Opinião

Falência da sustentação oral
no processo civil brasileiro

Autor

  • Gustavo Osna

    é advogado professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) e do programa de graduação em Direito da UFPR doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR mestre em Direito das Relações Sociais e bacharel em Direito pela UFPR e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

24 de março de 2023, 6h38

No discurso do processo civil brasileiro é recorrente a ideia de que a sustentação oral corresponde a uma garantia essencial do jurisdicionado. Sob esse ângulo, é também comum que o elemento seja relacionado diretamente a fatores como o duplo grau de jurisdição ou, mesmo, o devido processo legal e o a acesso à justiça. Sustenta-se, como consequência, que residiria aí uma peça determinante para o quebra-cabeças da matéria.

O confronto entre essa premissa e o mundo dos fatos, contudo, parece vir se mostrando desafiador. Na realidade, bastam algumas indagações, pautadas em nosso cotidiano forense, para notar que (ao menos no processo civil [1]) o modelo de sustentações orais hoje existente se encontra em colapso. O cenário exige reflexões e desconstruções, permitindo seu realinhamento.

De fato, que espécie de impacto a atual conformação da garantia tem agregado à administração e à concretização do serviço justiça? Como o emprego das sustentações orais, em demandas civis, tem condicionado a tramitação de processos nos Tribunais e a condução de suas sessões de julgamento? Em termos práticos, a garantia em questão é, sempre, utilizada de modo a verdadeiramente contribuir com o deslinde do processo?

Acreditamos que a resposta às indagações coloca em evidência um tema que, muitas vezes, assume a condição de tabu no processo civil brasileiro. Trata-se do fato de o atual modelo de sessões de julgamento ter se tornado insustentável. A longuíssima duração dos atos, para a qual as sucessivas sustentações nem sempre alinhadas às funções do instituto contribuem decisivamente, impõe prejuízos a todos os envolvidos. Esse gargalo, embora por vezes estranho ao processo dos livros, cria um embaraço gigantesco ao processo da realidade.

Indo além, a visão sacralizada e individualista [2] da garantia em questão faz com que o problema, muitas vezes, seja visto como prejudicial apenas à magistratura. Nesses casos, partindo de um discurso maniqueísta de nós contra eles, argumenta-se que a prerrogativa de sustentação seria titularizada pela advocacia  incumbindo ao Judiciário a adoção de medidas para acomodá-la. Isso, mesmo que mediante soluções simplistas e inexequíveis ("realizem mais sessões"; "contratem mais servidores e julgadores", etc).

Em nossa visão, contudo, essa visão conflituosa e binomial não deve prosperar. E isso por diferentes fatores: 1) primeiramente, pois as respostas simplistas em questão imporiam ao próprio contribuinte fardos (ainda mais) pesados para a manutenção do (já custoso) serviço justiça; 2) além disso, porque o processo civil contemporâneo não deveria mais autorizar (se é que algum dia autorizou) uma visão antagônica entre partes e julgador. No ponto, é oportuno lembrar a própria previsão constitucional de que o advogado é indispensável à administração justiça  o que justifica que também atue com zelo e candura para esse fim; e, 3) por último, e de maneira mais pragmática, porque a atual lógica de sustentações orais é prejudicial ao próprio advogado que deseja fazer uso finalística e concretamente adequado do instituto.

Realmente, seguindo um movimento mais geral do processo brasileiro, o emprego de sustentações orais parece estar submerso em um contexto de tragédia dos comuns [3]: por se assegurar que a prerrogativa seja utilizada de qualquer maneira, por qualquer ator e em quase qualquer caso (CPC, artigo 937), seu emprego é banalizado e perde em potência [4].

Não bastasse, o desenho faz com que o interessado na sustentação deva se submeter a um caminho tortuoso para concretizá-la, aguardando por horas a fio o exame de processos que não lhe dizem respeito e, comumente, vendo seu processo migrar de sessão em sessão.

Nesse quadro, consideramos que o estudioso do processo deve pensar em formas de readequar as diferentes cartas trazidas à mesa. E isso, primeiramente, porque não nos parece existir qualquer garantia processual que possa ser tida como absoluta ou ilimitada [5]. Pelo contrário, em um arranjo proporcional, é indispensável que as diferentes linhas estruturais, culturais e normativas da disciplina sejam colocadas em um constante (e complexo) trabalho de afinamento [6]. E o mesmo vale para o tema da sustentação oral. É preciso repensar a sua dinâmica, de modo coerente com fatores como a gestão judiciária e a razoável duração do processo. Sua previsão não deve ser sacralizada, exigindo adequação e ponderação.

Como exemplo lapidar desse quadro, recorda-se que é praxe de diferentes tribunais (por vezes incluída em norma regimental [7]) que, em momento anterior à sustentação oral isolada (i.e, deduzida por apenas um dos polos da disputa), proceda-se à comunicação do patrono responsável quanto ao seu eventual êxito no recurso. O propósito é bastante óbvio: tendo havido sucesso, inexistiria motivo para a posterior sustentação oral; se o ato se presta ao convencimento, não haveria justificativa para a sua ocorrência nas hipóteses em que o julgador já se dissesse convencido  tratando-se de providência que, apenas, tomaria tempo de todos os presentes e protelaria a sessão.

Ocorre que, na prática forense, não é de todo incomum que, mesmo em tais hipóteses, manifeste-se interesse na realização da sustentação oral. Seja por questões contratuais, seja por eventuais desalinhamentos na relação de agência entre representante e representado [8], o ato é assim consolidado. Mesmo com o jogo ganho, impede-se, sem motivo processualmente relevante, que o juiz proceda ao seu apito final. Nessas hipóteses, consideramos que a sustentação oral deveria ser peremptoriamente vetada, vez que inútil ao deslinde do processo.

Essa espécie de realinhamento nos parece ainda mais oportuna por força de um fator consequencialista relativamente claro: a manutenção da atual moldura fará com que a sustentação oral ou se converta cada vez mais em uma fachada de legitimação ou possa futuramente encontrar seu fim. Dessa forma, acreditamos que conformar o instituto é indispensável para permitir a sua sobrevivência e a sua real funcionalização; para que sua atual circunstância de falência se converta, ao menos, em um gradual processo recuperacional.

Nesse quadro, uma interessante proposta, que está longe de ser inédita, seria a inversão da ordem atualmente existente na tramitação do processo nos Tribunais. Sob esse prisma, se hoje a sustentação oral tem assento antes da exposição de voto pelo relator, seria oportuno que ela passasse a ocorrer após esse momento. Isso, com o propósito de permitir um real exercício de diálogo com as razões que levam o julgador ao provimento ou ao desprovimento da medida recursal.

Como destacado, essa proposta está longe de ser inédita  tendo sido explicitamente trazida até mesmo em sede legislativa, por força de previsão posta no Estatuto da Advocacia [9]. O dispositivo, porém, teve sua constitucionalidade rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal, sob os argumentos centrais de que não caberia à parte se pronunciar após efetivada a prestação jurisdicional (o que, no entendimento posto, seria consolidado já com a prolação do voto) e de que o julgador não deveria ocupar assento no contraditório (STF, ADI 1127).

Respeitosamente, contudo, a perspectiva em questão não nos parece se confirmar ou mesmo dialogar com o atual design esperado do processo. Na realidade, a possibilidade de inversão dos fatores serviria para permitir que as alegações orais cumprissem de maneira mais consolidada sua finalidade central de convencimento. Mesmo sob um ângulo microscópico e endoprocessual, então, haveria justificativa para a mudança.

Para os atuais propósitos, porém, é ainda mais importante notar que essa inversão deveria atrair um maior ônus argumentativo para a sustentação. Ora, sabendo exatamente as razões pelas quais o recurso é provido ou desprovido, poderia ser exigível que o litigante se valesse da Tribuna com o propósito claro e específico de dialogar, in totum, com tal fundamentação. Com isso, seria viável conferir maior objetividade a esse ato – evitando a apresentações de sumas ou de relatos desprovidos de maior aderência com a matéria em debate. Essa guinada seria benéfica a todos.

Enfim, seja ou não por essa via, o que parece certo é que é necessária a adoção de rupturas com o cenário hoje existente. Esse percurso não se volta a combater a pertinência da sustentação oral, mas a admitir seu cotejo com a realidade e com a totalidade de valores do processo. Isso, inclusive, para proteger e prestigiar o instituto.

 


[1] Dada a diversidade inerente aos campos, não se adota aqui, assim, discurso com pretensão de aplicabilidade ampla a uma eventual teoria geral do processo. Ver, OSNA, Gustavo. Processo civil, cultura e proporcionalidade. São Paulo: Ed. RT, 2016.  

[2] Ver, ISSACHAROFF, Samuel. Civil Procedure. New York: Foundation Press, 2005. Também,  CHASE, Oscar G. Direito, Cultura e Ritual. Trad. Sérgio Cruz Arenhart e Gustavo Osna. São Paulo: Editora Marcial Pons, 2014.

[3] Ver, passim, WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil. São Paulo: Ed. RT, 2019. Ver aqui, também, MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos e a função judicial no contemporâneo Estado de Direito. 2 ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2014.

[4] Lembra-se, aqui, que nossa atual estrutura não possui qualquer segmentação entre advogados habilitados ou não para realizar sustentação oral em plenário  conferindo referido crivo a todos. Paradoxalmente, porém, nada há no Exame de Ordem que afira, sequer de maneira mínima, essa aptidão.

[5] Assim, OSNA, Gustavo. Processo civil, cultura e proporcionalidade. São Paulo: Ed. RT, 2016. 

[6] ARENHART, Sérgio Cruz; OSNA, Gustavo. Complexity, proportionality and the 'pan-procedural' approach: some bases of contemporary civil litigation. In. International Journal of Procedural Law. nº 4. Cambridge: Intersentia, 2014.

[7] Preceitua o Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Paraná, por exemplo, que "caso o relator antecipe a conclusão do seu voto, a parte poderá desistir da sustentação oral previamente requerida, sendo-lhe assegurada a palavra se houver voto divergente" (artigo 208, §3º).

[8] Ver, JENSEN, Michael. MECKLING, William. Theory of the firm: managerial behavior, agency costs and ownership structure. In. Journal of financial economics, v. 3, nº 4. Amsterdam: North Holland Publishing Company, 1976.

[9] Lei 8.906/94. Artigo 7. São direitos do advogado: IV – sustentar oralmente as razões de qualquer recurso ou processo, nas sessões de julgamento, após o voto do relator, em instância judicial ou administrativa, pelo prazo de quinze minutos, salvo se prazo maior for concedido.

Autores

  • é advogado, sócio do escritório Mattos, Osna & Sirena Sociedade de Advogados e da Hedge Consultoria, professor dos programas de graduação e de pós-graduação Stricto Sensu em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!