Opinião

Compra e venda de ouro: a desnecessidade de intermediação das DTVMs

Autor

  • Pedro Rezende de Magalhães

    é advogado especialista em Direito Ambiental e Minerário pela PUC Minas (pós-graduação lato sensu) coautor da obra Direito Ambiental em Desenvolvimento (Editora D'Plácido) e ex-procurador-geral da Câmara Municipal de Guaxupé (MG) no biênio 2019-2020.

17 de março de 2023, 16h19

Neste início de ano os noticiários foram tomados pela triste realidade vivenciada pelos povos indígenas brasileiros, em especial os yanomami. Se por um lado essas reportagens trazem ao leitor o desconforto da verdade nua e crua, por outro têm o nobre condão de chamar a opinião pública ao debate de importantes temas sociais, como a mineração em terras indígenas e a cadeia produtiva do ouro, por exemplo.

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Dentre essas questões, tem tido destaque o papel das distribuidoras de títulos e valores mobiliários (DTVMs) na comercialização da produção aurífera oriunda de garimpos, notadamente no que tange à possíveis aquisições de minério provenientes de atividades ilícitas.

Nesse ínterim, não é raro se deparar com afirmações no sentido de que a comercialização do ouro, para que esteja em plena conformidade com o ordenamento pátrio, deve necessariamente perpassar pela venda direta dos produtores (pessoas físicas, cooperativas ou empresas) a essas instituições financeiras. Com a devida vênia, isso não reflete o arcabouço normativo atual. Senão veja-se.

Com efeito, a percepção supracitada começou a se formar com o advento da Lei nº 12.844/2013, que em seu artigo 39 passou a prever duas provas para a regularidade da primeira aquisição do ouro, a saber: nota fiscal, recibo de venda e declaração de origem, estes fornecidos pelo vendedor (inciso I), e nota fiscal de aquisição emitida pela instituição autorizada pelo Banco Central do Brasil a realizar a compra do ouro (inciso II), esta, evidentemente, de responsabilidade do comprador.

É que, para o hermeneuta apressado, os dois incisos deveriam ser aplicados cumulativamente, ou seja, apenas haveria regularidade na primeira aquisição na presença de ambos documentos. Dentro dessa lógica, a imperiosidade de compra por uma distribuidora de títulos adviria da própria imprescindibilidade da nota fiscal de aquisição, visto que somente a instituição financeira poderia emiti-la.

Deveras, tal interpretação é perfeitamente aplicável ao ouro ativo financeiro que, por definição, é o minério destinado ao mercado financeiro ou à execução da política cambial do País, em operações realizadas com a interveniência de instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, na forma e condições autorizadas pelo Banco Central do Brasil (artigo 1º, Lei nº 7.766/89). Mas e quanto ao ouro mercadoria?

Ora, não se pode ignorar que porção relevante da produção mundial de ouro destina-se às joalherias, isto é, não se direciona ao mercado financeiro ou à política cambial de um determinado país. A título ilustrativo, de acordo com o World Gold Council [1], a demanda mundial do mercado de joias, embora em queda em relação ao mesmo período de 2021, foi de 523 toneladas do metal no terceiro trimestre de 2022, algo em torno de 44% da demanda total (1.181 toneladas).

Logicamente, não há razão alguma para que a produção aurífera com comercialização voltada ao mercado comum (joias, componentes eletrônicos, etc.) deva, apriorística e obrigatoriamente, passar antes por operações junto ao mercado financeiro. Na prática, isso levaria por exemplo à conclusão absurda de que um joalheiro seria legalmente compelido a primeiro adquirir um título financeiro para só então transformar seu respectivo lastro num produto final, hipótese em total descompasso com princípios básicos do livre mercado (e do bom senso).

Sucede, entretanto, que o ouro destinado ao mercado financeiro sujeita-se, desde sua extração inclusive, exclusivamente à incidência do imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários (artigo 4º, Lei nº 7.766/89), ou seja, o IOF (Imposto Sobre Operações Financeiras), em alíquota de 1%. Noutro vértice, como bem pontou o Fisco paulista, na "(…) comercialização do ouro diretamente do garimpeiro extrator à empresa comercial, há operação de circulação sujeita ao ICMS (…), porquanto o ouro, não se enquadrando como ativo financeiro ou instrumento cambial em razão de não atendimento ao disposto no artigo 1º da lei federal 7.766/1989, é considerado mercadoria desde a origem" [2]. Portanto, as alíquotas para as aquisições de ouro mercadoria variam de acordo com as legislações estaduais, sendo no estado de Mato Grosso [3], a título ilustrativo, de 17% nas operações internas e 12% nas interestaduais.

Vale lembrar que nas duas modalidades, entretanto, deve haver também o recolhimento de Compensação Financeira pelo Resultado da Exploração de Recursos Minerais (CFEM), preço público, não imposto, atualmente com alíquota de 1,5% (um inteiro e cinco décimos por cento).

Daí dizer que, em verdade, é a atual conjuntura tributária o que, de fato, confere proeminência às instituições financeiras nas negociações de compra e venda do ouro. Ora, sob o prisma econômico é mais rentável a comercialização do ativo financeiro, independentemente de qual seja sua real destinação posterior, até mesmo porque, ainda se atendo ao exemplo do estado de São Paulo, a Receita estadual entende que no caso da compra em uma distribuidora de títulos "(…) para futura industrialização ou comercialização, o ouro perderá a condição de ativo financeiro e será considerado, a partir de então, como mercadoria e poderá ser colocado em seu estoque (…) Ademais, não cabe falar em incidência do ICMS na alteração do ouro como ativo financeiro em estoque de mercadorias ou matéria-prima, porquanto não há fato gerador do imposto estadual nesta circunstância" [4].

Assim sendo, não espanta que parcela significativa da indústria nacional (principalmente de joias) expresse descontentamento com esse cenário, demandando a revisão dos procedimentos em prol de uma maior democratização do setor através do fomento à livre concorrência, haja visto que o empresário não integrante do sistema financeiro tem pouca ou nenhuma condição de arcar com os mesmos preços de compra praticados por uma DTVM.

Urge, pois, ter em mente que a intermediação das distribuidoras de títulos e valores mobiliários na comercialização do ouro não é imprescindível, mas antes, dado o panorama legislativo atual, uma operação, do ponto de vista empresarial e jurídico, devidamente calculada. E, como a essa altura já se pode perceber, isso constitui um ponto capital nos debates citados na introdução deste texto, posto tratar-se do modelo comercial dominante na cadeia produtiva nacional.

 


[1] Conselho Mundial do Ouro, em tradução livre. Disponível em: https://www.gold.org/news-and-events/press-releases/strong-third-quarter-lifts-gold-demand-pre-pandemic-levels. Acesso em: 3 mar. 2023.

[2] RC 18472/2018, publicada em 14/11/2019. Disponível em: <https://legislacao.fazenda.sp.gov.br/Paginas/RC18472_2018.aspx>. Acesso em: 8 mar. 2023.

[3] Lei Estadual nº 7.098, de 30 de dezembro de 1998.

[4] RC 26.395/2022, publicada no Diário Eletrônico em 17/10/2022. Disponível em: https://legislacao.fazenda.sp.gov.br/Paginas/RC26395_2022.aspx. Acesso em: 8 mar. 2023.

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