Opinião

A adoção do nascituro como instrumento de preservação da vida

Autor

  • Reis Friede

    é desembargador federal presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019-2021) mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

9 de março de 2023, 19h34

A adoção é um dos caminhos para se constituir uma família, instituição cujo conceito e relevância constitucional já foram demonstrados neste capítulo. Para isso, o Estado conta com um aparato legal destinado a regular todo o processo de adoção, que compreende uma série de princípios, requisitos, etapas e procedimentos previstos lei, cujo objetivo é conduzir, de forma segura, a criança ou o adolescente a uma nova família.

Não obstante a existência dessa disciplina normativa relativa ao instituto da adoção de crianças e adolescentes, forçoso reconhecer a existência de polêmica sobre a possibilidade de a adoção recair sobre o nascituro.

Um dos argumentos frequentemente esposados para refutá-la apega-se à letra fria da lei, afirmando inexistir expressa previsão normativa que a autorize, seja na Constituição Federal ou nas leis que regem a matéria (Lei nº 8.069/1990, Código Civil de 2002 e Lei nº 12.010/2009). Nessa linha de raciocínio, são invocados, por exemplo, os seguintes argumentos, ora selecionados e imediatamente rebatidos:

a) Argumento: o artigo 42, § 3º, do ECA, estabelece que "o adotante há de ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho do que o adotando", requisito objetivo impossível de ser cumprido, uma vez que o nascituro não possui idade.

Contra-argumento: em oposição, diz-se que o nascituro possui idade biológica (gestacional), algo facilmente verificável pela Medicina, não havendo qualquer dificuldade em se determinar a diferença entre a idade do adotando (nascituro) e a do adotante.

b) Argumento: é incoerente pensar em adoção do nascituro, que ainda não nasceu, e cuja personalidade só começará com o nascimento com vida (artigo 2º do Código Civil).

Contra-argumento: o mesmo artigo 2º do Código Civil põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro, entre os quais o direito à convivência familiar.

c) Argumento: o fato de existirem projetos leis propostos por Parlamentares interessados em introduzir no Direito brasileiro a adoção do nascituro constitui um evidente sinal de que essa figura não encontra guarida em nenhuma regra do Ordenamento Jurídico brasileiro.

Contra-argumento: em objeção, afirma-se que a presença de um determinado instituto jurídico nem sempre é literal e imediatamente identificável. Afinal, o raciocínio jurídico tem revelado que muitas normas somente são alcançáveis após um árduo e complexo processo interpretativo, no qual incidem, além do método literal — em geral o ponto de partida do empreendimento exegético —, outros métodos (histórico, lógico, sociológico, sistemático etc.).

De fato, a interpretação literal (ou gramatical) foi bastante empregada, com denotada importância, na fase áurea da Escola da Exegese, surgida na França do século XIX, na linha do pensamento jurídico que se seguiu ao Código Napoleônico de 1804. Dela resultou o famoso aforismo in claris cessat interpretatio — sendo a lei é clara, não há necessidade de interpretá-la —, ora corretamente desprestigiado. Naquela época, considerava-se relevante apenas buscar o que o Legislador havia escrito, pois tal era entendido como a vontade da lei, fundida à própria vontade do seu elaborador. Na quadra atual, a relevância da interpretação gramatical repousa exatamente no fato de ser ela o ponto de partida para a utilização dos demais meios interpretativos.

"No caso dos textos legais, raramente a mens legis se revela de imediato. Com efeito, na maior parte das vezes, o preciso significado de um preceito jurídico só pode ser alcançado mediante um esforço exegético que exige a combinação de vários métodos hermenêuticos: o gramatical, o sistemático, o histórico, o teleológico, dentre outros" (ministro Ricardo Lewandowski; STF, ADPF nº 54, 2012).

A moderna hermenêutica jurídica ensina que o ato interpretativo, para ser considerado consistente, deve levar em conta outros aspectos que não o simples aspecto literal do texto. Isso porque se fiar na literalidade das regras legais pode ser perigoso. Em muitos casos, constatar a presença de uma categoria jurídica do Direito demanda o emprego do denominado método sistemático, cuja essência parte da premissa segundo a qual as regras jurídicas não se apresentam dispostas de maneira isolada, estanque. Ao contrário, elas fazem parte de um sistema normativo, que por definição congrega milhares de regras e de diplomas legislativos. Assim, a "interpretação sistemática revela-se como a busca do sentido global da norma em um conjunto abarcante, envolvendo sempre uma teleologia, visto que a percepção dos fins não é imanente a cada norma isoladamente, mas exige uma visão ampliada da norma dentro do Ordenamento Jurídico" (Ricardo Maurício Freire Soares; Elementos de Teoria Geral do Direito, 2013, p. 325).

É exatamente nesse sentido que Sérgio Gischkow Pereira, citado por Rolf Madaleno, ao se manifestar favoravelmente à adoção do nascituro, propõe seja realizada uma interpretação sistemática do Direito de Família:

"1°) o nascituro pode receber doação: artigo 542; 2°) o nascituro pode ser reconhecido: artigo 1.609, parágrafo único; 3°) o nascituro pode receber herança: artigo 1.798; 4°) o nascituro pode ajuizar ação de investigação de paternidade e de alimentos: RJTJRS, 104/418 e Revista de Direito Civil, 68/181; 5°) a primeira parte do artigo 2° do Código Civil não pode ser tomada isoladamente, com desconsideração da segunda parte; de que adiantaria pôr a salvo desde a concepção os direitos do nascituro, se, não se permitindo a adoção, pudesse se frustrar o pagamento de alimentos para o mesmo, salvando sua vida, ou, pelo menos, evitando que nascesse com retardamento mental, em face da desnutrição?; 6°) não é razoável que a dignidade humana não atinja os nascituros, como se não fossem seres humanos" (Rolf Madaleno; Direito de Família, 2018).

Indo além do raciocínio de Sérgio Gischkow, entendemos necessário buscar uma exegese sistematizante ainda mais ampla, de modo a abarcar o próprio Texto Constitucional, em especial o que já foi sustentado neste capítulo a respeito dos direitos à vida e à convivência familiar inerentes ao nascituro (artigo 1º, III; artigo 5º, caput, c/c artigo 227, caput, todos da CF). Isso porque a facilitação legal dessa modalidade de adoção constitui, a nosso ver, uma alternativa para evitar que uma gravidez indesejada possa redundar em aborto. Conforme já explicado, entendemos que o direito à vida, consagrado em norma constitucional, abarca a vida intrauterina. Indo ainda mais longe, defendemos que o nascituro ostenta direito à convivência familiar.

Significa dizer, pois, que a adoção do nascituro pode sim ser uma alternativa para viabilizar e preservar dois dos diversos direitos constitucionais titularizados pelo nascituro: o direito à vida intrauteria e o direito à convivência familiar. Afinal, de acordo com o artigo 100, parágrafo único, IV, do ECA — parágrafo e inciso incluídos pela Lei nº 12.010/2009 (Lei da Adoção) —, um dos princípios que regem a aplicação das medidas específicas de proteção é o do interesse superior da criança e do adolescente. Princípio este perfeitamente aplicável ao nascituro, ainda que por meio de um raciocínio analógico (artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Nesse sentido, "a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do adolescente [por analogia, ao nascituro], sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto" (inciso IV). No caso, a forma de adoção aqui cogitada, ao mesmo tempo em que preserva a vida do nascituro — o interesse superior —, atende a dois interesses convergentes: o da gestante que, por diversas razões, não deseja criar o filho que traz no útero; e o de pessoa(s) interessada(s) na adoção da criança ainda em gestação.

A proposta ora formulada — e que certamente precisa ser objeto de reflexão e aprimoramento, algo indispensável em se tratando de temas relevantes — se justifica, em primeiro lugar, pela finalidade de preservar a vida do nascituro, em relação ao qual a gestante expressamente já manifestou o interesse de não assumi-lo. Mas também objetiva inserir o nascituro em uma família que lhe proporcione afeto e os demais direitos consagrados no artigo 227, caput, da Constituição Federal.

A ideia de se evitar que uma gravidez indesejada possa vir a figurar nas tristes e dramáticas estatísticas de abortos certamente inspirou a apresentação do Projeto de Lei do Senado nº 138/2013, de autoria do senador João Costa (PPL-TO), PLS arquivado ao final da legislatura (artigo 332 do Regimento Interno do Senado Federal). Na ocasião, buscava-se a alteração na Lei nº 12.010/2009 (Lei da Adoção), a fim de incluir o nascituro no rol legal daqueles que podem ser adotados, nos seguintes termos:

"Art. 1º. A Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009, que dispõe sobre a adoção, passa a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o aperfeiçoamento da sistemática prevista para garantia do direito à convivência familiar a todos os nascituros, crianças e adolescentes, na forma prevista pela Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente. […]

§ 2º. Na impossibilidade de permanência na família natural, o nascituro, a criança e o adolescente serão colocados sob adoção, tutela ou guarda, observadas as regras e princípios contidos na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, e na Constituição Federal.
§ 3º. Considera-se nascituro, desde a sua concepção, o ser humano que está por nascer e que aguarda o seu nascimento no ventre materno.
§ 4º. Aplicam-se ao nascituro, quando compatíveis, todos os direitos assegurados às crianças e aos adolescentes.
§ 5º. Serão criados e implementados cadastros estaduais e nacional de nascituros em condições de serem adotados e de pessoas ou casais habilitados à adoção.

§ 5º. Os processos de adoção dos nascituros tramitarão em sigilo, especialmente no que se refere à qualificação da mãe biológica, cujo nome poderá, por meio de decisão judicial, ser substituído por pseudônimo" (Senador João Costa; PLS nº 138/2013).

Segue a justificação apresentada pelo senador João Costa, autor do PLS nº 138/2013:

"JUSTIFICAÇÃO

Ensina o prof. Hélcio Madeira, da Universidade de São Paulo, que:

[…] é preciso criar males menores e preferíveis à morte do nascituro, em garantia de, por exemplo, seu direito à adoção, à nomeação de um curador ao ventre, à saúde patrocinada pelo Estado. Compara-o, com desvantagem capital, simplesmente a uma res e não a outra vida.

Se é certo que a gestante pode dispor de alguns de seus direitos, não é menos certo que sua iniciativa não pode atingir direitos de terceiros, especialmente os mais expressivos dos direitos do nascituro: o direito à vida e à integridade física. Não se pode esquecer da paridade ontológica (igualdade) entre os direitos dos nascituros e dos nascidos, assim lembrada pelo professor Hélcio Madeira:

[…] tentativa de desumanização ou 'despersonalização' do nascituro por meio da manipulação de categorias abstratas, como a de 'personalidade jurídica', aliada à 'excessiva dilemização' do tema levou-nos a uma crise a que somos convocados a superar, em razão da proliferação de normas e teorias que introduziram indevidamente a 'efetividade' no lugar da 'validade', os 'fatos' no lugar dos direitos, 'particularismo jurídico' no lugar do universalismo, as 'abstrações conceituais' no lugar da concretude da ciência do direito, a 'cidadania restrita individualista' no lugar da 'cidadania crescente universal'.

A interrupção da gravidez, ainda que realizada por um especialista, em um bom hospital, não deixa de representar uma séria e grave intervenção no organismo da gestante.

A garantia de acesso à informação e aos serviços de assistência à saúde reprodutiva, bem como iniciativas de conscientização contrárias ao abortamento voltadas para gestantes que, num primeiro momento, estão decididas a interromper a gravidez, representa uma forma de proteção à vida e à saúde da própria gestante.

Em inúmeros casos, a criação de alternativas e opções pelos governos, para abrigar, proteger as crianças após o nascimento e assegurar o sigilo da gravidez, pode defender a vida e evitar a morte, riscos, consequências e complicações, causados por abortamentos realizados em condições precárias de higiene, por pessoas não qualificadas e com o emprego de métodos perigosos.

A possibilidade de adoção do nascituro é, sem dúvida, uma alternativa em defesa de sua vida e da vida da gestante, que, diante da falta de opção, opta pelo abortamento e acaba desencadeando graves sequelas, a morte do nascituro e, às vezes, a sua própria morte. Inquestionavelmente, a possibilidade de adoção do nascituro, como opção e alternativa ao aborto, representará um significativo avanço em defesa da vida.

Solicitamos aos eminentes pares o apoio imprescindível para a aprovação desta matéria, assim como as iniciativas voltadas ao seu aperfeiçoamento" (senador João Costa; PLS nº 138/2013).

Concordamos plenamente com a justificação acima, principalmente com a ideia de formular uma saída viável para evitar o abortamento e preservar a vida do nascituro. Obviamente que, em se tratando de adoção do nascituro, algumas regras legais específicas precisarão ser discutidas e construídas pelo Parlamento brasileiro. Outras tantas já previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Código Civil e na Lei de Adoção demandarão pequenas e pontuais alterações. De qualquer forma, trata-se de matéria merecedora de especial atenção por parte do Congresso Nacional (artigo 22, I, da CF de 1988), cuja discussão mais ampla deve ocorrer no âmbito do devido processo legislativo.

Autores

  • é desembargador federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região e professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!