Opinião

Natureza jurídica e atuação das guardas: disciplina normativa e potencialidades

Autor

  • Alberto Hora Mendonça Filho

    é advogado mestre em Direitos Humanos pela Universidade Tiradentes (Unit-SE) especialista em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) professor da graduação e pós-graduação em Direito e conselheiro do Instituto dos Advogados de Sergipe (Iase).

20 de março de 2023, 9h17

"Que é necessário sair da ilha para ver a ilha,
Que não nos vemos se não nos saímos de nós."
(José Saramago, em O conto da Ilha Desconhecida)

Dos debates realizados no Curso de Formação da Guarda Municipal de Aracaju (SE), em que este autor ministrou o módulo de Direitos Humanos, sobreveio a presente e relevante discussão acerca do papel constitucional das guardas municipais no contexto da segurança pública.

Sergio Silva
Guarda Metropolitana de Aracaju (SE)
Sergio Silva

Para tal empreitada, a sabedoria de José Saramago, citada em epígrafe, auxiliou e auxilia a defesa para que, alheios aos pré-conceitos, se busque, por um instante, compreender a temática, a resposta dada pelo Poder Judiciário e variáveis possíveis.

Pois bem, muito embora os arroubos do sensacionalismo vulgar que tentam confundir a opinião pública (ou publicada), a segurança pública é um direito constitucional e humano.

Não por acaso, o artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos cita-a expressamente, enquanto a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 144, prescreve que: "a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio" através dos seguintes órgãos: "I – polícia federal; II – polícia rodoviária federal; III- polícia ferroviária federal; IV – polícias civis; V – polícias militares e corpos de bombeiros militares. VI – polícias penais federal, estaduais e distrital".

Como perceptível a partir da leitura do rol acima, não fez o constituinte qualquer menção a um órgão policial para as municipalidades. Isso porque, segundo o professor José Afonso da Silva, "os constituintes recusaram várias propostas no sentido de instituir alguma forma de polícia municipal. Com isso, os Municípios não ficaram com nenhuma específica responsabilidade pela segurança pública. Ficaram com a responsabilidade por ela na medida em que sendo entidade estatal não podem eximir-se de ajudar os Estados no cumprimento dessa função. Contudo, não se lhes autorizou a instituição de órgão policial de segurança e menos ainda de polícia judiciária" [1].

Conclui o referido autor que: "As guardas municipais inserem-se numa área de segurança, porém com a finalidade de assegurar a incolumidade do patrimônio municipal, que envolve bens de uso comum do povo, bens de uso especial e bens patrimoniais, mas não é polícia ostensiva, que é função exclusiva da Polícia Militar" [2].

Neste sentido, o §8º do artigo 144 da Constituição dispõe: "os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei".

A regulamentação da matéria adveio somente com a Lei nº 13.022 de 2014 (Estatuto Geral das Guardas Municipais), positivando que: "Incumbe às guardas municipais, instituições de caráter civil, uniformizadas e armadas conforme previsto em lei, a função de proteção municipal preventiva, ressalvadas as competências da União, dos Estados e do Distrito Federal".

Nessa ordem de ideias, traz à tona o artigo 4º do Estatuto que: "É competência geral das guardas municipais a proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e instalações do Município".

A bem da verdade, as guardas municipais tornaram-se uma realidade. De acordo com os dados atualizados pela Pesquisa de Informações Básicas Municipais 2020 do IBGE, 1.256 municípios brasileiros instituíram os citados órgãos, como celebra a Federação Nacional de Sindicatos de Guardas Municipais [3].

A partir deste estado de arte normativo, resta indagar se as Guardas Municipais atuam como polícia judiciária, administrativa ou de modo sui generis?  utilizando-se aqui a clássica divisão do poder de polícia.

Com relação à impossibilidade de atuação enquanto polícia judiciária, a jurisprudência é categórica, na medida em que tal atividade é atribuição da Polícia Federal no âmbito federal e das Polícias Civis em seus respectivos estado, vide Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 1.281.774  SP, julgado em 24 de junho de 2021, pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, relator ministro Marco Aurélio e Rel. p/ Acórdão ministro Alexandre de Moraes.

Todavia, o Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1977119  SP [4], entendeu que há uma limitação constitucional para a atuação das guardas, ou seja, a indispensável vinculação à sua finalidade específica de tutelar os bens, serviços e instalações municipais.

Nesta esteira, o ministro relator Rogério Schietti Cruz ponderou, que muito embora a elementar legitimidade de qualquer do povo em efetuar uma prisão em flagrante delito, é preciso cautela para compreender quando o flagrante é "visível de plano" e "quando é fruto de medidas invasivas típicas da atividade policial".

Ainda o voto vencedor revela uma importante contrapartida que tanto a polícia militar quanto civil possuem por exercer o monopólio estatal da violência: a sujeição ao rígido controle correcional externo do Ministério Público e do Poder Judiciário — o que não existe com relação às guardas municipais, as quais respondem administrativamente apenas.

Concluiu então o STJ na oportunidade que os guardas municipais são agentes públicos com atribuição sui generis de segurança, de forma que podem realizar o patrulhamento preventivo na cidade, quando "vinculados à finalidade específica de tutelar os bens, serviços e instalações municipais, e não de reprimir a criminalidade urbana ordinária, função esta cabível apenas às polícias".

Assim, podem realizar a intervenção, a título de flagrante, quanto autoevidenciável, porém, para realizar busca pessoal e o patrulhamento, deve existir concreta, clara, direta e imediata relação de pertinência com a finalidade da corporação, segundo a decisão do STJ.

Muito embora seja um debate complexo, sobretudo, por versar sobre segurança de um País com altos índices de criminalidade e de violência, a decisão limita a atuação das guardas, em razão da lex lata que consiste na escolha político-constitucional realizada em 1987 (e, portanto, para ser reformada necessita a aprovação pelo rito formal), bem como da ausência de contrapeso para o poder polícia, como o controle externo pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário.

De tal modo, as guardas municipais podem, hoje, enquanto instituição de segurança sui generis, desenvolver, ao seu modo, o chamado policiamento comunitário, ou seja, como explica Miguel Reale (apud ARCHIMEDES, 2010), "aquela que diuturnamente convive com o povo, não é senão a visão da polícia à luz do valor da amizade" [5].

Afinal, as guardas atuam, costumeiramente, em locais marcados pela presença de muitas pessoas, como, por exemplo, os terminais de ônibus, escolas municipais, parques etc. Essa proximidade pode ser salutar para tal desenvolvimento.

Além disso, com o seu reposicionamento topográfico-constitucional, poderia contribuir, ainda mais, para a segurança pública, mormente, dos municípios menores, onde, muitas vezes, há falta de contingente policial.

Logo, não há qualquer pretensão de exaurir o debate, mas, ao revés, iniciá-lo, com vistas ao atual horizonte normativo, que restringe a atuação policial das guardas, e, também, às potencialidades da lex ferenda para a realidade dos municípios brasileiros, dando-as o enquadramento necessário e, claro, junto ao contrapeso inolvidável.

 


[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36 ed. – São Paulo: Malheiros, 2013. p. 788.

[2] Ibidem.

[3] Número de municípios com Guardas Municipais cresce no Brasil. 22 ago. 2022. Disponível em: https://fenaguardas.org.br/numero-de-municipios-com-guardas-municipais-cresce-no-brasil/. Acesso em: 20 fev. 2023.

[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.977.119/SP, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 16/8/2022, DJe de 23/8/2022.

[5] ARCHIMEDES, Marques. Opção pode resgatar espaço da polícia na sociedade. Revista Consultor Jurídico. 2010. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2010-abr-24/policiamento-comunitario-resgatar-espaco-policia-sociedade. Acessado em: 11 mar. 2023.

Autores

  • é advogado, mestre em Direito pela Universidade Tiradentes (Unit-SE), pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e integrante dos grupos de pesquisa Políticas Públicas de Proteção aos Direitos Humanos e Novas Tecnologias e o Impacto nos Direitos Humanos.

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