Opinião

Erosão da consciência constitucional como resultado do desprezo à Lei Fundamental

Autor

  • Mariana Silvério Almeida e Tasca

    é advogada no escritório Tasca Advocacia formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) ex-assistente jurídica em segundo grau no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e ex-professora assistente de Direito Civil na PUC-SP.

6 de março de 2023, 19h09

Na história recente, a ascensão ao poder de líderes políticos extremistas, em países cujas culturas são bastante distintas, revela um fenômeno mundial preocupante: o enfraquecimento da democracia.

Os motivos internos vividos pelas populações de cada país são variados e particulares, no entanto, a característica comum a eles é o de insatisfação generalizada, oriunda da aparente inércia estatal nas resoluções de problemas que afetam a população em seu cotidiano [1].

No Brasil, segundo aponta o cientista político Steven Levitsky, a sequência de desordens vivenciadas pelo país desde o ano de 2014 explica o esmorecimento com as instituições públicas, especialmente no que tange à crise econômica, escândalos de corrupção estatal e elevados níveis de violência e criminalidade [2].

A conjuntura é terreno fértil para a germinação de ideais fascistas.

Umberto Eco, em seu livro O Fascismo Eterno, elucida que a ideologia provém da frustração individual ou social, encontrando nas classes médias seu melhor abrigo, já que se sentem "desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos" [3].

Isto explica os contemporâneos discursos agressivos e afrontosos ao Estado Democrático de Direito corriqueiramente endossados por parte da população brasileira.

Mas diante desse contexto social e político, verificam-se (ou se reforçam) também consequências jurídicas que atingem a própria legitimidade da Constituição: trata-se dos fenômenos denominados degradação constitucional e erosão da consciência constitucional.

Ambas as expressões, embora semelhantes, se retroalimentam num ciclo vicioso bastante nocivo à nossa democracia.

A expressão erosão da consciência constitucional foi cunhada por Karl Loewenstein no ano de 1983 e importada ao ordenamento jurídico pátrio pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, quando do julgamento do MI nº 470 [4], em 1995.

Segundo o autor, nas palavras do ex-ministro:

"O desprestígio da Constituição — por inércia de órgãos meramente constituídos — representa um dos mais graves aspectos da patologia constitucional, além de evidenciar o inaceitável desprezo das liberdades públicas pelos poderes do Estado. (…)", o fenômeno decorre "(…) do processo de desvalorização funcional da Constituição escrita'".

É dizer, quando o poder público se abstém de cumprir os deveres que lhe são impostos pela Constituição, quer seja de forma total, quer seja de forma parcial (por não tutelar adequadamente o bem jurídico), acaba por desprestigiar as disposições fundamentais nela escritas.

Dessa forma, estimula-se o desprezo à Lei Fundamental, comunicando, assim, que os compromissos nela estabelecidos são meras letras mortas [5].

O efeito nocivo de tal omissão é o sentimento de desamparo vivenciado pela população, que, naturalmente, acaba por sofrer atrofia da consciência constitucional. Esta, por sua vez, leva ao desenvolvimento do sentimento de indiferença à Carta Política.

E tal indiferença está intrinsecamente ligada ao fenômeno da degradação constitucional.

Segundo o jurista Mark Tushnet [6], a presença de quatro fatores, que se reforçam mutuamente, leva à degradação constitucional: 1) a polarização política; 2) a perda na crença do governo; 3) o aumento da desigualdade; 4) o desastre político.

A união destes elementos gera, assim como o fenômeno anteriormente citado, a perda gradual e constante da força soberana da Constituição.

Embora continuemos a viver em um país democrático, com eleições periódicas, voto universal, partidos políticos e tripartição de poderes, na essência, deteriora-se o espírito do regime constitucional democrático [6].

Num ciclo vicioso acachapante, a erosão da consciência constitucional acaba por gerar a degradação constitucional, a qual, por sua vez, sustenta ideologicamente a erosão da consciência constitucional.

Vê-se, assim, a interminável batalha que a democracia enfrenta para evitar causar sua própria morte.

O mais recente fato histórico a comprovar este estado das coisas foi o ataque à praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023. A depredação dos prédios da República, destruição de artefatos históricos e furto da réplica da Constituição, símbolos representativos do mais longevo período democrático da história brasileira, revela o mais nocivo golpe mortal à constitucional democracia.

Nesse contexto, é fundamental que rompamos as barreiras acadêmicas do debate, levando a discussão, e sobretudo a implementação dos compromissos constitucionais, à população leiga, maior sofredora dos efeitos deletérios de um (des)governo omisso quanto ao cumprimento dos deveres previstos na Constituição.

O ponto positivo, talvez, oriundo de episódio tão lamentável, foi o jogar-se luz a uma discussão que há muito deveria ter se aprofundado e tomado contornos de concretude.

É chegada a hora de reforçar a proteção à maior base da democracia, a Constituição. Afinal, não necessariamente a palavra crise deve significar a destruição do status quo, podendo, diversamente, assumir o significado de uma ruptura construtiva, em busca do resgate à essência constitucional e ao encontro do povo desamparado.


[2] Ibid.

[3] ECO, Umberto. O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Editora Record. p. 50.

[4] MI nº 470, rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. em 15/2/1995, p. em 29/6/2001.

[5] Expressão cunhada por José Antônio Pimenta Bueno, em obra clássica da literatura constitucional publicada em 1957: Direito Público brasileiro e análise da Constituição do Império, p. 45, reedição do Ministério da Justiça (1958).

[6] TUSHNET, Mark. Constitutional Hardball. John Marshall Law Review, v. 37, n. 2, pps. 523- 553, 2004.

Autores

  • é advogada no escritório Tasca Advocacia, formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ex-assistente jurídica em segundo grau no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e ex-professora assistente de Direito Civil na PUC-SP.

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