Opinião

A diversas faces de Ruy Barbosa: Ruy o político (parte 1)

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13 de março de 2023, 17h10

Ruy Barbosa era dotado de uma personalidade multifacetada, que brilhou em muitas áreas e deixou marcas profundas na história brasileira. É natural, portanto, que falemos separadamente sobre cada uma de suas atuações, mesmo sabendo que elas são integradas e compõem, juntas, a trajetória singular que nos encanta e nos inspira até hoje.

Spacca
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No seminário Ruy Barbosa, do Império à República, uma vida dedicada à Nação,  promovido pelo TJ-BA (Tribunal de Justiça da Bahia), em dez diferentes mesas, falou-se, entre outros, do Ruy o advogado, o político, o jornalista, o internacionalista, o filólogo, o pedagogo, etc.

Considero prudente observar que entre 1849 — data do nascimento — e 1923 — data da morte de Ruy Barbosa, não eram nítidos os limites entre essas diversas atividades. Só mais a frente no século 20 é que a divisão social do trabalho intelectual, sobretudo nas universidades, classificou o saber em departamentos estanques: o direito, o jornalismo, a diplomacia, a gramática, a literatura, etc. Divisões que buscaram certa cientificidade objetiva para diferenciar, por exemplo, o cientista do direito do prático: advogado, juiz, promotor.

Essa racionalidade cientificista ainda não imperava na época de Ruy.

Não é fácil distinguir quando um discurso, um texto, uma ação de Ruy Barbosa seria do político, já sendo do jornalista, ou seria do diplomata, já sendo do jurista, ou, ainda, seria do filólogo, mas já sendo do parlamentar, portanto, do político, mas, igualmente, do jurista.

Nem mesmo na advocacia, cuja determinação dos limites se dá nas manifestações de consultoria ou assessoria jurídicas e na postulação em juízo — , nem mesmo aí é possível partir, separar, destrinchar o Ruy advogado, do Ruy político, do Ruy jornalista.

Quando, em 1886, Ruy sem mandato, pois perdera a eleição para deputado da Bahia, é designado pelo partido liberal para falar na sessão cívica em homenagem a José Bonifácio, falecido inesperadamente? O orador, mesmo sem mandato, manda uma clara advertência para a monarquia: "Primeiro a abolição, nada sem a abolição, tudo pela abolição".

Sucesso estrondoso. Luiz Viana Filho explica que "a frase ficou". "A imprensa liberal a reproduziu, e os estudantes a repetiram comovidos, cada qual imaginando-se um futuro Lincoln."

Mesmo sem mandato, o advogado continuava o político.

Quando, anos mais tarde, em 1892 e 1893, impetra Habeas Corpus ao Supremo Tribunal Federal em favor dos presos e perseguidos por Floriano Peixoto, e afirma da tribuna que o julgamento daquela causa seria o julgamento do próprio Supremo, quem fala é o advogado ou o político?

João Mangabeira diz que ali começou seu curso de direito constitucional. Afinal, não fora dele o texto da Constituição Republicana de 1891, incluindo como direito fundamental no § 22, do artigo 72? 

Agora era bater às portas do Supremo, invocando a regra constitucional.

Mas o tribunal não estava preparado, nem para a Constituição de 1891, nem para Ruy Barbosa. HC foi negado por 6 votos contra apenas 1 voto favorável, do ministro Piza e Almeida.

Negada a ordem, Ruy corre para a imprensa, em plena Sexta-Feira Santa e, ante o triste espetáculo, publica o artigo O Justo e a Justiça Política. Nele pontificou:

"Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de Estado, interesse supremo, como quer que te chames, prevaricação judiciária, não escapará ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde."

Quem fala? O advogado, o político ou o jornalista?

Destaco, portanto, neste início de viagem, que, se é benfazeja a classificação para o estudo das diversas faces de Ruy, ao final, no porto seguro do resultado deste seminário, o maior desafio é conseguir fazer a síntese dessa genial figura. O maior baiano de todos os tempos, já foi dito, o maior brasileiro de todos os tempos.

E quando decidimos olhar para o político Ruy Barbosa vemos surgir um personagem que influiu decisivamente em algumas das mais importantes escolhas feitas pela nação brasileira e que, além disso, continua servindo de exemplo para as escolhas que devemos fazer no presente.

Reprodução
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Em primeiro lugar, Ruy Barbosa nos mostra a importância da política. Mostra que não existe caminho seguro e promissor para um povo que, ao menosprezar a política, se deixa conduzir pela discórdia, pela desconfiança, pelo conflito sem mediação que conduz inevitavelmente à radicalização e à violência.

Um povo que despreza a política é um povo imaturo, presa fácil da cobiça internacional e do autoritarismo. Um povo que, cedo ou tarde, perderá aquilo que é a base sobre a qual assenta a própria essência do ser humano: a liberdade.

É importante frisarmos isso, porque a atuação política de Ruy  teve como norte inquestionável a liberdade. Disse ele, ainda na refrega com Floriano, ser o objetivo supremo de sua carreira: "O amor da liberdade, servido pela independência e pela desambição."

Quando combateu a escravidão, Ruy Barbosa passou das ideias à ação convicto de que, sem a liberdade de todos os cidadãos, o Brasil estaria definitivamente marcado por uma fratura incontornável em sua estrutura social. A liberdade de poucos nunca seria verdadeira e legítima enquanto uma parte dos cidadãos estivesse submetido a uma servidão moralmente inaceitável.

Quando lutou a luta vitoriosa do republicanismo, Ruy acreditou que a República seria o sistema de governo que conduziria ao progresso das nações e que o Brasil deveria almejar participar dessa aposta que, vemos hoje, foi feita e foi ganha pelos povos que respiram, mais que em qualquer lugar, o aroma revitalizante da liberdade.

O que, hoje, nos parece uma verdade inquestionável teve em sua origem, no Brasil, a participação decisiva do Ruy que se transformou num dos maiores defensores dos princípios e valores que embasam a ordem constitucional dos países amantes da liberdade.

Ruy foi político dentro e fora do parlamento. Perdeu três eleições para deputado e quatro para presidente da república. Mas as derrotas, sobretudo a campanha civilista de 1910 e a de 1919 ficaram para sempre na história política de nosso país. Mesmo na derrota Ruy era inigualável.

Foi eleito deputado provincial da Assembleia da Bahia, em 1877, com 26 anos, e, logo no ano seguinte, em 1878, deputado geral para a Assembleia na Corte, reeleito em 1882. Torna-se ministro da Fazenda em 1889 a 1891, e senador da Bahia, entre 1890 a 1892, 1892 a 1897, 1897 a 1906, 1906 a 1915 e 1915 a 1921.

Alguns traços marcaram toda essa atividade política.

1 – Ruy era um reformista. "Na realidade a grande marca, o traço inseparável da ação de Ruy ao longo de toda a existência, é a tendência, e mais do que isso, a paixão no sentido de reformar".

A abolição, a eleição direta, a federação, a reforma da Constituição, o ensino. Reformas e mais reformas.

2 – Ruy era um idealista — trabalhou quase dez anos no Diário da Bahia sem remuneração. Não incluído do Ministério Dantas em 1884, continuou a apoiar o governo e a ser o mesmo deputado que valia por 20. Recursou ser ministro do Gabinete de Ouro Preto, em 1889, porque não trazia a federação como bandeira do novo governo. Assumiu a candidatura a presidente em 1909, já a sabendo perdida, porque era dos sacrifícios. Na introdução do livro o Papa e o Concílio, na defesa da liberdade religiosa e do abolicionismo que lhe custa a vaga no parlamento, em 1884, tudo são ideais.

3 – Ruy era um homem de luta e coragem – Os Habeas Corpus de 1892-1893 contra o Poder lhe custou o exílio. Na campanha civilista, em 1909, país afora, mesmo a sabendo perdida, bateu-se contra o militarismo. Em 1910 no Senado contra o Satélite, lhe ameaçaram a vida. Em 1914 proferiu no senado 42 discursos, além de dezenas de pareceres. "Na realidade, à vista do que produziu e não encontra paralelo no mundo inteiro, tem-se a impressão de que Ruy multiplicava o tempo", diz Luiz Viana Filho, para, logo em seguida dar voz ao biografado:

"No meio dessas lutas o meu norte foi a justiça. Nunca vi oprimidos os meus adversários, que me não inclinasse para eles…Em 1892, em 1895, em 1898, em 1905, em todas as crises do regime republicano, tenho estado sempre ao lado dos meus adversários toda vez que contra os seus direitos se procura atentar com as armas arbitrárias do poder.".

Depois da campanha a Presidência da República em 1919, volta-se para a campanha de Paulo Fontes a governador da Bahia, em 1920.

Luiz Viana Filho assim o descreve:

"Aos setenta anos, visivelmente combalido, ele iria, no fim da vida, compor uma das mais belas páginas na gloriosa existência do incorrigível Quixote, sempre a pelejar ideais inatingidos. A Bahia, pelo que tinha de mais representativo da sua cultura e das suas tradições, vibrou ante aquele exemplo edificante. Lembra Napoleão ao retornar da ilha de Elba. A campanha que Ruy realiza, transportando-se de cidade a cidade, e entre uma e outra escrevendo lapidares conferências que proferiu, é algo de grandioso Feira de Santana, Cachoeira, Nazaré, Alagoinhas, Serrinha, Bonfim. Cada um desses nomes associa-se a algumas páginas que o tempo não apaga, e imortalizam o Verbo que as percorreu."

4 – Ruy era fiel e permanente defensor de seus princípios e foi um trabalhador incansável. "Se nele havia excessos, eram os da fidelidade a ideias, o de sua capacidade de desprezar o poder e de afrontar riscos, muitas vezes sem outro interesse na causa defendida que não fosse a preservação da ordem jurídica e a proteção das liberdades públicas e individuais", adverte João Mangabeira.

Essas pinceladas sobre Ruy, nem de longe, esboçam o perfil do político. Síntese magistral, encetou seu discípulo querido, João Mangabeira, no vigésimo aniversário de morte, em 1943, através de palestra de 2h30min, proferida na casa de Ruy Barbosa, posteriormente publicada em 9 domingos no Diário Carioca e convertida em livro, com nada menos que 471 páginas. Acertou na mosca o grande Mangabeira com a tese "Ruy: o estadista da República".

Ouçamos o Mangabeira:

"Busquei demonstrar que Ruy é o estadista da República. Porque a construiu, dando-lhe as instituições jurídico-políticas e assegurando-lhe a estabilidade, por sua gestão financeira ao primeiro ano de sua vida. Porque somente ele, no governo ou na oposição, teve sempre o mesmo brilho, o mesmo vigor, a mesma operosidade, o mesmo idealismo, a mesma intensidade de ação. Somente ele teve atuação política desde os pródromos da república até 1923."

E, ainda:

"Ao que, neste livro, sobretudo visei foi que revisse, numa hora própria, o estadista atuando, o doutrinador ensinando, o apostolo pregando."

Assim, meu caro desembargador Lidivaldo, Ruy o político, está quase todo ali, naquela obra imorredoura de João Mangabeira.

Mas como tudo que diz respeito àquele em quem !deus acendeu um vulcão na cabeça", incompleto porque falta a fase anterior à República.

Em recentíssimo artigo publicado no jornal Correio da Bahia, intitulado "Ruy Barbosa para apressados", o escritor Saulo Dourado, autor do romance histórico "O Borbulhar do Gênio", sobre a relação de juventude entre Ruy Barbosa e Castro Alves, sustenta que: "a velhice é mesmo seu tino, sua virtude"… "É como se ele jamais tivesse passado pela puberdade e já surgisse feito. Há uma razão: o jurista viveu quatro décadas sem se tornar ou mesmo saber que se tornaria o Rui Barbosa que a História conhece."

A pressa é mesmo coisa perversa que raramente combina com a exatidão.

Se é verdade que o apogeu de Ruy se dá, após a República, sobretudo com as infindáveis demonstrações da inigualável grandeza moral e intelectual, não está exato afirmar que antes dos 40 anos Ruy não se tornara ou nem mesmo saberia que se tornaria o Ruy Barbosa que a história conheceria.

Não sou daqueles que classificam a vida dos pensadores em jovens e velhos. Daí ter escrito Gyorgy Lukacs "O jovem Hegel" e Celso Frederico "O jovem Marx". Prefiro os que buscam a síntese sem fugir do complexo.

Pretender que Ruy só se tornou Ruy após os 40 anos é mais ou menos como acreditar no estalo de Vieira.

Os fatos demonstram o contrário.

Continua na parte 2

Autores

  • é advogado, conselheiro federal da OAB da Bahia, vice-presidente da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas, membro do IAB Nacional e da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político.

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