Opinião

ADI 7.261 e parcialidade das autoridades judiciais das cortes superiores

Autor

  • Amanda Guimarães da Cunha

    é especialista em Direito Eleitoral e em Ciências Penais membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político autora do livro "Direito eleitoral sancionador: o dever de imparcialidade da autoridade judicial" (editora Tiran Lo Blanch) juntamente com Luiz Magno Pinto Bastos Júnior.

3 de março de 2023, 16h07

Tenho defendido que a autoridade eleitoral responsável pela condução dos processos contenciosos deve observar o dever de imparcialidade comum a todas as demais esferas do direito e princípio basilar do devido processo legal, constitucional e convencional [1].

A problemática vem desde a forma de investidura da autoridade eleitoral, a qual não possui uma carreira própria, sendo "emprestada" de outros ramos do direito e compartilhada entre os tribunais superiores, notadamente TSE e STF, o que acaba promovendo, no último grau recursal, uma verdadeira blindagem das decisões eleitorais [2].

Fiz uma breve digressão, em estudo realizado junto com a doutora Eneida Desiree Salgado, sobre a inconvencionalidade dessa estrutura judicial sui generis no direito brasileiro [3], em que mencionei quando essa questão específica foi tratada pelo STF e a validação da suprema corte dessa composição e poder das autoridades eleitorais na ADPF 144, que validou a Súmula 72 [4], editada em 1963, no ordenamento brasileiro.

Nas vésperas das eleições de 2022, em que o cenário da desinformação se desenhava para se tornar ainda mais problemático do que as eleições de 2018, externei minhas preocupações sobre o papel desta autoridade eleitoral ante o cenário que a aguardava [5], para que não se tornasse mais um viés de desestabilização democrática.

Pois bem. Durante as eleições de 2022 vimos a necessidade da Justiça Eleitoral de resguardar a legitimidade e normalidade da disputa eleitoral frente ao desafiador nível de compartilhamento de fake news, alçado a níveis de gravidade.

Entretanto, o crescente aumento do poder da autoridade eleitoral nessa frente passou a preocupar a sociedade em geral, as instituições, organizações da sociedade civil e a academia. Durante o processo eleitoral, com o recrudescimento do controle da informação e a tomada de medidas arbitrárias, em especial pelo presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, publiquei mais uma vez minhas preocupações aqui mesmo na ConJur [6], não sem fazer igualmente a defesa da Justiça Eleitoral ante as acusações de que estaria promovendo censura.

Mas o exemplo mais emblemático desse imbróglio viria com a edição da Resolução 23.714/2022 do TSE, que flagrantemente instituiu medidas de controle e punição às vésperas do pleito, inovando na ordem jurídica e extrapolando seu poder de polícia e, ainda, sem qualquer respeito pela regra da anualidade eleitoral.

A norma foi impugnada pelo procurador-geral da República na Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.261, por ofensa a regras do devido processo legal, invasão de competência do Poder Legislativo, ofensa à liberdade de expressão, ofensa à imparcialidade, dentre outros.

Para além das discussões de mérito travadas, ao analisar a decisão, surpreendi-me com a questão da denunciada parcialidade do ministro Alexandre de Moraes em participar daquele julgamento no STF, vez que à frente da presidência do TSE não só foi o relator da resolução atacada, como era a autoridade competente (bem, numa competência autoconcedida), para apurar as desinformações e até mesmo agir de ofício para remoção de conteúdos.

Durante o debate dessa questão processual, foi o próprio ministro que retomou alguns precedentes do STF sobre o dever de imparcialidade das autoridades que dividiam a Suprema Corte e o TSE, com decisões ainda anteriores à ADPF 144 que utilizei como paradigma no estudo supramencionado, como a ADI 55, julgada em 1989.

Ao discorrer sobre o assunto, o ministro Alexandre de Moraes, em sua própria defesa, reiterou que não há impedimento em controle concentrado de constitucionalidade, ressalvada apenas a hipótese excepcional em que algum ministro da Corte tenha atuado como procurador-geral da República e nessa qualidade tenha manifestado posição sobre o mérito da causa.

Frisou-se que não há impedimento ou suspeição de ministro do STF quando tendo, inclusive, prestado informações como presidente do TSE.

Ora, o caso que se coloca difere sobremaneira dos precedentes invocados. Na prática, o ministro Alexandre de Moraes age como juiz e instrutor dos processos, numa clara confusão entre o papel de magistrado e promotor de causa. Não só se manifesta sobre o mérito da matéria, como é ele quem dá início, de ofício, ao próprio procedimento.

Conforme invocou o ministro na ADI 7261, mencionando precedente mais recente do STF quanto ao tema (ADI 2238), "em controle sob perfil objetivo, não atrai, via de regra, os institutos do impedimento e da suspeição, próprios que são dos processos em que há defesa de interesses e posições". Como visto, o poder que lhe foi instituído enquanto presidente do TSE frente à Resolução 23.741/2022 o coloca notadamente como parte processual.

O dever de imparcialidade não é mera retórica ou mera filigrana acadêmica. É princípio basilar do devido processo que garante a observância de todas as demais regras.

Ainda que um cenário de anormalidade justifique o aumento da ingerência da Justiça Eleitoral, como legítima responsável a resguardar as eleições, isso não implica em uma carta branca para subverter o ordenamento jurídico sem justificativa ou razoabilidade, especialmente quando se está diante de direito sancionador sobre direitos fundamentais.

Ninguém sai ileso de flertar com o poder punitivo estatal e flexibilizar garantias e, para demonstrar, não preciso ir além do próprio exemplo aqui debatido.

Primeiro o dever de imparcialidade não se aplica a ministro do STF, salvo quando opinou enquanto PGR. Depois, estende-se ao Ministro do STF que prestou informações enquanto presidente do TSE. Não há impedimento para ministros que tenham atuado na causa enquanto na Corte Eleitoral e depois na Corte Superior.

Agora, não há impedimento para o ministro que relatou a norma acusada de ser inconstitucional e que instaura, apura e pune pelos ilícitos nela criados, tampouco para que ele próprio se defenda da acusação de impedimento, com o silêncio de todos os demais.

Ainda que o resultado deste caso em específico não fosse alterado, dada a votação, o dever de imparcialidade exige que as autoridades não só atuem, como pareçam imparciais, inspirando confiança à sociedade, conforme reiteradamente diz o Tribunal Europeu de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Legitimidade é requisito não somente de validação de uma corrida eleitoral, mas do próprio exercício do poder punitivo estatal, que passa pelo respaldo da sociedade sobre a atuação das autoridades públicas. Não à toa, as da Suprema Corte não gozem de tanto prestígio ultimamente. Uma crise que não pode ser contabilizada somente à desinformação.

A pretexto de se combater a anormalidade, cria-se e amplia-se uma anormalidade jurídica e institucional. O que faremos com ela quando voltarmos à pretensa normalidade? Devolvemos o poder ao povo?

[1] CUNHA, Amanda G. da Cunha; BASTOS JR, Luiz Magno Pinto. Direito eleitoral sancionador: o dever de imparcialidade da autoridade judicial. 1 ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021. 186p.

[2] GRESTA, Roberta Maia. Teoria do Processo Eleitoral Democrático: a formação dos mandatos a partir da perspectiva da cidadania. 2019. 499fls. Tese (Doutorado)  Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 2019, p. 127-130.

[3] GUIMARÃES DA CUNHA, A.; SALGADO, E. D. . Limites Convencionais À Competência da Autoridade Eleitoral Brasileira. Resenha Eleitoral, Florianopolis, SC, v. 25, p. e0138, 2021. DOI: 10.53323/resenhaeleitoral.v25i1.138. Disponível em: https://revistaresenha.emnuvens.com.br/revista/article/view/138. Acesso em: 15 fev. 2023.

[4] "No julgamento de questão constitucional, vinculada a decisão do Tribunal Superior Eleitoral, não estão impedidos os Ministros do Supremo Tribunal Federal que ali tenham funcionado no mesmo processo, ou no processo originário".

[5] CUNHA, Amanda G. da. Qual papel da autoridade eleitoral nas eleições de 2022? 3 jun. 2022. Revista Eletrônica Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-03/amanda-cunha-papel-autoridade-eleitoral-neste-ano

[6] CUNHA, Amanda G. da. Combate à desinformação em observância às regras legais não é ato de censura. Revista Eletrônica Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-out-21/amanda-cunha-combate-desinformacao-nao-ato-censura

Autores

  • é especialista em Direito Eleitoral e em Ciências Penais, autora do livro "Direito eleitoral sancionador: o dever de imparcialidade da autoridade judicial" (editora Tiran Lo Blanch), juntamente com o dr. Luiz Magno Pinto Bastos Júnior, membro-pesquisadora do Observatório do Sistema Interamericano de Direitos Humanos da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e professora de Direitos Humanos.

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