Opinião

A ameaça fiscal dos estados sobre
os seguros de vida

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10 de março de 2023, 13h16

Uma das questões que — sem razão — têm agitado os tribunais sobre a base de cálculo do ITCMD gira em torno da abrangência da norma do artigo 794, última parte, do Código Civil. O dispositivo afasta do conceito de herança os seguros de vida e os de acidentes pessoais. Como consequência, essas modalidades não se sujeitam às dívidas do autor da herança, não são objeto de partilha em inventário, nem sobre elas incide o ITCM.

Ocorre que a sanha arrecadatória de alguns estados têm incluído os seguros do tipo Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL) na base da cálculo do tributo, e consequentemente lavrado autos de infração contra seus beneficiários.

Trata-se de violação da norma do artigo 794 do Código Civil, que têm recebido a devida reprimenda do Superior Tribunal de Justiça:

"(…) A Segunda Turma desta Corte, nos autos dos REsp nº 1.961.488/RS, Rel. Min. Assusete Magalhães, DJe 16/11/2021 e REsp nº 1.963.482/RS, Rel. Min. Assusete Magalhães, DJe 18/11/2021, reiterou o entendimento no sentido da natureza de seguro do plano VGBL, de modo que os valores a serem recebidos pelo beneficiário, em decorrência da morte do segurado contratante de plano VGBL, não se consideram herança, como prevê o art. 794 do CC/2002" [1].

Nem mesmo a Superintendência de Seguros Privados (Supep) e o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) deixam de acentuar a natureza securitária do VGBL, como se via na já revogada Resolução 140/2005, e hoje na Resolução 348/2017, ambas do CNSP:

"Art. 3º. As disposições desta Resolução se aplicam, obrigatoriamente, a todo e qualquer plano de seguro de pessoas que ofereça cobertura por sobrevivência que, nos termos do art. 8°, § 9º, do Decreto n° 60.459, de 13 de março de 1967, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto n° 3.633, de 18 de outubro de 2000, for aprovado a partir do início da vigência da mesma.

(…)

Art. 7º. Os planos serão dos seguintes tipos:

I – Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL), quando, durante o período de diferimento, a remuneração da Provisão Matemática de Benefícios a Conceder for baseada na rentabilidade da(s) carteira(s) de investimentos de FIE(s), no(s) qual(is) esteja(m) aplicada(s) a totalidade dos respectivos recursos, sem garantia de remuneração mínima e de atualização de valores e sempre estruturado na modalidade de contribuição variável;"

Feitas estas considerações, não se olvidam julgados oriundos das turmas de direito privado do STJ, no sentido de que o VGBL e o PGBL podem configurar mero investimento financeiro ou mesmo fraude à meação, e de determinar a partilha destes seguros [2].

Entretanto, por ora, referidas turmas de direito têm respeitado o espaço de competência das turmas de direito público, reconhecendo que tais julgamentos se cingem à seara da propriedade compartilhada entre os cônjuges, ao passo que para sob a perspectiva do direito público a questão se volta para a relação jurídica dos titulares das previdências perante o Fisco [3], e não mais destes com seus núcleos familiares.

Já as Turmas de Direito Público vêm se mantendo fiéis à referida norma legal a despeito dos julgados já mencionados, como se vê no aresto transcrito a seguir na parte que interessa:

"Em que pese aos precedentes da turma de Direito Privado deste Tribunal colacionados pela parte agravante, o entendimento mais recente das turmas que compõem a Seção de Direito Público desta Corte Superior, com competência sobre assuntos de Direito Tributário, é de que os valores recolhidos a título de VGBL não são considerados herança, nos termos do art. 794 do Código Civil e, portanto, não incide o imposto causa mortis e doação – ITCM" [4].

É possível que a questão ainda seja remetida à Corte Especial do STJ. Mesmo assim, o STF, que ainda em 2021 entendia com acerto que a questão ventila revisão de provas e controvérsia infraconstitucional [5], resolveu afetar o tema à repercussão geral [6]. Este julgamento pode trazer graves implicações ao planejamento sucessório, se com ele a carga tributária for incrementada ainda mais.

Não há fundamento idôneo para a assunção da competência pelo STF. Sem qualquer referibilidade na Lei Maior, a questão se encerra na lei ordinária — o artigo 794 do Código Civil —, e tem no STJ seu intérprete constitucionalmente designado.

Do contrário, os mais variados temas do direito infraconstitucional poderiam ter repercussão geral reconhecida, mesmo quando ausente a ofensa direta à Constituição, o que à toda evidência não foi a intenção do Constituinte.

 


[1] : AgInt no AgInt no AREsp nº 1.766.626/RS, relator Ministro Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, julgado em 26/4/2022, DJe de 29/4/2022.

[2] REsp n. 1.726.577/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 14/9/2021, DJe de 1/10/2021, REsp n. 1.880.056/SE, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 16/3/2021, DJe de 22/3/2021.

[3] REsp nº 1.695.687/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relatora para acórdão ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 5/4/2022, DJe de 19/4/2022.

[4] AgInt no AREsp nº 1.748.288/RS, relator ministro Francisco Falcão, 2ª Turma, julgado em 13/12/2021, DJe de 15/12/2021.

[5] RExt 1325181 AgR, relator(a): ROBERTO BARROSO, 1ª Turma, julgado em 05/09/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-187 DIVULG 17-09-2021 PUBLIC 20-09-2021, ARE 1266214 AgR, relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, 1ª Turma, julgado em 24/8/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-218 DIVULG 31-08-2020 PUBLIC 01-09-2020.

[6] Tema 1.214, RE 1.363.013 RG, relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 12/5/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-098 DIVULG 20-05-2022 PUBLIC 23-05-2022.

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