Opinião

Adesão em ata de registro de preços gerenciados por municípios na LLC

Autor

  • Leandro Correa de Oliveira

    é advogado doutor em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (Unesa-RJ) mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) professor dos cursos de graduação pós-graduação e mestrado da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM).

14 de março de 2023, 21h23

A ata de registro de preços é um procedimento surgido da prática licitatória em razão das dificuldades em se licitar itens de uso frequente através das modalidades licitatórias tradicionais e seus tipos, especialmente o menor preço (da Lei 8.666/1993) e que ganhou o respaldo da doutrina e da jurisprudência dos tribunais de contas e em regulamentos infralegais até sua definitiva sua consagração normativa na Lei 14.133/21. O mesmo pode ser dito do instituto da adesão, ou carona, em termos mais casuais.

O procedimento da adesão em ata de registro de preços permite que órgãos e entidades da administração pública possam adquirir bens e serviços por meio da utilização de atas de registro de preços de outros entes públicos. Permite a agilidade das aquisições de produtos e serviços, com ganhos de economia de escala e a redução do tempo para a implementação das ações estatais. Para que um órgão ou entidade possa aderir a uma ata de registro de preços é necessário que tenha disponibilidade orçamentária e financeira e que o faça dentro do prazo de validade definido, segundo as regras do instrumento editalício.

A Lei 14.133/21 trata da adesão em ARP no artigo 86, em moldes semelhantes ao que já era estabelecido pelos Decretos federais nº 3.931/2001 (artigo 8) e 7.892/2013 (artigo 22). Logo, qualquer órgão e entidade que não tenha sido um órgão participante do certame poderá valer-se deste procedimento. A adesão deve ser precedida de: a) apresentação de justificativa da vantagem da adesão, inclusive em situações de provável desabastecimento ou descontinuidade de serviço público; b) demonstração de que os valores registrados estão compatíveis com os valores praticados pelo mercado; e c) prévias consulta e aceitação do órgão ou entidade gerenciadora e do fornecedor, segundo os limites de quantitativos licitados [1].

A despeito do tema ser comum na administração pública, uma polêmica se instalou com a com a nova lei e, agora, com a iminência da virada de chave, com o fim próximo do período de dois anos do artigo 193, II vem gerando preocupações. Para alguns, a nova lei acaba por proibir a as adesões em atas de registro de preços gerenciadas por entes federados locais. Será mesmo? Neste escrito procura-se defender que os Municípios poderão aderir às atas de registro de preços gerenciadas por entes de mesmo nível.

O texto do §8º do artigo 86 da Lei nº 14.133/2021 veda aos órgãos e entidades da Administração Pública Federal a adesão à ARP gerenciadas por órgãos ou entidades estaduais, distritais ou municipais, do mesmo modo como era previsto no §8º do artigo 22 do Decreto Federal nº 7.892/2013. O §3º do mesmo dispositivo, por sua vez, trata da licitação aos órgãos e entidades da Administração Pública federal, estadual, distrital e municipal que, na condição de não participantes, pretendam aderir à ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora federal, estadual ou distrital. Não há, nesta passagem, a previsão da carona para os entes municipais que sejam os gerenciadores, o que leva ao entendimento de que, devido à ausência de previsão legal, seria vedada a adesão em ARP gerenciadas nestes níveis.

Este raciocínio, tal como ensina Victor Amorin [2], pode ser explicado a partir do entendimento do Tribunal de Contas da União, no Acórdão nº 3.625/2011  2ª Câmara, onde se assentou que como a divulgação das atas de registro de preços por estados e municípios, por não gozarem de uma abrangência nacional, poriam em risco o princípio da publicidade. Mas com a criação do Portal Nacional de Compras Públicas (artigo 174, I), tem-se que este argumento não dispõe da mesma força, uma vez, com o citado portal, ter-se-á a ampla divulgação em âmbito nacional.

De outro lado, a conclusão pela proibição não é compatível com o sistema constitucional brasileiro que traz um desenho federativo de três níveis [3] que assegura a todos os entes federados autonomia política, jurídica, orçamentária e administrativa, nos seus respectivos âmbitos de competência. Sobre o tema das licitações e contratos, a Lei 14.133/21, em seu artigo 1º diz tratar de normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.

O texto vincula os entes públicos de uma forma geral, estabelecendo os critérios e condições para a realização dos certames e procedimentos licitatórios. E a possibilidade da União para legislar sobre o tema não faz com que a órbita federal tenha a competência dispor ilimitadamente sobre os procedimentos licitatórios e contratos, já que o texto constitucional lhe confere o poder para legislar apenas sobre normas gerais. Assim, o constituinte reservou espaço de regulamentação para os demais entes federativos.

As normas gerais são aquelas que se aplicam a um grande número de situações e pessoas, de forma ampla e genérica, permitindo ao intérprete, nos casos concretos, avaliar como o regramento jurídico é concebido e como as regras se relacionam entre si para uma resposta que seja constitucionalmente adequada. Tercio Sampaio Ferraz Júnior, ao caracterizar o sistema jurídico, tem que sua formação implica num "conjunto de objetos e seus atributos (repertório do sistema), mais as relações entre eles, conforme certas regras (estrutura do sistema). Os objetos são os componentes do sistema, especialmente por seus atributos, e as relações dão o sentido de coesão ao sistema" [4] As normas especiais por seu turno, tratam de temas específicos e se aplicam a situações particulares ou grupos específicos de pessoas ou entidades.

As normas gerais em Direito Administrativo, em síntese, têm o condão de assegurar uma aplicabilidade uniforme do texto legal para nortear, segundo os mesmos parâmetros, a atuação da administração pública e dos órgãos de fiscalização e controle, o que não excluiu a atuação de outras competências legislativas. Mas seu conceito é indeterminado, suscitando, na lição de Marçal Justen Filho, três possibilidades: 1) uma em que é claro o caráter de norma geral e, portanto, de observância obrigatória para todos os entes federados. Em outros casos, há 2) uma certeza negativa, quando a hipótese não se configura numa norma geral; e 3) há casos nebulosos em que não é evidente tratar-se de uma norma geral [5].

Uma hipótese do primeiro caso é claramente o do artigo 9º da nova lei, que estabelece proibições para a restrição de competitividade ao estabelecer, por exemplo, que ao agente público designado para atuar na área de licitações é vedado admitir, atos ou práticas que possam comprometer, restringir ou frustrar o caráter competitivo do processo licitatório. Este dispositivo é uma norma geral aplicável a todos os entes ou órgãos responsáveis por licitações e contratos, sejam eles municipais, estatuais, distritais ou federais.

Na segunda hipótese tem-se o §8º do artigo 86 que é aplicável unicamente à esfera federal, que não poderá aderir a atas de registro de preço que sejam gerenciadas por órgão ou entidade estadual, distrital ou municipal. Na terceira hipótese há uma situação opaca, retirada do §3º do mesmo artigo, que dispõe que a adesão tardia em ARP está adstrita aos procedimentos cujos gerenciadores sejam entidades federais, estaduais ou distritais. Por esta leitura os Municípios não poderiam aderir a atas que gerenciam. Mas esta não é a melhor interpretação.

A resposta para a situação nebulosa reside nas reservas de competência dos entes. O texto constitucional reservou à União, no artigo 22, I, competências legislativas privativas para o Direito Penal, Civil, Comercial, dentre outros. Não há, portanto, uma reserva para a disciplina das licitações e contratos, até porque o artigo 37, XXI da Constituição da República assegura à União apenas o estabelecimento de normas gerais, de modo que não são afastadas as competências legislativas dos estados, Distrito Federal e municípios, neste último caso para tratar de assuntos locais ou mesmo suplementar a legislação federal, na esteira dos incisos I e II do artigo 30.

A intenção do constituinte na temática das licitações e contratos foi a um só tempo preservar a unidade das regras administrativas (artigo 37 e seguintes da Constituição) e ao mesmo tempo preservar a configuração do pacto federativo, que é um dos esteios da matriz republicana de 88. As regras dos §§3º e 8º, a nosso sentir, vinculam tão somente a Administração Pública federal em razão de sua disposição expressa, mas não proíbem que os municípios regulem o tema de maneira diversa, disciplinando em seus regulamentos, a adesão em ARP de órgãos ou entidades que estejam no mesmo nível.

O tema do federalismo, diga-se de passagem, voltou a ganhar relevo com as ações constitucionais advindas da crise provocada pela pandemia de Covid-19 com a reafirmação das competências locais e regionais, como visto, por exemplo na ADI 6.341 [6]; ADPF 672 [7]; ADPF 770 e ACO 3.451 [8]; ADI 6.343 [9]; ADI 6.362 [10]. Nestes casos, o Supremo Tribunal Federal privilegiou a ação dos entes subnacionais, sem retirar da União sua competência para o estabelecimento de normas gerais. Numa palavra, privilegiou-se uma atuação conjunta dos entes federados, resguardadas as autonomias constitucionalmente asseguradas, num ambiente, digamos assim, dialógico. Se as competências locais foram tão determinantes durante o surto pandêmico porque não seriam em matéria de contratações públicas para a devida adequação às realidades locais?

Necessária, portanto, uma leitura dos mencionados dispositivos licitatórios à luz dos princípios constitucionais. Trata-se de um imperativo hermenêutico que encontra base na ideia de que a validade da legislação encontra legitimidade na supremacia da Constituição. A noção clássica leva ao raciocínio de que um dispositivo de lei será inválido se estiver com ela estiver em contradição; contudo, o papel do intérprete e da jurisdição constitucional é preservar na maior medida possível o trabalho do legislador, de modo que não poderá ser declarada nula a lei quando puder ser interpretada em consonância com os ditames constitucionais [11].

Assim, a compreensão é de que as disposições dos §§3º e 8º do artigo 86 da Lei 14.133/21 são especiais em relação à Administração Federal, não se enquadrando na categoria de normas gerais para os demais entes federados, que poderão também dar o adequado tratamento às licitações e contratos, observados os comandos constitucionais. A proibição das adesões de Município em atas gerenciadas por entes de mesmo nível é incompatível com o sistema jurídico brasileiro por pelo menos três razões: 1) representa uma violação à autonomia federativa dos entes locais; 2) desconsidera que as regras trazidas na Lei 14.133/21 são gerais, sendo possível a regulação em âmbito local de modo a atender suas peculiaridades; e 3) o advento do PNCP supera as restrições quanto à ausência de devida publicidade dada aos procedimentos realizados localmente.


[1] Artigo 86. O órgão ou entidade gerenciadora deverá, na fase preparatória do processo licitatório, para fins de registro de preços, realizar procedimento público de intenção de registro de preços para, nos termos de regulamento, possibilitar, pelo prazo mínimo de oito dias úteis, a participação de outros órgãos ou entidades na respectiva ata e determinar a estimativa total de quantidades da contratação. […] §4º As aquisições ou as contratações adicionais a que se refere o §2º deste artigo não poderão exceder, por órgão ou entidade, a 50%  dos quantitativos dos itens do instrumento convocatório registrados na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e para os órgãos participantes.

§5º O quantitativo decorrente das adesões à ata de registro de preços a que se refere o §2º deste artigo não poderá exceder, na totalidade, ao dobro do quantitativo de cada item registrado na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e órgãos participantes, independentemente do número de órgãos não participantes que aderirem.

[3] Artigo 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

[4] FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 140.

[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. P. 26.

[6] Alegação da inconstitucionalidade de dispositivos da Medida Provisória nº 926/20, que alterou a Lei 13.979

[7] Alegação atos omissivos e comissivos do Poder Executivo federal com relação ao combate à pandemia.

[8] Sobre plano nacional de imunização, registro e acesso à vacina contra a Covid-19

[9] Suspensão, sem reprodução do texto, do artigo 3º, VI, "b", e §§6º, 6º-A e 7º, II, da Lei 13.979/2020

[11] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional. São Paulo: Forense, 2022.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!