Calcanhar de Aquiles

Baixa especialização de varas ainda é gargalo para recuperação judicial no Brasil

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8 de março de 2023, 21h09

Procedimento concebido para preservar empresas, postos de trabalho e interesses de credores, a recuperação judicial ainda enfrenta um obstáculo nos tribunais do país: a baixa quantidade de juízos especializados para lidar com as complexidades específicas do processo. É o que mostra a pesquisa "Especialização e Consensualidade na Recuperação de Empresas", do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento, divulgada em fevereiro.

Divulgação
Pesquisa foi produzida pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento
FGV Rio

O levantamento, que agrega dados fornecidos pelos próprios tribunais, mostra que há 23 varas especializadas distribuídas em dez estados. São Paulo concentra cinco delas. Ceará, Mato Grosso e Tocantins indicaram ter três varas especializadas cada. Bahia, Rio Grande do Sul e Paraná têm duas varas, enquanto Distrito Federal, Santa Catarina e Sergipe têm apenas um juízo especializado.

Ainda de acordo com a pesquisa, somente quatro estados já contam em sua estrutura com a previsão ou a efetiva instalação de Câmaras Especializadas em Falência e Recuperação Empresarial: Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná. A amostra da pesquisa contém dados de 22 Tribunais de Justiça, que responderam ao formulário entre os meses de setembro e novembro de 2022.

"A pandemia da Covid-19 causou grande impacto no funcionamento das empresas brasileiras, resultando em prejuízos significativos em suas atividades, cabendo ao Judiciário fomentar a abertura de novos padrões de solução de conflitos para enfrentar a atual realidade econômica, afastando a exclusividade da solução adjudicada dos litígios", observa o ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, coordenador do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento.

"Além de fazer um diagnóstico da situação de varas empresariais e implantação de mecanismos de solução consensual, o estudo também aponta soluções. Entre elas, estão a expansão do número de varas especializadas, a criação de mais Cejuscs e a multiplicação das iniciativas de treinamento e capacitação de mediadores e conciliadores", afirma a juíza federal Clarissa Tauk, coordenadora científica do estudo, que contou com a colaboração de oito pesquisadores.

Em alta
Embora a entrada de novos pedidos de recuperação esteja em queda desde 2016, segundo números anuais da Serasa Experian, o total ainda revela um descompasso em relação à quantidade de juízes dedicados à questão. Só em 2022, foram 833 pedidos de recuperação judicial apresentados, 695 deles deferidos (83%).

O último mês de janeiro acendeu um alerta: pelos dados da Serasa divulgados pelo jornal O Estado de S. Paulo, 92 companhias solicitaram recuperação judicial em um mês — o maior volume em três anos, com tendência de alta.

Segundo o Ministério da Economia, até outubro de 2020, apenas 24% das grandes empresas e 9% das médias, micro e pequenas empresas voltaram à normalidade após pedir recuperação. O cenário é ruim para os negócios: o estudo "Doing Business 2020", do Banco Mundial, mostrou que a taxa de recuperação de créditos é de 18% no Brasil — contra 31% na América Latina.

"Não houve muitos pedidos de recuperação judicial na pandemia, como era aguardado, porque as empresas tentaram seguir com o fluxo de caixa que tinham e negociando com seus credores sem a formalidade de um processo judicial, bem como se socorrendo dos auxílios de créditos concedidos pelo governo. Acontece que muitas não tiveram sucesso e agora precisam se socorrer do Poder Judiciário com a medida pré-cautelar para frear a ação dos credores e abrir um espaço para uma negociação mais efetiva.  Hoje temos um número muito maior de pedidos de RJ. Aquele gargalo que surgiu após o período mais agudo da pandemia foi ultrapassado e as demandas que se esperavam para aquela época estão sendo propostas agora", comenta Tauk.

A pesquisa alerta que a falta de uma estrutura adequada para tratar dos temas de recuperação judicial e falência é prejudicial para o processo de soerguimento das empresas.

"A especialização é uma tendência mundial que busca dar tratamento uniforme à aplicação da lei, com impactos também na tramitação processual. A recuperação judicial é um processo muito complexo, com várias fases, e o juízo especializado é melhor porque o juiz, o promotor e os serventuários se dedicam às questões próprias da recuperação", afirma a pesquisadora colaboradora do Centro do Judiciário Renata Braga.

Também segundo o levantamento, dos 22 tribunais que participaram, dez indicaram adotar algum tipo de procedimento prévio para verificar as reais condições de funcionamento da empresa que apresentou o pedido: Bahia, Ceará, Distrito Federal, Mato Grosso, Pará, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins.

Outro dado do estudo diz respeito aos critérios adotados para abertura de novas varas especializadas. Apenas seis tribunais (São Paulo, Tocantins, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Paraná e Distrito Federal) que participaram da pesquisa indicaram que a quantidade de empresas em determinada região foi o critério a ser considerado para a criação de varas ou câmaras especializadas.

Soluções consensuais
A pesquisa aponta para mecanismos consensuais de solução de conflitos como ferramenta importante no processo de recuperação das empresas. Isso porque instrumentos como conciliação e mediação permitem otimizar a negociação da empresa devedora com seus credores e devedores.

"Desde 2020, o Conselho Nacional de Justiça, acertadamente, recomenda a criação de Cejuscs especializados e fomenta a utilização de meios como a mediação e a negociação nos casos envolvendo empresas em crise. Essa atuação do Judiciário brasileiro, em linha com as inovações internacionais, vai ao encontro da própria natureza negocial do processo de recuperação de empresas", afirma Juliana Loss, coordenadora acadêmica do Centro do Judiciário da FGV Conhecimento, juntamente com a juíza federal Caroline Tauk.

Do total de 22 tribunais que participaram da pesquisa, 16 têm cadastrados, ao menos, uma Câmara Privada de Mediação e Conciliação. Por outro lado, a implantação dos Cejuscs especializados ainda engatinha na área empresarial.

Apenas seis tribunais (Amapá, Minas Gerais, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Sergipe e Paraná) afirmaram terem estruturado algum Cejusc especializado em conflitos empresariais. Entre as dez cortes que não têm Cejusc especializado, quatro encaminham as questões para os centros cíveis (Amazonas, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo) — outros seis estados (Ceará, Distrito Federal, Pernambuco, Piauí, Santa Catarina e Tocantins) têm um Cejusc único.

A pesquisa também levantou o tempo de conclusão da conciliação e mediação. Em 13 estados (Amapá, Bahia, Distrito Federal, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso, Pará, Rio de Janeiro, Roraima, Rio Grande do Sul, Sergipe, São Paulo e Tocantins), o prazo para conclusão é inferior a 60 dias.

"O tempo é uma variável de grande impacto nos processos de recuperação de empresas, tendo em vista que é um fator determinante para a continuidade da atividade empresarial. Quanto mais rápido a empresa viabiliza um acordo com seus credores, as chances de continuidade da atividade empresarial e de superação da crise financeira aumentam consideravelmente.", destaca Fernanda Bragança, pesquisadora do Centro da FGV Conhecimento.

Centro de Inovação
O Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento busca contribuir para o aperfeiçoamento do sistema de Justiça, promovendo o desenvolvimento de pesquisas, estudos, fóruns de discussão e atividades acadêmicas nas seguintes linhas de pesquisa: governança digital e inovação; sustentabilidade e responsabilidade social; democracia; direitos humanos e solução de conflitos.

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