Sinais trocados

Jornal que protege anunciantes acusa tribunais de proteger litigantes

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20 de março de 2023, 18h42

O consultor Carlos Alberto Di Franco, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, anunciou a sua fórmula para que o Judiciário "recupere sua credibilidade". Curto e grosso: basta que juízes deixem de comparecer a eventos jurídicos que, na sua promoção, tenham algum tipo de patrocínio.

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Maiores litigantes do país são
também os maiores anunciantes nos
jornais do país, como o Estadão
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Di Franco é um dos principais nomes da seita católica Opus Dei no Brasil. A tese do teólogo — de que participar de seminários, congressos e fóruns é pecado punível com excomunhão — baseia-se em um texto do próprio Estadão. O raciocínio é que os maiores litigantes do Brasil patrocinam eventos para obter decisões favoráveis em suas causas.

Pela conta do jornal, em apenas 30 processos, os maiores litigantes brasileiros têm em jogo R$ 158 bilhões, que, insinua o texto, podem ser a contrapartida pela participação nos seminários. A publicação não informa quais são as empresas, nem diz de que processos se tratam. Muito menos indica alguma causa em que o litigante se teria beneficiado. Apenas insinua, genericamente, que uma logomarca em um cartaz desviará o destino de bilhões do destino correto.

O autor da "matéria" a que se refere o numerário, importante registrar, é Luiz Vassallo, que trabalhou antes no site Antagonista e na revista Crusoé, dois instrumentos que floresceram, desabrocharam e murcharam junto com o movimento lavajatista e seu corolário, o bolsonarismo.

A exemplo do Estadão, este site promove programas e eventos jurídicos a que comparecem advogados, promotores e juízes. Juntamente com anúncios no site e na coleção Anuário da Justiça, a receita da promoção de eventos ajuda a viabilizar o jornalismo que praticamos. Dentro do seu padrão de moralidade, Luiz Vassallo quis saber do site se juízes entrevistados são pagos por isso — algo que pode ser comum nos locais onde ele trabalha, mas não na Consultor Jurídico.

A lista dos maiores litigantes, que Vassallo ocultou de seus leitores, está em uma página do portal do Conselho Nacional de Justiça (CNJ — clique aqui para acessar).

Pesquisa feita nos portais do STF e do STJ desmente a suposição de que patrocinadores de eventos são favorecidos. Na verdade, os maiores litigantes perdem a maior parte de suas causas nesses tribunais e no Judiciário, de forma geral. Não só nas causas de baixo valor, em que as derrotas são acachapantes, mas também nas causas estratégicas, onde se encontram as causas milionárias — como as que envolveram os planos econômicos, em que os bancos foram derrotados sem clemência.

Ou seja: o jornal não deu exemplo do pretenso comércio de sentenças em troca de eventos porque não o encontrou. Ao contrário do que pretendeu o redator, o conflito de interesses não se configurou. A acusação se desmentiu por seus próprios fundamentos. O truque não varia. Para confundir a caracterização do dano moral, a incriminação é disfarçada com verbos no modo condicional.

Os maiores litigantes do Brasil, não por acaso, são as mesmas corporações e órgãos públicos que figuram entre os maiores anunciantes nos jornais do país — como o Estadão — e também são os principais patrocinadores de eventos promovidos por empresas jornalísticas.

A pauta do Estadão, que consiste em considerar que o patrocínio a um evento da Associação dos Magistrados Brasileiros compromete os ministros do Supremo e do STJ, é inspiradora. Mas impõe um critério e uma pergunta. O critério é a noção de que patrocínios implicam contrapartidas inconfessáveis. A pergunta é se o jornal está imune ao seu próprio critério.

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Direta ou indiretamente, os maiores litigantes do país pagaram R$ 171 milhões ao Estadão nos últimos 15 meses, conforme as estimativas da plataforma Boxnet, especializada em análise de mercado publicitário (clique aqui para ler a planilha completa). Pela lógica que o Estadão tenta vender em suas páginas, o jornal está, ele próprio, sob grave suspeição e impedido de cobrir fatos relacionados a grandes bancos e o poder público.

Jornais, como se sabe gozam de uma série de favores por serem considerados um serviço público. O principal deles é a imunidade tributária prevista no artigo 150, inciso VI, alínea "d", da Constituição Federal. Direta ou indiretamente há outros benefícios, como a obrigação de as empresas de capital aberto publicarem seus balanços em jornais impressos. Ou seja: dizer que não se aplica ao jornalismo "privado" a ética que se exige do setor público não é uma verdade absoluta.

Da mesma forma que é possível conferir se um litigante é favorecido em um tribunal pela Internet, pode-se aferir se um anunciante/patrocinador é protegido nas páginas de um jornal (ou deste site). O próprio leitor pode verificar se o jornal aplica com seus parceiros — e consigo próprio — o mesmo rigor que destina aos outros.

Em dezembro de 2014, no auge do lavajatismo, a tiragem somada dos seis principais jornais impressos do Brasil era de 1,071 milhão de exemplares. Seis anos depois, quando a fábula se esfarinhou, além de falsos heróis, descobriu-se haver falsos bandidos. E que o "combate à corrupção" fora falsificado. Um festival de práticas jurídicas corruptas. Em 2021, a tiragem dos seis maiores jornais do país desabou. Caiu 68% em relação a 2014.

A opção preferencial pelo populismo em detrimento do profissionalismo parece não fazer bem para a saúde da imprensa.

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