Opinião

Civil Procedure Review veta autoria de IA em textos acadêmicos

Autores

  • Hermes Zaneti Jr.

    é professor de Direito Processual Civil e Teoria do Processo na Universidade Federal do Espírito Santo líder do Grupo de Pesquisa Fundamentos do Processo Civil Contemporâneo grupo fundador da ProcNet — Rede Internacional de Pesquisa Justiça Civil e Processo Contemporâneo.

  • Fredie Didier Jr

    é advogado livre-docente pela USP e professor da UFBA

  • Antonio do Passo Cabral

    Professor Doutor de Direito Processual Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em Direito Processual pela UERJ e pela Universidade de Munique Alemanha. Mestre em Direito Público pela UERJ. Procurador da República no Rio de Janeiro.

  • Marcus Seixas Souza

    é editor da Civil Procedure Review – ISSN 2191-1339.

3 de março de 2023, 12h21

A Civil Procedure Review (CPR), uma revista eletrônica e de acesso gratuito especializada no campo do Direito Processual com mais de 13 anos de publicações [1],  diante do enorme impacto do uso da inteligência artificial (IA) na academia (sobretudo por meio de aplicações que empregam os chamados "modelos de processamento de linguagem natural", a exemplo do ChatGPT — talvez a novidade tecnológica mais impactante nos últimos anos) decidiu, em linha com diretrizes europeias, introduzir duas novas regras para a publicação de textos acadêmicos em suas edições:

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Regra 1: Nenhuma ferramenta de IA pode ser indicada como coautora de texto acadêmico submetido à Civil Procedure Review para publicação. Todo o conteúdo do texto acadêmico deve ser produzido exclusivamente pelo (s) autor (es) humano (s).

Regra 2: O uso de ferramentas de IA e a respectiva extensão/função, ainda que em caráter auxiliar, devem ser revelados em todos os textos acadêmicos submetidos à Civil Procedure Review para publicação. Os autores devem informar claramente a utilização da IA na produção do texto, a função e o modo como foi empregada, a fim de garantir transparência e honestidade acadêmica.

Essas regras visam a garantir integridade acadêmica, transparência e qualidade dos trabalhos publicados, tendo sido inspiradas numa recente decisão da revista Nature, um dos mais importantes periódicos científicos do mundo [2].

A primeira regra estabelece que a IA não pode ser coautora de artigos publicados na CPR. Essa medida pretende evitar equívocos na atribuição da autoria dos textos. Embora a IA seja uma tecnologia cada vez mais utilizada em diversas áreas da pesquisa científica, o que evidentemente inclui os campos de investigação de um jurista, é importante ressaltar que a tecnologia não tem a capacidade de criar conhecimento novo (embora possa elaborar bons textos com base no conhecimento humano acumulado a que tenha acesso), muito menos emitir juízos valorativos. O crédito pela autoria de um artigo deve ser atribuído apenas a indivíduos que efetivamente contribuíram para sua concepção e produção [3] [4].

De outro lado, a IA não pode assumir responsabilidade pelo conteúdo do texto, o que, em todo periódico científico, traz consigo relevantes questões de originalidade, potencial infringência de direitos autorais e outros ilícitos passíveis de gerar sanções criminais e civis.

É incompatível com a primeira regra a submissão à CPR de obras totalmente criadas a partir da IA (computer-gerated works), que utilizem exclusivamente o resultado (output) do trabalho advindo de uma aplicação de IA gerado a partir do comando (input) formulado pelo respectivo usuário. Obras produzidas com a ajuda de programas ou ferramentas de IA, mas que ainda exigem uma contribuição significativa e tomada de decisão de um criador humano (computer-assisted works), são admitidas, sujeitas ao cumprimento da Regra 2 [5].

A segunda regra estabelece que o uso de IA deve ser revelado pelo autor do artigo, juntamente com a extensão e a função dessas ferramentas em seu trabalho. Essa medida visa a aumentar a transparência e a responsabilidade dos autores em relação ao uso dessas ferramentas tecnológicas, bem como fornecer aos editores, revisores e leitores informações importantes sobre a metodologia utilizada na pesquisa e na produção do texto.

A análise de quais informações devem ser apresentadas pelo autor, relativamente ao uso de IA na elaboração do seu trabalho, pode variar caso a caso. Todavia é possível vislumbrar um conjunto de diretrizes, ou boas práticas de integridade acadêmica, que devem orientar o autor da obra que se utiliza de IA no cumprimento do seu dever de transparência: 1) indicar quais aplicações de IA foram utilizadas pelo autor da obra; 2) apontar quais foram os inputs utilizados para provocar o funcionamento das aplicações de IA; 3) indicar quais outputs foram gerados a partir dos inputs pelas aplicações de IA; e 4) apontar em que medida esses outputs foram utilizados no seu trabalho, bem como os critérios racionais/a fundamentação do autor da obra para seu aproveitamento ou descarte.

Embora a IA possa oferecer algumas vantagens no processo de produção e edição de textos acadêmicos, nos campos de investigação de um jurista (filósofo ou cientista de um objeto cultural), é importante também considerar suas possíveis desvantagens, usando essa ferramenta com cautela e consciência de suas limitações:

a) Aparentes vantagens do uso acadêmico de IA que se utiliza de processamento de linguagem natural, como ChatGPT, e da IA em geral: a.1) pode ajudar na revisão e edição de textos, evitando erros de ortografia, sugerindo melhorias na redação, clareza, objetividade, organização e estruturação do texto, e até mesmo ajudando na elaboração de referências bibliográficas e citações corretas; a.2) pode também auxiliar na organização de informações; a.3) pode reduzir o tempo e os custos envolvidos na produção e publicação de artigos acadêmicos, permitindo que mais pesquisadores possam contribuir para o avanço do conhecimento nesta vasta área.

b) Aparentes desvantagens do uso acadêmico da IA que se utiliza de processamento de linguagem natural, como ChatGPT, e da IA em geral: b.1) possibilidade de que o conteúdo produzido pela IA reflita o que tem se convencionado chamar de "alucinação", uma associação ou manipulação de outros dados existentes, apresentada de maneira aparentemente ordenada e convincente, mas que na realidade se verifica errônea, inválida ou injustificada do ponto de vista científico b.2) falta de compreensão contextual, pois, embora a IA possa gerar textos precisos e bem escritos, muitas vezes falha em compreender o contexto e nuances necessárias em trabalhos acadêmicos, sobretudo quando o respectivo objeto é cultural, como aqueles relacionados ao Direito; b.3) aumento do risco de plágio, em suas diversas variedades: ao usar a IA para gerar partes de seus trabalhos, o texto gerado pode ser reutilizado/re-sugerido, pois a IA pode não ter a capacidade de identificar e citar corretamente fontes de informação; b.4) o uso excessivo da IA pode criar uma dependência da tecnologia, o que pode limitar a capacidade dos acadêmicos de pensar criticamente e desenvolver habilidades de escrita por conta própria.

Essas preocupações levaram os editores a estabelecer, além dos critérios acima explicitados, uma diretriz procedimental no processo de revisão: todos os textos passarão por ferramentas de análise de conteúdo, para detecção do uso de IA.

Com o perdão pelo clichê, as transformações históricas da tecnologia sempre geraram intensos debates. O certo é que, também nas ciências sociais aplicadas, não se deve adotar uma postura ludista. A IA chegou, e isso é inexorável – o que não significa que esta decisão da CPR seja uma apologia a essas ferramentas, muito menos um ato definidor do bom e do mau uso acadêmico da IA. Mas é preciso imediatamente dar este passo para o aperfeiçoamento do compliance da produção científica em Direito Processual, o que para a CPR pareceu imprescindível, importante e inevitável, na linha das boas práticas acadêmicas e editoriais internacionais.


[1] https://www.civilprocedurereview.com/revista, atualmente com 13 volumes (cada volume, que corresponde a um ano civil, possui três números). A CPR conta com artigos provenientes de autores de diversas nacionalidades (os textos podem ser publicados em português, inglês, alemão, espanhol, francês e italiano). A revista é o veículo oficial da ProcNet  Rede Internacional de Pesquisa sobre Justiça Civil e Processo Contemporâneo, e do Programa de Pós-graduação da Faculdade Baiana de Direito. O lema da revista é "ab omnibus pro omnibus", "por todos, para todos", e atualmente está posicionada no estrato “A4” do Qualis da Capes (resultado provisório).

[2] A propósito, https://www.nature.com/articles/d41586-023-00191-1, acesso em 01º de março de 2023.

[4] O artigo 7º da Lei de Direitos Autorais brasileira estabelece que são consideradas obras intelectuais sujeitas a proteção as "criações do espírito". O art. 11 da referida lei estabelece que "autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica". A linguagem da lei favorece a conclusão de que apenas seres humanos podem ser titulares de direitos autorais sobre criações, ao menos no sistema jurídico brasileiro, a cuja jurisdição se submete a CPR.

[5] Sobre computer-generated works e computer-assisted works, conectando os dois conceitos ao tema do Copyright nos Estados Unidos da América, cf. DENICOLA, Robert. "Ex Machina: Copyright Protection for Computer Generated Works". Rutgers University Law Review. Newark, 2016, V. 69, N. 1 p. 251-287.

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