Opinião

Misoginia red pill nas redes sociais e o ciberativismo feminista

Autores

  • Fernanda Perregil

    é advogada e sócia do DSA Advogados mestranda em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas pelo Centro Universitário do Distrito Federal (UDF) especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP pesquisadora do Núcleo Trabalho Além do Direito do Trabalho da USP pesquisadora da Cielo Laboral e professora do Insper.

  • Luanda Pires

    é advogada palestrante e especialista em Relações Governamentais Direito Antidiscriminatório Cultura Inclusiva e Diversidade & Inclusão com atuação na defesa dos direitos humanos em geral em especial direitos das mulheres da população negra e da população LGBTI+.

16 de março de 2023, 17h27

É fato que ainda existe uma tentativa de ridicularizar as feministas nos dias de hoje, mas se no passado (anos 1960 e 70) as críticas eram de que se tratava de um grupo de mulheres frustradas, agora, em 2023, elas são acusadas de pregar, de alguma forma, a demonização dos homens.

A bem da verdade é que o feminismo está longe de pregar o ódio contra os homens ou de buscar um "sistema patriarcal inverso", no formato de um matriarcado. O feminismo não busca curar ressentimentos entre mulheres e homens nem propagar discursos anti-homens.

Por outro lado, a teoria do patriarcado, sim, definiu que os homens eram superiores e sua ferramenta de opressão sempre foi a misoginia e a reprodução de relações de poder, enfatizando o privilégio da masculinidade.

Por isso, o primeiro passo para entender "o porquê" de o feminismo ainda ser crucial é começar por contextos históricos. Entender o contexto das reivindicações de cada onda do movimento feminista, pois sob o ponto de vista da sociedade brasileira, as três primeiras ondas poderiam ser resumidas em lutas pelo direito ao voto (assegurado em nosso país em 1932), contra a opressão da ditadura e por políticas públicas. De forma macro, a ideia central sempre foi conquistar a participação das mulheres na construção do país.

Mas, o que se vê hoje é que os espaços sociais em que as mulheres lutaram e lutam para ocupar estão marcados por padrões hegemônicos de masculinidade, ora ditados pela sexualização e/ou domínio do corpo da mulher e reprodução de violências nesse sentido, ora pelas discriminações de gênero, "sobre o que pode ou não ser atribuído ao feminino", dando a entender que mesmo com o aumento do acesso das mulheres nas camadas sociais, as relações entre homens e mulheres deveriam continuar hierarquizadas.

À prova disso, ainda são os altos índices de feminicídio e estupro. Em 2/3/2023, os últimos dados divulgados pelo Ipea [1] apontam que o Brasil tem cerca de 822 mil casos de estupro a cada ano. São dois estupros por minuto, sendo que apenas 8,5% dos crimes são registrados pela polícia e 4,2% pelo sistema de saúde.

Quanto às relações entre agressores e vítimas de estupro, foram identificados quatro grupos principais: os parceiros e ex-parceiros, os familiares (sem incluir as relações entre parceiros), os amigos/conhecidos e os desconhecidos.

Nesse sentido, a cultura do patriarcado pode explicar as diferenças de acesso e as desigualdades sociais advindas disso. A título de exemplo sobre a violência de gênero, um relatório da ONU Mulheres [2] considerou que, fora de uma zona de guerra, a América Latina é a região mais letal do mundo para as mulheres. Apontando que, no Brasil, três mulheres são assassinadas por dia por questões unicamente ligadas ao gênero, e na América Latina nove mulheres são vítimas de feminicídios por dia.

No mundo do trabalho, os dados seguem demonstrando a violência contra a mulher, conforme os dados e estatísticas do Tribunal Superior do Trabalho, dizendo que no ano de 2021 os casos de assédio sexual e moral voltaram a crescer no país [3]. Enquanto ao longo dos anos de 2019 e 2020 foram registrados 12.349 processos de assédio sexual e 12.529 de assédio moral, em 2021 foram computados 3.049 e 52.936 casos, respectivamente [4].

A par disso, é fácil concluir que os ambientes corporativos também são atravessados por estas desigualdades, pois foram espaços criados para prevalecer valores heterossexuais masculinos, sendo que essa masculinidade moderna foi construída em torno do trabalho e para lhe garantir um status social, no qual, os cargos mais relevantes continuam a ser preenchidos por machos.

Os lugares de poder estão apoiados nessa divisão binária do trabalho e na categorização social, partindo do que seria o trabalho mais "adequado" ao homem e a mulher. A divisão de gênero no trabalho faz com que este espaço seja culturalmente definido como um domínio dos homens. Por consequência disso, prevalecem as diversas desigualdades de gênero no ambiente do trabalho, principalmente em cargos de direção e administração.

Além disso, é importante lembrar das violências simbólicas na comunicação dentro do ambiente trabalho ainda impactados pelo sexismo: seja na forma jocosa de se referir à vestimenta de uma mulher, na forma insistente de invalidar ou subjugar sua opinião durante uma reunião de trabalho, como na forma de colocá-la como inferior no comando dos trabalhos. Ainda que o seu cargo seja de liderança, a subjugação virá na forma de comentários menosprezando atributos do ser feminino, tais como: as mulheres falam demais! as mulheres são sensíveis! as mulheres são instáveis!

Sobre os contextos de mídia, existe um movimento de misoginia camuflado de coaching, chamado red pill, que defende a ideia errada nas redes sociais de que o feminismo é o contrário do machismo, como se o feminismo buscasse a superioridade das mulheres, chegando a atribuir a elas algo como um "valor de mercado" segundo sua sujeição aos padrões masculinos.

Apesar desses movimentos red pill ainda representarem algo de grupos extremistas nas redes sociais, a questão é que a tentativa é sempre a mesma: distorcer ou simular a realidade e transformar a pessoa, historicamente oprimida, em alguém que esteja almejando o "domínio e o privilégio social". Sem sombra de dúvida, esse é um comportamento que sempre esteve presente no modus operandi do patriarcado e na formação das estruturas sociais.

Diante disso, há um "medo masculino" de que as mulheres busquem por meio do feminismo, algo que sempre esteve atrelado ao exercício do poder masculino, ao ponto de ditar as regras sobre os corpos das mulheres e de impor o que é ou não aceitável para o "padrão" de mulher. Esse é um movimento que se autointitula defensores de valores morais e fomentadores de práticas sociais do passado, muito embora essas práticas sempre foram ferramentas de opressão contra as nossas ancestrais, colocando-as em um lugar de subjugação, de menor importância, coadjuvantes sociais e espectadoras do domínio masculino.

Contudo, não há mais como retroceder às muitas das conquistas das mulheres, principalmente sob o ponto de vista de todas as mulheridades, voltando mais uma vez o olhar para aquelas que mais sofrem essa discriminação, as mulheres trans e mulheres negras, dentro de estruturas sociais que se firmaram sob aspectos de gênero, raça e classe.

As discriminações em razão de gênero e raça são processos históricos que ainda permanecem como batalhas a serem vencidas no século 21. É importante destacar a existência de uma herança histórica de discriminação relativa às mulheres, refletindo em uma sobreposição de discriminação e violência dentro do processo escravagista que reproduz o racismo estrutural em nossa sociedade atual.

As discriminações de gênero e racial foram intensificadas pela escravidão e pela herança do colonialismo, sendo agravada quando há combinação de vários fatores, como é o caso das mulheres negras.

Hoje, com o impacto da tecnologia nas relações humanas, surgiu um movimento da quarta onda [5] feminista, chamado do ciberativismo feminista, que nada mais é do que um ativismo digital, que denúncia e difunde informações nas redes sociais sobre a luta contra as discriminações raciais e de gênero.

O potencial da tecnologia vem reafirmando o movimento do ciberfeminismo no mundo, de forma transnacional, provocando a massificação de debates e fortalecendo a identidade feminista, tendo um poder de pulverizar informações em minutos e democratizar importantes temas, possibilitando manifestações de massa.

A tecnologia se tornou uma importante aliada na desconstrução de estereótipos, mas é muito importante que todas as pessoas se comprometam com o tema de combate às discriminações, sendo capazes de gerar impactos positivos em uma sociedade cada vez mais diversa e plural, a fim de romper com os efeitos dos processos históricos de discriminação de gênero e raça, principalmente com uma dimensão interseccional que promova uma sociedade mais justa para todas as mulheres.

O sistema opressor que coloca as pessoas apenas como capital financeiro, completamente alheio ao combate às discriminações, não é mais tolerável! Neste processo de comprometimento, é importante questionar antigos padrões de liderança e alicerces que sustentam a cultura organizacional.

A cultura de diversidade e equidade contribui com a melhoria de toda a sociedade, em uma ampla rede de diferentes perspectivas para a efetividade da equidade de gênero. É na inter-relação de como eu, os outros e às organizações definem e praticam a inclusão é que define se ela poderá, ou não, tornar-se realidade. Ao passo que ignorar ou maquiar o tema já não é mais uma alternativa para ninguém, nem mesmo no universo das redes sociais!

Autores

  • é especialista em Direito do Trabalho e sócia da Innocenti Advogados, head das áreas de ESG e Direito do Trabalho, Sindical e Remuneração de Executivos e integrante da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP.

  • é advogada e sócia no Pires, Pratti & Soares Advogadas e CEO da P2 InterDiversidade — Consultoria em Diversidade e Inclusão.

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