Opinião

Integralização de capital: TJ-MG concede liminar para afastar a incidência do ITBI

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12 de março de 2023, 9h15

Os contribuintes têm acompanhado, nos últimos anos, várias discussões que envolvem a imunidade do ITBI (imposto sobre a transmissão de bens imóveis) quando da integralização de capital utilizando imóveis, e a suposta existência de valor excedente tributado pelas prefeituras municipais, com respaldo na decisão do Supremo Tribunal Federal, do Tema 796. Sobre esse assunto, faz-se necessário tecer algumas considerações.

Nos ensinamentos de Augusto Becker [1], a incidência da norma tributária é automática e infalível, de maneira que, ocorrendo todos os pressupostos constantes nesta, nascerá a obrigação tributária. Contudo, existem hipóteses em que a obrigação tributária não surge em função das normas de exoneração tributária, como é o caso da imunidade tributária.

A imunidade tributária, conforme ensina a ministra Regina Costa, é "fixada constitucionalmente, traduzida em norma expressa impeditiva da atribuição de competência tributária ou extraível, necessariamente, de um ou mais princípios constitucionais, que confere direito público subjetivo a certas pessoas, nos termos por ela delimitados, de não se sujeitarem à tributação" [2]. Verifica-se que existindo uma norma imunizante, não há a ocorrência do fato gerador.

Nesse âmbito, faz-se necessário traçar algumas considerações acerca da imunidade objetiva prevista no artigo 156, §2º, I, da Constituição.

Os municípios detém a competência para a instituição e cobrança do imposto sobre transmissão intervivos (ITBI),  contudo, o referido imposto "não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil".

Essa norma tem a finalidade precípua de facilitar a constituição de empresas e promover a livre iniciativa, sendo regulamentada, infraconstitucionalmente pelo artigo 36 e seguintes do Código Tributário Nacional.

Diante disso, é comum a utilização de bens para integralização do capital social de suas sociedades. Contudo, muitos municípios brasileiros, como é o caso de Contagem, em Minas Gerais, interpretam uma oportunidade no Tema 796 do STF para "criarem" um fato gerador que supostamente justificaria a incidência do ITBI quando da integralização de capital.

Isso porque, em agosto de 2020, o STF, através do Recurso Extraordinário n° 796.376/SC, fixou a tese de que a "a imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do §2º do artigo 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado".

Contudo, a tese deve ser interpretada com temperamentos pelos jurisdicionados. Isso porque, no histórico do caso do STF, tratava-se de uma sociedade cujo capital social era R$ 24 mil reais, integralizado a partir de 17 imóveis. Nessa situação, parte do valor dos imóveis foi utilizada para integralização do capital social e o valor remanescente foi lançado, como reserva de capital, na conta de ágio no patrimônio líquido.

Assim, discutiu-se o alcance da imunidade tributária do ITBI sobre o valor dos bens que, excedendo o capital social a ser integralizado, foi utilizado em operação diversa. Fixou-se o entendimento que a imunidade do ITBI não alcança o valor destinado a reserva de capital.

Diante disso, a aplicação da Tese firmada no Tema 796 pelos jurisdicionados, demanda a análise das especificidades fáticas do julgado e a similitude com a situação concreta. Isto porque ali foi reafirmado o preceito da imunidade sobre imóveis integralizados no capital da sociedade, excluindo do espectro desta norma os valores que não forem destinados para tanto.

Logo, tendo o contribuinte utilizado o imóvel exclusivamente para a integralização do capital, estará sobre o espectro da norma imunizante. Caso haja a utilização do valor do imóvel para fins distintos da integralização, como no caso de reserva de capital, este objeto do Tema 796 STF, não estaria submetido a regra consubstanciada no artigo 156, §2º, I, CRFB.

Todavia, na prática, os que os municípios tem feito é desconsiderar o valor da operação do contribuinte, arbitrar um valor para o imóvel e tributar a diferença entre o considerado na operação e aquele que o Município entende ser cabível.

Cria-se uma diferença que se quer existe, como uma forma de garantir a arrecadação a partir da concepção de um fato gerador, sem fundamento jurídico algum.

Contudo, nos casos em que a integralização de capital ocorre com o valor integral do imóvel, havendo uma convergência dos valores entre o imóvel e o integralizado ao capital social, não há que se falar em excedente e, consequentemente, incidência do ITBI.

Ora, a Constituição garante a imunidade do ITBI quando da integralização e o STF, no Tema 796, decidiu a respeito do alcance da imunidade quando o valor do bem não é inteiramente utilizado para integralizar ao capital social da empresa. Qual seria, portanto, o subsidio legal que sustenta o entendimento dos municípios?

Além do mais, insta destacar que o valor declarado pelo contribuinte, para fins de integralização de capital goza de presunção de veracidade, segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o REsp. 1.937.821/SP em sede de recurso repetitivo, dando ensejo as seguintes teses no Tema nº 1.113:

1. A base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que sequer pode ser utilizada como piso de tributação;

2. O valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio, artigo 148 do CTN – Código Tributário Nacional); e

3. O município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido de forma unilateral.

Logo, ainda que fosse possível afastar questionar o valor do imóvel integralizado, tal fato somente é possível mediante o devido processo administrativo, nos termos do artigo 148 CTN, processo este destinado a aferir as circunstâncias que impactam no valor da operação com o imóvel, conforme jurisprudência do STJ. É ver o seguinte trecho da ementa do Tema 1113 STJ:

"A prévia adoção de um valor de referência pela Administração configura indevido lançamento de ofício do ITBI por mera estimativa e subverte o procedimento instituído no artigo 148 do CTN, pois representa arbitramento da base de cálculo sem prévio juízo quanto à fidedignidade da declaração do sujeito passivo."

A necessidade de fiscalização ainda decorre da exigência de conformidade das informações do contribuinte, haja vista que muitos casos o valor do imóvel integralizado é o mesmo das declarações de imposto de renda de pessoa física e jurídica. Logo, na integralização, há apenas uma transposição do bem de uma pessoa para outra.

Por isso, deve ser considerado válido o valor integralizado, não subsistindo razão para "criação" de um fato gerador, com a avaliação do imóvel integralizado, para considerar um valor que não foi o valor da operação.

Nesse raciocínio, corroborando o entendimento exarado até o momento, o Conselho Administrativo de Recursos Tributários do Município de Belo Horizonte (Cart/BH), tem afastado a aplicação do Tema 796 do STF [3].

Em seu voto, o relator esclarece que é preciso realizar um "distinguishing" entre a decisão do STF do Tema 796, e a situação fática que se apresenta [4].

Assim, o conselheiro de BH, enfrentando a decisão do STF com lucidez, elucidou que "percebe-se que o STF, longe de estar versando sobre a diferença entre o valor de incorporação e valor de mercado (…), está tratando sobre o excesso decorrente da diferença entre o valor de incorporação e o capital social, o qual adentra na sociedade não a título de realização/integralização, mas na forma de reserva de capital".

Assim, a esperança começou a surgir. E, diante disso, no âmbito judicial, destaca-se a recentíssima decisão liminar proferida no Mandado de Segurança n° 5002414-97.2023.8.13.0079 pelo juízo da 2ª Vara Empresarial, de Fazenda Pública e Registros Públicos de Contagem (TJ-MG), que compreendeu pela correta interpretação do Tema 796 no caso analisado.

O objeto de apreciação do juízo foi a integralização dos imóveis para composição do capital social do contribuinte.  Analisando sobre o Tema 796, informou o juízo que não desconhecia, entretanto, afirmou que "no caso objeto da Repercussão Geral, o valor dos imóveis excedia às quotas subscritas, destinando-se a formação de reserva de capital, extrapolando, no entendimento defendido pelo STF, ao disposto no citado artigo 156, §2º, da Constituição Federal".

Já no caso posto para analise daquele juízo, os imóveis foram inteiramente destinados à integralização do capital, de modo que a soma do valor dos imóveis é exatamente ao capital social daquela sociedade. E complementou que o STJ, no Tema 1.113, entendeu que "o valor da transação declarado pelo contribuinte presume-se condizente com o valor médio de mercado do bem imóvel transacionado". E ainda, trouxe que neste o "relator enfatizou que a presunção atribuída ao valor declarado pelo contribuinte poderia ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio, o que não ocorreu no caso em análise".

Assim, inexistindo o devido processo administrativo para análise do valor da operação realizada com o imóvel, não poderia o município de Contagem o avaliar arbitrariamente.

A partir do exposto, tem-se duas conclusões prévias: esses municípios distorcem a decisão do STF a fim de salvaguardar a arrecadação a qualquer custo, ainda que, para isso, estejam indo na contramão da constitucionalidade; e as discussões sobre o ITBI estão longe de acabar.

Mas, ainda existe esperança e a legalidade há de vencer.

Tomando a liberdade de parafrasear Lavoisier, "na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma": na municipalidade, fato gerador se cria, legalidade se perde, nada se resolve.


[1] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2018.

[2] COSTA, Regina Helena. Imunidades Tributárias: teoria e análise da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 58.

[3]Processo n° 01.009929.21.8. Recurso Voluntário n° 11.465. CART/BH. Rel. Dr. Bernardo Morra Moreira.

[4] O distinguishing, como o próprio nome sugere, nas palavras de Fensterseifer (2015 Distinguishing e Overruling na aplicação do artigo 489, §1º,VI, do CPC/2015. Wagner Arnold Fensterseifer.), é uma técnica na qual distingue-se um caso do outro. É saber observar se os fatos que deram origem ao precedente, se diferem, na essência, daquele caso em julgamento.

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