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A oralidade e as condições de comunicação — parte 1: fala escrita e fala falada

Autor

  • Thiago M. Minagé

    é advogado criminalista professor de Processo Penal pós-doutor pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro doutor e mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá conselheiro estadual da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil-RJ e presidente da seção do Rio de Janeiro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

22 de março de 2023, 14h26

Spacca
Faz tempo que venho insistindo na implementação da oralidade como metodologia de trabalho no âmbito processual penal. Ao caminhar e conhecer alguns países latino-americanos (e seus sistemas de processo penal), percebo como o Brasil está atrasado, desatualizado e mantenedor de um sistema violador de direitos fundamentais.

Afinal de contas, o que seria um processo oral? Ou um processo que preza pela cultura das audiências para produção probatória, debates e, principalmente para tomada de decisões? Primeiro, uma breve abordagem sobre a distinção (não exclusão) entre fala escrita e fala falada. Na sequência, uma análise jurídica da oralidade no processo penal. E, por fim, uma perspectiva sobre a oralidade em nosso processo penal brasileiro.

A linguística nada tem contra a escrita, mas é preciso lembrar de que não haveria língua escrita se primeiro não houvesse a língua falada. Da mesma forma, importa fixar que o normativismo não se baseia na oralidade, e sim no registro escrito, mas que toda variação e mudança linguística se manifesta ou tem origem no falar cotidiano. Por um bom tempo, a fala foi considerada oposta à escrita, como vimos na história e linguisticamente ao explicitar como as teorias linguísticas evitavam abordar o "caos" da variação e os estudos da língua falada.[1]

As semelhanças entre fala e escrita são maiores, tanto linguística quanto sóciocomunicativamente. Além do mais, as semelhanças e diferenças não são estanques nem polarizadas. Tanto a fala como a escrita são normatizadas e expressas, cada uma em sua forma peculiar de um conjunto de práticas sociais que usam a escrita enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia em contextos específicos para objetivos específicos[2].

O que importa em ambas as modalidades falada ou escrita  é a intenção comunicativa nas práticas sociais de oralidade ou letramento e como se pode chegar a um discurso (oral ou escrito) adequado tanto à situação como ao conteúdo. Justamente pelo fato de a fala e escrita não se recobrirem, podemos relacioná-las, compará-las, mas não em termos de superioridade ou inferioridade. A distinção entre elas pode ser gradual e/ou contínua.

Por gradual, entende-se que há elementos na fala de uma pessoa que se assemelham a elementos de um texto escrito. Por descontínua, quando o texto falado apresenta um contraste muito grande em caso de transformação para um texto escrito. Percebam: a linguagem falada e a linguagem escrita concentram suas diferenças no âmbito da organização textual-interativa.

Minha proposta reflexiva é observar a relação entre língua falada e língua escrita, saber que a utilização de uma ou de outra modalidade está determinada pelas condições de produção do evento comunicativo e que ambas pertencem ao mesmo sistema linguístico[3]. O fato de termos, em ambos os casos fala e escrita , a utilização do mesmo sistema linguístico permite que, mesmo com características próprias, haja a possibilidade de diversas abordagens, mas aqui, importa a priorização da fala falada (oralidade).

Apesar de a escrita ter-se tornado imprescindível nas sociedades modernas, os estudos acerca da relação entre a fala e a escrita não davam conta da interação verbal que acontece entre indivíduos em sua prática discursiva, pois não consideravam as condições de produção do evento comunicativo. Ora, são as condições de produção que determinam as formulações linguísticas e apresentam as especificidades do tipo de texto produzido.

É perceptível que a partir dos anos 80 do século XX, ocorreu uma mudança de perspectiva no modo de se examinar a oralidade e a escrita, posto que, até então, predominava a preferência pela escrita. Atualmente, uma mudança nessa perspectiva preferencial foi inserida nos processos humanos interativos[4], quando, então, a noção de preferência da oralidade sobre a escrita é realçada, mas sem perder a interatividade complementar. Fato é, o que determina a utilização de uma ou de outra modalidade são as condições de produção e as formações discursivas. Contexto e inserção dos indivíduos.

Apesar de uma modalidade não se sobrepor à outra, ambas conservam suas próprias características[5]. Na fala falada, a interação acontece entre presentes, o planejamento discursivo e argumentativo é simultâneo e complementar à produção (probatória). É uma criação entre partes presentes, os falantes e ouvintes interagem e o acesso às reações dos interlocutores é imediato, o processo de criação é público e imediato.

Em contrapartida, na escrita a interação acontece à distância entre ausentes e é precedida de todo um planejamento, onde a criação geralmente é individual e com ampla possibilidade revisional e de consulta a outros textos ou demais fontes. Sem qualquer possibilidade de reação imediata do interlocutor (ausente).

Se me permitem uma comparação crítica: na fala escrita, o interlocutor (ausente) elabora seu texto pautado em possíveis reações do destinatário (juiz). Logo, o processo de criação é oculto e sigiloso. Na fala falada, a elaboração da fala é persuasiva e pautada nas reações dos envolvidos no debate. O processo criativo do discurso é exposto de forma pública.

[1] BOTELHO, Sandra Helena Salgueiro. A variedade padrão e a oralidade na EJA: uma abordagem sociolinguística e discursiva /Sandra Helena Salgueiro Botelho. – Manaus, 2014. Um excelente trabalho de pesquisa que aborda o tema de forma completa e satisfatória.

[2] BOTELHO, 2014.

[3] GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 199, p.6: A língua padrão é um sistema comunicativo ao alcance de uma parte reduzida dos integrantes de uma comunidade; é um sistema associado a um patrimônio cultural apresentado como um “corpus” definido de valores, fixados na tradição escrita.

[4] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a Imparcialidade a Sério: proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Tese de Doutorado em Direito Processual Civil. PUC-SP. São Paulo, 2016.

[5] MARCUSCHI, Luiz Antonio. Da fala para a escrita: atividades de re-textualização. São Paulo: Cortez, 2001, p.17. Oralidade e escrita são práticas e usos da língua com características próprias, mas não suficientemente opostas para caracterizar dois sistemas linguísticos nem uma dicotomia. Ambas permitem a construção de textos coesos e coerentes, ambas permitem a elaboração de raciocínios abstratos e exposições formais e informais, variações estilísticas, sociais, dialetais e assim por diante.

Autores

  • é advogado, pós-doutorando na UFRJ/FND, professor de Processo Penal, conselheiro estadual da Ordem dos Advogados do Brasil-RJ e presidente da Abracrim-RJ.

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