Opinião

Os desafios da mulher na política

Autor

  • Kátia Rubinstein Tavares

    é advogada criminalista doutora pela Uerj em Políticas Públicas e Formação Humana conselheira da OAB-RJ diretora da Sacerj diretora do Instituto dos Advogados Brasileiros e autora do parecer favorável à ADPF 442 no STF que foi aprovado pelo IAB em 2018.

8 de março de 2023, 6h32

No último dia 24 de fevereiro comemorou-se 91 anos da conquista do voto feminino e do Código Eleitoral. A data nos inspira a escrever sobre os desafios das mulheres no mundo da política; especialmente quando também se celebra em março o mês da mulher.

Pensar no papel social exercido pelas mulheres na sociedade brasileira (mais especificamente sob a ótica da política) é sempre um exercício importante, principalmente quando levamos em consideração a análise de uma sociedade como a nossa, na qual o homem sempre ocupou mais o espaço público em detrimento da mulher mais afeita ao privado.

O voto feminino somente foi realmente assegurado em todo o Brasil a partir da Constituição de 1934, que possibilitou instrumentos jurídicos para que as brasileiras então pudessem ir às urnas eleger seus representantes. Entre eles, elegeu-se como deputada pioneira do Parlamento, Carlota Pereira de Queirós, em São Paulo.

Posteriormente, com o Estatuto da Mulher Casada (1962) regulamentou-se sua situação jurídica diferenciada e consagraram-se seus direitos civis, pois naquela época o Código Civil de 1926 não permitia à mulher ter profissão, receber herança, entre outras restrições; ou, ainda, precisava da autorização do marido até para trabalhar ou abrir conta bancária. A partir dessa data emblemática, ela passou a ter direitos sobre os filhos, compartilhar o pátrio poder, podendo até mesmo assumir a guarda deles, o que lhe era negado.

Precisamos contextualizar uma realidade relevante para esse debate. A política ainda é um espaço restrito de atuação das mulheres. Embora de acordo com o IBGE mais da metade da população brasileira (51,13%) seja do sexo feminino, as mulheres representam, segundo Tribunal Superior Eleitoral, 53% do eleitorado. No entanto, elas ocupam hoje menos de 15% dos cargos eletivos. Portanto, o aumento na participação do voto das mulheres não significa dizer que elas estão realmente inseridas no espaço da política brasileira.

Desde o início da República, o país teve uma única presidente, Dilma Rousseff, e apenas 16 governadoras mulheres. Dessas, só oito foram eleitas, as demais assumiram o cargo com a saída do titular. As oito eleitas governaram seis estados — Maranhão, Rio Grande do Norte, Pará, Rio de Janeiro, Roraima e Rio Grande do Sul —, sendo três delas no Rio Grande do Norte. O estado nordestino, aliás, é pioneiro na participação feminina no âmbito da política. Foi o primeiro estado, em 1927, a autorizar que as mulheres pudessem votar e serem votadas. Também em 1928, elegeu a primeira prefeita do país: Alzira Soriano, na cidade de Lajes.

Os desafios encontrados pelas mulheres nas suas conquistas, tanto na política quanto na sociedade de modo geral (e um bom exemplo são as dificuldades no mercado de trabalho), ainda são imensos. Mesmo se admitindo que as mulheres estejam conquistando o seu espaço na política brasileira, é preciso defender a necessidade de aplicação de políticas públicas, como meio de ampliar a participação feminina.

Nesse sentido, foi promulgada em setembro de 2021 a Emenda Constitucional 111, que determinou a contagem em dobro dos votos dados a mulheres e pessoas negras no cálculo da distribuição dos recursos dos fundos partidário e eleitoral nas eleições. Além disso, em abril de 2022, a Emenda constitucional 117 incluiu na Constituição a destinação de 30% dos recursos de campanha dos partidos para candidaturas femininas. Caso o partido venha lançar mais que 30% de candidaturas femininas, o tempo de rádio e TV e os recursos devem aumentar na mesma proporção. Por outro lado, os partidos são obrigados a reservarem uma participação de, no mínimo, 30% para cada sexo.

Outra reflexão que merece ser debatida é sobre a violência em razão do gênero com objetivo de anular o exercício de seus direitos e sua atuação no âmbito político.

É comum o enfrentamento do preconceito na política contra mulheres, que são preteridas a ocupar posições de alto destaque; e, ainda, os ataques machistas visando destruí-las, quando se destacam no cargo desempenhado. Elas sofrem ameaças, xingamentos, assédio sexual e são submetidas a questionamentos sobre sua vida privada, aparência física, forma de vestir, relacionamentos, dentre outras violências.

A partir de um caso emblemático, envolvendo o assassinato da vereadora Marielle Franco, na cidade do Rio de Janeiro, em 2018, a violência política contra as mulheres ganhou holofotes na mídia e nos debates nacionais. Em 2021, foi sancionada a Lei 14.192, que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra mulher. Entre outras normas, inseriu o artigo 326-B no Código Eleitoral, que tipifica o crime de violência política nos seguintes moldes: "assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo", com pena de "reclusão, de um a quatro anos, e multa".

Trata-se de mais uma legislação simbólica  a Lei 11.192/2021  por meio das quais são aprovadas leis penais mais severas como resposta imediata exigida pela sociedade; ou, ainda, por determinado grupo social. Insiste-se na crença de que a criação de leis penais mais rigorosas trará a repreensão necessária de forma a conter aquele conflito social, que ora desponta como insolúvel. Porém, ao se criar tal legislação não se combate as causas reais de tais conflitos. O pressuposto deveria ser o critério ultima ratio a nortear a aplicação do Direito Penal [1].

Enquanto reação monopolizadora, o Direito Penal oculta as estruturas desiguais e opressoras, além de impedir que sejam adotadas políticas públicas mais eficazes a fim de enfrentar a questão. A falsa sensação de resolução do problema gerada com a imposição da pena afasta o olhar do foco principal a ser destacado, "deixando encobertos e intocados os desvios estruturais que os alimentam" [2], de modo a camuflar a perspectiva de que a violência de gênero resulta de desvios estruturais.

Ao se aprofundar sobre tema, podemos constatar que as intervenções de prevenção do Estado são mínimas a fim de coibir a violência de gênero na política. Pouco se investem em ações sociais, que visem enfrentar as causas estruturais desse fenômeno. Ao revés, observa-se claramente o emprego de prática comum no Brasil, o endurecimento da legislação vigente, em que o Direito Penal é utilizado, na aplicação de suas normas, enquanto instrumento de enfrentamento dos problemas estruturais de uma sociedade construída sob a égide machista e do patriarcalismo.

Afirmar que a pena não é solução para prevenir e proteger mulheres em situação de violência, e que só é capaz de produzir mais danos não significa, de modo algum, acobertar as agressões baseadas em gênero. Ao invés de buscar uma punição a qualquer custo, parece ser mais eficiente que se lute por uma conscientização das responsabilizações; especialmente, para que se possa compreender o fenômeno social em toda sua complexidade. Existem múltiplas vertentes para construção de medidas mais adequadas e que resultem em mudanças bem mais eficazes. A causa do preconceito é muito mais uma postura sociocultural, em cujas condições se desencadeiam todas as condutas criminógenas contra as mulheres.

Segundo Edson Passetti, a proposta abolicionista pressupõe criar uma estratégia composta de coragens libertadoras, a qual permita a coexistência de uma ou mais respostas diante de um conflito, e que não tenha a pretensão de universalidade. Entretanto, que sejam construídas a partir de um diálogo horizontal, e não através de uma imposição vertical entre juiz, agressor e vítima [3].

Nesse debate, é extremamente importante valorizar a participação ativa da voz feminina em todos os segmentos da sociedade para construção de novas estratégias, que visem a resolução dos conflitos. Para além, é necessário que sejam elaborados métodos mais eficientes e verdadeiramente emancipatórios na busca das conquistas das mulheres, procurando alternativas ao processo do sistema de Justiça criminal, ao invés de se adotar medidas sancionatórias como alternativas [4].

Por tais razões, o caminho a ser trilhado para combater a violência de gênero é ampliação do modelo de Justiça Restaurativa no Brasil, com estratégias em busca de uma Justiça mais inclusiva e menos punitiva [5]. Assim, acredita-se seja possível alcançar mudanças estruturais na sociedade brasileira, por certo limítrofe, "mas eficazes, nas normas, rotinas e na consciência de cada um" [6].

 

[1] BATISTA. Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan. 2015.

[2], KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. Discursos sediciosos: Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, ano 01, v. 01, p. 79-92, jan./jun. 1996. p. 82.

[3] PASSETTI, Edson. A atualidade do abolicionismo penal. In: Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004. p. 13-33.

[4] HULSMAN, Louk. Alternativas à justiça criminal. In: Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004. p. 35-68.

[5] ANDRADE, Vera Pereira de. Pelas mãos da criminologia. Rio de Janeiro: Revan. 2014.

[6] GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução, apresentação e notas de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, Coleção Pensamento Criminológico, v. 16, p. 69. 2008

Autores

  • é advogada criminal, doutoranda em Políticas Públicas pela Uerj, diretora do Instituto dos Advogados Brasileiros, conselheira da OAB-RJ e diretora cultural da Sociedade dos Advogados Criminais do Estado do Rio de Janeiro (Sacerj).

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