Opinião

Novo salto no regime licitatório das estatais

Autores

  • Flavio Amaral Garcia

    é sócio do escritório Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown professor de Direito Administrativo da FGV-RJ e procurador do Estado do Rio de Janeiro.

  • Rodrigo Zambão

    é counsel no escritório Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown professor de Direito Administrativo e procurador do estado do Rio de Janeiro.

4 de março de 2023, 15h15

O regime de licitações das estatais deve ser, por essência, distinto do regime das pessoas jurídicas de direito público, como determina o artigo 22, inciso XXVII e o artigo 173, § 1°, III da Constituição. A razão é muito simples: empresas estatais — notadamente as que exploram atividades econômicas em domínio concorrencial — são pessoas jurídicas de direito privado e dependem, para a sua sobrevivência em mercados competitivos, de eficiência empresarial.

Estando obrigadas a licitar, já que integrantes da administração pública indireta, as estatais devem se sujeitar a um regime mais flexível e aproximado possível do que se passa nas sociedades empresárias privadas. O Supremo Tribunal Federal, em mais de uma ocasião, já fixou o entendimento de que existem distintas possibilidades de realizar processos seletivos, não existindo uma única forma de promover licitação [1].

Assim é que a Lei n° 13.303/16 (também conhecida como Lei das Estatais) quando foi editada — apesar de não ter sido disruptiva na forma de licitar — consolidou avanços que já eram percebidos na Lei n.° 10.520/02 (Lei do Pregão) e na Lei n° 12.462/11 (Regime Diferenciado de Contratação).

Alguns exemplos: (1) a "inversão de fases", com o sistema de pós habilitação; (2) o aumento dos critérios de julgamento para além do menor preço, com destaque para o critério do maior retorno econômico, aplicável aos contratos de eficiência; (3) os regimes de execução de obras denominados "contratação integrada" e "semi-integrada"; (4) disciplina dos procedimentos auxiliares; (5) possibilidade de negociação com o primeiro colocado; (6) modos de disputa fechado, aberto e combinado; (7) maior discricionariedade conferida ao gestor na modelagem do procedimento licitatório.

A verdade é que com o advento da Lei nº 14.133/21 (Nova Lei de Licitações e Contratos) todos esses avanços estarão, igualmente, à disposição das pessoas jurídicas de direito público, o que é extremamente salutar, em especial se compararmos com o modo mais rígido, formal e burocrático de licitar previsto na Lei n° 8.666/93.

Se havia uma distância — digamos significativa — entre a Lei n° 8.666/93 e a Lei das Estatais, fato é que tal não mais ocorre com o advento da Nova Lei de Licitações e Contratos. São leis com várias semelhanças e com regimes de licitação bastante próximos.

Pode-se dizer, inclusive, que a Nova Lei de Licitações e Contratos incorporou novidades que caberiam bem nas licitações das estatais. É o caso, por exemplo, da modalidade diálogo competitivo, dotada de maior flexibilidade e vocacionada para contratações complexas e sofisticadas.

O salutar papel indutor da Lei das Estatais acarretou, no entanto, impactos inesperados no seu próprio regime licitatório, tornando-o bastante aproximado ao sistema aplicável a pessoas jurídicas de direito público.

A partir dessa constatação e com o intuito de provocar o debate, cabe indagar o seguinte: é razoável cogitar a identidade de disciplina entre pessoas jurídicas de direito público e de direito privado integrantes da administração pública? O processo de (involuntária) captura das estatais pelo novo regime de direito público é compatível com o regime de paridade do artigo 173, §§ 1º e 2º da Constituição Federal?

Os questionamentos acima, que já se apresentavam frente ao caráter uniformizante da Lei nº 13.303/21 (porquanto teria alcançado a "unanimidade das estatais brasileiras"), ganham ainda mais destaque no processo de aquisição de bens e serviços, aspecto naturalmente sensível, especialmente quando em jogo o potencial competitivo dos braços empresariais do poder público.

É necessário reforçar a ideia de que o regime licitatório aplicável às estatais é um elemento capaz de impactar na realização eficiente dos objetivos de interesse público que justificam a intervenção direta do Estado no domínio econômico. Não se pode admitir como natural que figuras empresariais se submetam à disciplina demasiadamente aproximada daquela aplicável a entidades dotadas de personalidade jurídica de direito público, efeito produzido, ainda que de forma indireta, a partir da Nova Lei de Licitações.

É razoável cogitar, portanto, que a Nova Lei de Licitações e Contratos deve ser um móvel para a introdução de novos avanços no regime jurídico das licitações das estatais, partindo-se da premissa de que devem se submeter à disciplina cada vez mais adaptável à dinâmica e agilidade esperada em mercados específicos, notadamente quando presente franca competição com atores econômicos puramente privados.

Se é verdade que o regime de contratos das estatais tem características mais sinérgicas com a personalidade jurídica de direito privado (por exemplo, com a limitação ao emprego de exorbitâncias), a disciplina específica do processo de licitação tornou-se, mais uma vez, demasiadamente aproximada do regime jurídico de direito público.

Abrem-se espaços para mais avanços necessários nas licitações das estatais, potencialmente com a introdução de regime minimalista (ou menos maximalista), capaz de valorizar o espaço do regulamento como mecanismo responsivo à dinâmica dos mercados em que as estatais se fazem presentes. Também devem ser cogitadas aproximações com processos de seleção via marketplace e cada vez mais alinhados com a lógica econômica do setor privado.

Vale refletir, ainda, sobre a introdução de modelos que absorvam a influência da (imparável) tecnologia da informação no processo de aquisição de bens e serviços, em especial, insista-se, em mercados competitivos, nacionais e internacionais.

Enfim, o ponto de atenção que se pretendeu destacar no presente ensaio é o necessário debate sobre a conveniência de se promover um novo salto no regime de licitações das estatais. Talvez seja hora de voltar a discutir (1) uma maior dose de experimentalismo em tais processos seletivos, o que pode surgir a partir dos espaços a serem conferidos nos regulamentos de cada uma das estatais; (2) premissas de maior flexibilidade e menos rigidez; (3) mais negociação e menos imposição; (4) aproximação com mecanismos privados de seleção; (5) processos seletivos mais influenciados pelas tecnologias do século 21.

O debate é complexo e politicamente sensível, em especial quando se retomam discussões para alterar a Lei das Estatais nas suas saudáveis regras de governança, que se mostraram eficientes na blindagem de capturas políticas que foram, em passado não tão recente, perniciosas para o atendimento do interesse público. A despolitização das estatais brasileiras se revelou medida de inegável acerto.

Sem ignorar que eventual tentativa de alteração do regime de licitações das estatais poderia ser uma porta de entrada para alterar também as regras de governança, o que se pretendeu alertar no brevíssimo artigo é que, pelas regras em vigor, os regimes de licitação das estatais e das pessoas jurídicas de direito público estão bastante assemelhados e isso não parece fazer muito sentido à luz da Constituição.

A realidade se impõe e o regime de licitação aplicável à atividade empresarial do poder público não pode dela se desconectar.

 


[1] Por todos, ver Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.841, relator ministro Luiz Fux, por meio da qual validou o Regime Geral de Desinvestimento das empresas públicas e sociedades de economias mista federais.

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