central de convencimento. Mesmo sob um ângulo microscópico e endoprocessual, então, haveria justificativa para a mudança.
Para os atuais propósitos, porém, é ainda mais importante notar que essa inversão deveria atrair um maior ônus argumentativo para a sustentação. Ora, sabendo exatamente as razões pelas quais o recurso é provido ou desprovido, poderia ser exigível que o litigante se valesse da Tribuna com o propósito claro e específico de dialogar, in totum, com tal fundamentação. Com isso, seria viável conferir maior objetividade a esse ato – evitando a apresentações de sumas ou de relatos desprovidos de maior aderência com a matéria em debate. Essa guinada seria benéfica a todos.
Enfim, seja ou não por essa via, o que parece certo é que é necessária a adoção de rupturas com o cenário hoje existente. Esse percurso não se volta a combater a pertinência da sustentação oral, mas a admitir seu cotejo com a realidade e com a totalidade de valores do processo. Isso, inclusive, para proteger e prestigiar o instituto.
[1] Dada a diversidade inerente aos campos, não se adota aqui, assim, discurso com pretensão de aplicabilidade ampla a uma eventual teoria geral do processo. Ver, OSNA, Gustavo. Processo civil, cultura e proporcionalidade. São Paulo: Ed. RT, 2016.
[2] Ver, ISSACHAROFF, Samuel. Civil Procedure. New York: Foundation Press, 2005. Também, CHASE, Oscar G. Direito, Cultura e Ritual. Trad. Sérgio Cruz Arenhart e Gustavo Osna. São Paulo: Editora Marcial Pons, 2014.
[3] Ver, passim, WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil. São Paulo: Ed. RT, 2019. Ver aqui, também, MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos e a função judicial no contemporâneo Estado de Direito. 2 ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2014.
[4] Lembra-se, aqui, que nossa atual estrutura não possui qualquer segmentação entre advogados habilitados ou não para realizar sustentação oral em plenário — conferindo referido crivo a todos. Paradoxalmente, porém, nada há no Exame de Ordem que afira, sequer de maneira mínima, essa aptidão.
[5] Assim, OSNA, Gustavo. Processo civil, cultura e proporcionalidade. São Paulo: Ed. RT, 2016.
[6] ARENHART, Sérgio Cruz; OSNA, Gustavo. Complexity, proportionality and the 'pan-procedural' approach: some bases of contemporary civil litigation. In. International Journal of Procedural Law. nº 4. Cambridge: Intersentia, 2014.
[7] Preceitua o Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Paraná, por exemplo, que "caso o relator antecipe a conclusão do seu voto, a parte poderá desistir da sustentação oral previamente requerida, sendo-lhe assegurada a palavra se houver voto divergente" (artigo 208, §3º).
[8] Ver, JENSEN, Michael. MECKLING, William. Theory of the firm: managerial behavior, agency costs and ownership structure. In. Journal of financial economics, v. 3, nº 4. Amsterdam: North Holland Publishing Company, 1976.
[9] Lei 8.906/94. Artigo 7. São direitos do advogado: IV – sustentar oralmente as razões de qualquer recurso ou processo, nas sessões de julgamento, após o voto do relator, em instância judicial ou administrativa, pelo prazo de quinze minutos, salvo se prazo maior for concedido.
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