Opinião

Responsabilidade civil do Estado nos ataques de tubarão em Pernambuco

Autor

  • Pedro Filipe Araújo de Albuquerque

    é procurador do município de João Pessoa (PB) advogado professor procurador-chefe da Procuradoria Setorial de Educação e Cultura da PGM João Pessoa e membro das Comissões Estaduais de Advocacia Pública e de Direito Administrativo da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional da Paraíba.

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11 de março de 2023, 6h08

Em 24 horas, ocorreram dois ataques de tubarão neste mês de março nas proximidades da "Igrejinha" de Piedade, bairro do município de Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco. Vídeos terríveis das severas mutilações ocasionadas pelas feras marinhas inundaram as redes sociais. O espanto e comoção gerais mais uma vez tomaram as ruas da Região Metropolitana do Recife.

Angeloleithold/Wikimedia Commons
Angeloleithold/Wikimedia Commons

Ataques de tubarão lamentavelmente ocorrem com frequência no litoral pernambucano, sobretudo após as obras do porto de Suape. Há registros históricos que datam do século 19. Inclusive, paira, na memória da população, o famoso caso do ataque ao frade carmelita, frei Serafim, que ocorreu também nos arredores da "Igrejinha", na década de 1940.

Frequentemente, a população pergunta e discute sobre qual a responsabilidade civil do estado diante dessas situações. Como se sabe, a Constituição assinala (vide artigo 144) que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, devendo ser exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

Analisando-se a temática, nota-se que foi instituído, em 17 de maio de 2004, por meio do Decreto Estadual nº 26.729, Comitê Estadual de Monitoramento de Incidentes com Tubarões. O Cemit é um colegiado composto pela Secretaria de Defesa Social, contando com a participação do Corpo de Bombeiros Militar de Pernambuco, Polícia Militar de Pernambuco, Instituto de Medicina Legal, Agência Estadual do Meio Ambiente, Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), Capitania dos Portos de Pernambuco, Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade, entre outros.

Cabe ao Cemit acompanhar e registrar os incidentes com tubarões, consolidando os dados estatísticos, definir estratégias e ações que visem minimizar os riscos de incidentes com tubarões nas praias afetadas, acompanhar as ações desencadeadas pelos diversos órgãos relacionados aos incidentes com tubarões, atuar como centro de referência, orientando as informações e discussões sobre o referido assunto e avaliar impactos de toda ordem, sejam econômicos, sociais ou ambientais, decorrentes dos incidentes e ações empreendidas.

Além disso, desde 1999, com a edição do Decreto Estadual nº 21.402, de 6 de maio de 1999, o Estado tem estabelecido zonas de interdição, para prática de surfe, body boarding e atividades náuticas similares, entre outras, em áreas da orla marítima pernambucana. Um breve passeio, na praia, revela inúmeras placas de aviso de risco de ataque. Observam-se também bombeiros posicionados estrategicamente a vigiar a praia e o mar. Ainda assim, algumas pessoas permanecem se arriscando no mar. Diante disso, cabe indagar se o Estado é civilmente responsável pelos danos gerados nos ataques de tubarão.

A questão sobre responsabilidade civil do Estado chegou ao Tribunal de Justiça de Pernambuco, mediante julgamento de apelação, cuja ementa segue a seguir:

"RESPONSABILIDADE CIVIL. ATAQUE DE TUBARÃO. INEXISTÊNCIA DO DEVER DO ESTADO DE REPARAR A VÍTIMA. AUSÊNCIA DE NORMA JURÍDICA QUE IMPONHA DEVER EXPRESSO AO ESTADO DE PATRULHAR A COSTA PARA PREVENIR ESSE TIPO DE ACIDENTE. APELO IMPROVIDO. 1. Em relação a omissões do Estado, a jurisprudência tem apontado que sua responsabilidade é de natureza subjetiva. É que não pode haver nexo causal entre uma omissão e um dano. Sendo a omissão a abstenção de um comportamento, não está apta a causar, no plano físico, um resultado direto e danoso. Assim, para que se possa caracterizar a responsabilidade por omissão é necessário que haja, por parte do Estado, o descumprimento de um dever jurídico de agir. Só se pode pleitear indenização do Estado por ato omissivo quando a omissão representar uma violação direta de um dever expresso em norma jurídica. 2. Não existe nenhuma norma jurídica de onde se possa extrair obrigação do Estado de monitorar a costa pernambucana ou evitar a todo custo ataques de tubarão. 3. Apelo improvido". (Tribunal de Justiça de Pernambuco, Apelação Cível 301068-2, Processo 0203669-56.2005.8.17.0001, relator Ricardo de Oliveira Paes Barreto, 2ª Câmara de Direito Público, j. 27/11/2014, data da publicação 4/12/2014).

Analisando-se o feito, percebe-se que, no caso, a 2ª Câmara de Direito Público adotou, quanto à natureza da responsabilidade civil nos casos de omissão estatal, a teoria da responsabilidade subjetiva. Assim, como, no caso, não se verificou ato omissivo estatal que configurasse violação direta de um dever expresso em norma jurídica, entendeu-se improvimento do recurso apresentado pelo particular.

A doutrina e a jurisprudência divergem sobre a natureza da responsabilidade civil nos casos de omissão estatal. Em feliz sistematização, Rafael Oliveira [1], anota:

Sobre o tema existem três entendimentos:
Primeira posição: responsabilidade objetiva, pois o artigo 37, §6.º, da CRFB não faz distinção entre condutas comissivas ou omissivas. Nesse sentido: Hely Lopes Meirelles.
Segunda posição: responsabilidade subjetiva, com presunção de culpa do Poder Público (presunção juris tantum ou relativa), tendo em vista que o Estado, na omissão, não é o causador do dano, mas atua de forma ilícita (com culpa) quando descumpre o dever legal de impedir a ocorrência do dano. O artigo 37, §6º, da CRFB, ao mencionar os danos causados a terceiros, teve o objetivo de restringir a sua aplicação às condutas comissivas, uma vez que a omissão do Estado, nesse caso, não seria "causa", mas "condição" do dano. Nesse sentido: Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Celso Antônio Bandeira de Mello, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Diógenes Gasparini, Lúcia Valle Figueiredo e Rui Stoco.
Terceira posição: nos casos de omissão genérica, relacionadas ao descumprimento do dever genérico de ação, a responsabilidade é subjetiva. Por outro lado, nas hipóteses de omissão específica, quando o Estado descumpre o dever jurídico específico, a responsabilidade é objetiva. Nesse sentido: Guilherme Couto de Castro e Sergio Cavalieri Filho.

Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal decidiu que "em caso de inobservância do seu dever específico de proteção previsto no artigo 5.º, inciso XLIX, da Constituição Federal, o Estado é responsável pela morte de detento" (Tema 592 da Tese de Repercussão Geral do STF – Leading Case: RE 841526), adotando a responsabilidade objetiva do Estado pelos danos em relação aos detentos, na forma do artigo 37, §6º, da Constituição.

No mesmo sentido, relativamente ao Tema 366 da Tese de Repercussão Geral do STF, a corte suprema adotou a tese no sentido de que "Para que fique caracterizada a responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do comércio de fogos de artifício, é necessário que exista a violação de um dever jurídico específico de agir, que ocorrerá quando for concedida a licença para funcionamento sem as cautelas legais ou quando for de conhecimento do poder público eventuais irregularidades praticadas pelo particular" (Leading Case: RE RE 136861).

Diante disso, entende-se que a responsabilidade civil estatal, nos termos da Constituição (artigo 37, §6º) está submetida à teoria do risco administrativo, tanto relativamente às condutas estatais comissivas quanto às omissivas. Ressalte-se que, para haver responsabilização do Estado, deve se configurar omissão em relação ao dever específico de proteção, demandando-se nexo de causalidade entre a omissão e o dano sofrido pela vítima, em situações em que o Poder Público tem o dever legal e efetiva possibilidade de agir para evitar os danos.

Nos casos recentes de ataques de tubarão, ocorridos na costa pernambucana, em primeira análise, opina-se respeitosamente que não se vislumbra omissão do Estado em seu dever de informar e fiscalizar. É fato público e notório que, nos arredores da "Igrejinha", há um risco enorme de ataques dessas feras marinhas.

Ademais, a Fazenda Pública poderia, conforme a teoria do risco administrativo, invocar a culpa exclusiva da vítima como excludente do nexo de causalidade. Isso porque a vítima, devidamente informada sobre a possibilidade de ocorrerem ataques no local, assumiu o risco de entrar no mar. Lamenta-se o ocorrido, porém, há de se ressaltar que o Estado não deve se tornar um segurador universal.


[1] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende Curso de direito administrativo, 9ª edição, Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021.

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