Opinião

Empresa agroindustrial e a teoria geral do direito do agronegócio

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1 de março de 2023, 20h50

Como discutíamos em outro artigo neste portal [1], o fenômeno jurídico representado pelo objeto do direito do agronegócio (complexo agroindustrial) poderia ser analisado desde as perspectivas normativa, de conteúdo-composição e de integração-eficácia, as quais, respectivamente, fariam menção ao regime jurídico do agronegócio, às atividades econômicas organizadas e ao conceito de rede de negócios jurídicos agroindustriais.   

Considerado o esforço de abstração que deve guiar o intérprete da regra ao princípio, temos que a teoria geral busca a identificação de elementos comuns em determinado ramo jurídico, seus denominadores comuns, que podem ser encontrados em todo seu campo de aplicação, representando o que seria, na perspectiva da lógica aristotélica, os chamados "universais", propriedades que um objeto tem em comum com outros e que acabam por representar, no campo científico, a base de toda produção acadêmica.  

Propomos a tratar neste artigo sobre a caracterização das atividades econômicas organizadas, que formam o conteúdo do complexo agroindustrial, como sendo base para o conceito de empresa agroindustrial, sustentando, ao final, que tal empresa tem potencial de servir como instituto central de sistematização da teoria geral do direito do agronegócio.

A teoria geral do direito agrário contemporâneo, em particular a partir de Flávia Trentini, buscando afastar-se de uma perspectiva meramente fundiária ou subjetivista e considerando a importância da atividade econômica na seara agrária, tem apontado como central para esse ramo do direito o instituto da empresa agrária, definida a partir dos elementos economia e organização relacionados ao desenvolvimento de um ciclo biológico (agrariedade), que apresenta potencialidade para reunir em sua órbita "outros institutos de fundamental importância: da propriedade ao contrato" [2].

No mesmo sentido, colhemos da obra de Ricardo Zeledón [3] que o direito agrário se constitui, essencialmente, como um direito de atividade, tendo como fim a produção de seres animais e vegetais, no contexto de um ciclo biológico que utiliza recursos naturais, sendo que essa atividade só poderia ser verificada através da empresa (agrária), assumindo esta, desse modo, papel de protagonista nesse ramo jurídico.

Na esteira dessa constatação, considerando que o conteúdo do complexo agroindustrial, objeto do direito do agronegócio, é constituído por atividades econômicas organizadas, podemos vislumbrar a existência de um correspondente conceito de empresa a englobar todas essas atividades. 

Tais atividades econômicas organizadas, integradas pelo conceito de rede de negócios agroindustriais, dariam nascimento a uma empresa própria no ramo do direito do agronegócio: a empresa agroindustrial. Empresa essa que, segundo Renato Buranello [4], impacta especialmente o regime jurídico do agronegócio, no qual devem estar presentes suas prescrições.

Nessa acepção, considerada a união de todas as atividades de um dado sistema agroindustrial pela integração promovida pelo conceito de rede de negócios, o regime jurídico em questão seria, de modo mais abrangente, a regência do fenômeno conceitual da empresa agroindustrial.

O conceito de empresa se apresenta de maneira teoricamente neutra, sendo qualificado pela função que lhe é atribuída, podendo ser assim, de natureza comercial, rural ou, como temos apontado, de natureza agroindustrial.

Logo, em razão das atividades que promove, a empresa adquire caracterização própria, sendo que, no âmbito do agronegócio, as diversas atividades econômicas verificadas nos sistemas agroindustriais (SAGs) acabam por qualificar tal empresa com o mesmo predicado desses sistemas, qual seja, "agroindustrial".

Em sua atual fase de desenvolvimento, a agricultura e pecuária nacionais apresentam-se como fruto da integração/fusão das atividades típicas do setor primário com as dos demais setores da economia, dando-se particular ênfase na integração entre a lavoura e a indústria, que acaba por chancelar a caracterização dos sistemas de produção como sendo de natureza agroindustrial.

Desse modo, a agricultura moderna é marcada tanto pelo fato de operacionalizar-se por meio de atividades econômicas organizadas quanto por sua ligação com a agroindústria e demais atividades dos sistemas, caracterizando-se, por consequência, uma verdadeira empresa que une atividades de natureza empresarial com as decorrentes da industrialização em sentido amplo.

Considerando a perspectiva do direito agrário, cuja lógica pontual é aplicável ao direito do agronegócio, temos que a empresa agrária apresenta, de uma forma geral, os elementos empresário, estabelecimento e atividade. O empresário encontra-se encarregado de realizar atividade econômica organizada de modo profissional, sendo que a organização dessas atividades consiste na combinação que aquele faz dos fatores de produção, em particular capital e trabalho. Tais elementos podem ser vislumbrados segundo a doutrina independentemente da dimensão dos negócios de um determinado empresário, aplicando-se tanto a grandes quanto pequenas atividades empresariais [5].

Tomando o conceito de sistemas agroindustriais, temos que são definidos em razão de um produto em particular, no entanto, envolvem todas as atividades que estão incluídas em uma dada cadeia de produção, caracterizadas pela articulação de operações comerciais e financeiras, fluxo de troca entre fornecedores e pelo caráter sucessivo de operações de transformação encadeadas. Fala-se assim em um sistema que abrange desde o fornecimento de insumos até a entrega do produto final ao consumidor, atividades essas que envolvem sempre o caráter de organização, economia, e por conseguinte, adquirem a feição profissional que lhe outorga a qualificação de empresária.

Como traça a doutrina, o desenvolvimento da agropecuária ao redor do mundo requereu o desenvolvimento de sistemas industriais para que a produção se guiasse rumo à eficiência, qualidade e disponibilidade, o que foi marcado especialmente pela integração indispensável entre agricultura e indústria [6].

Dentro do desenvolvimento dos sistemas industriais surge o conceito mais específico de sistemas agroindustriais (SAGs), que, fruto da integração dos setores primário, secundário e terciário da economia, representa todo o elo de operações de natureza econômica que caracterizam o amplo espectro de atividades abarcadas pelo agronegócio na figura do que se denomina complexo agroindustrial.

Como ocorre no direito agrário, com a utilização do conceito extrajurídico de agrariedade para definir o elemento comum que promove a harmonização dos institutos estudados e a própria caracterização da empresa agrária, o direito do agronegócio se vale de um conceito de base econômica, sistema agroindustrial, para definir seu objeto imediato.

Esse conceito econômico acaba por guardar íntima relação com a noção de empresa agroindustrial que buscamos expor. Isso porque cada um dos sistemas agroindustriais é composto por atividades econômicas organizadas, operacionalizando-se através dessas atividades, que individual e coletivamente podem ser tomadas como sendo empresárias, constituindo a essência daquela empresa. 

Retomando o tema particular do regime jurídico, dissemos que o mesmo representa uma perspectiva normativa. Entretanto, cabe ponderar que esta, tomada genericamente, pode ser dividida nos campos conceitual e normativo (stricto sensu). Consideramos aqui a ótica da Filosofia do Direito, segundo a qual toda teoria geral apresentaria as faces que se ocupam com a definição de conceitos (o que é e o que não é direito) e com o modo de funcionamento/aplicação das normas e conceitos (como o direito deve ser e como as instituições devem atuar)  [7].

O regime jurídico do agronegócio poderia, assim, ser tomado desde uma perspectiva conceitual, analisando o que caracteriza e define suas normas, tomando-se, particularmente, o conceito de sistema agroindustrial, que qualifica a empresa agroindustrial tutelada, considerada sua ligação embrionária com o direito comercial e naturalmente com todas as atividades econômicas de natureza empresarial. O campo conceitual seria o campo da identificação das normas, de definição do que pertence e do que não pertence ao ramo jurídico.

Da mesma forma, desde a visão conceitual, no âmbito do direito agrário a qualificação e identificação das normas também se operaria mediante um conceito fundamental, externo ao direito, agrariedade, que qualifica todos os institutos desse ramo (especialmente a empresa agrária) e estabelece a sistematização de seu estudo pelo intérprete.

Considerando a perspectiva normativa, divisamos o campo da aplicação dos princípios, das normas de caráter programático que moldam o sistema jurídico e determinam a base de incidência das diversas normas e lançam as bases de atuação das instituições e pessoas responsáveis pela elaboração, aplicação e respeito às normas jurídicas, respectivamente representados pelas funções prioritárias do legislador, juiz e cidadão comum [8].

Nesse mesmo campo, verificamos, ainda, a ocorrência dos suportes fáticos e a incidência das normas que regem o sistema, expressando a forma como a regulação do direito se opera na prática mediante os efeitos atribuídos aos fatos jurídicos pelo acionamento das prescrições contidas na estrutura da norma.

Encontramos então, no caso do agronegócio, a ocorrência dos fatos da vida que as normas selecionam para ingresso no mundo jurídico, especificamente, as atividades econômicas organizadas que lhe servem como base e a operação da integração dessas mesmas atividades na forma de uma rede de negócios.

Logo, na perspectiva normativa encontramos tanto o princípio norteador quanto o fato regulado pelo direito, demonstrando como o sistema jurídico opera a formatação das atividades econômicas e a orientação geral da atuação das instituições.

Da noção de sistema agroindustrial, das atividades econômicas organizadas e da rede de negócios que representam, derivamos princípios que consistem nessa dimensão normativa do direito do agronegócio, expressado na forma de prescrições que determinam como as normas devem ser e como as instituições devem atuar na aplicação-interpretação dessas normas.  

Princípios como segurança alimentar, função social da cadeia agroindustrial e desenvolvimento sustentável são abstraídos a partir de bens jurídicos tutelados pelo ordenamento, como o são os elementos que compõem e integram o direito do agronegócio na forma de atividades organizadas.

Considerando a segurança alimentar em particular, temos que esse é o princípio resultante da inferência lógica realizada a partir da constatação da existência de um sistema agroindustrial que atua como fornecedor de gêneros alimentícios, representado pela interligação de operações que vão do fornecimento de insumos até a entrega ao consumidor final. Verificou-se, em primeiro lugar, um fato: a existência de um sistema que garante alimentos à população; depois disso, o direito, notando a importância daquele fato (sua função social), passou a tutela-lo em termos principiológico. A tutela de todo o sistema, assim, à parte a discussão sobre os interesses individuais ao longo da cadeia de negócios, ocorre, primordialmente, em função do cumprimento da segurança alimentar.

Vemos, por conseguinte, que a teoria geral, considerando as dimensões conceituais e normativas, ressalta as relações decorrentes dos sistemas agroindustriais e da empresa agroindustrial, que delimitam a identificação de normas como pertencendo ao sistema, e as relações oriundas das atividades econômicas organizadas e da rede de negócios que integra todas essas atividades, representando o que seria o reflexo prático do quanto definido em termos conceituais.

Consideradas todas as atividades econômicas no interior do complexo de relações jurídicas que é o agronegócio, abarcando temas como fornecimento de insumos, produção nas unidades agrícolas, industrialização, armazenamento, logística e distribuição de produtos, subprodutos e resíduos de valor econômico, temos que um elemento em comum acaba por unir todas essas atividades sob o campo de incidência do direito do agronegócio. Tal elemento, considerado o caráter econômico de todas as atividades mencionadas, encontra plena expressão no conceito de empresa agroindustrial, verificada em todas etapas presentes em um dado sistema agroindustrial, revestindo-o de juridicidade. O direito do agronegócio seria, assim, a regência do fenômeno conceitual da empresa agroindustrial.

Trata-se, por fim, de considerar o quanto vem sendo tratado em termos de teoria geral do direito agrário contemporâneo, reconhecendo que a atividade econômica, na forma de empresa, é o elemento central a ser tutelado, o que permite, por consequência, a devida concretização dos princípios que regem a atividade rural e que se traduzem em benefícios indispensáveis para a sociedade em geral.  

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[1] https://www.conjur.com.br/2023-jan-28/manoel-parreira-teoria-geral-direito-agronegocio

[2] TRENTINI, Flávia. Teoria geral do direito agrário contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2012, p. 10.

[3] ZELEDÓN, Ricardo Zeledón. Derecho agrario contemporâneo. San José: IJSA, 2015, p. 178.

[4] BURANELLO, Renato. Manual do direito do agronegócio. Editora Saraiva. Edição do Kindle., pos. 699.

[5] TRENTINI, Flávia. Teoria geral do direito agrário contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2012, p. 23.

[6] BURANELLO, Renato. Manual do direito do agronegócio. Editora Saraiva. Edição do Kindle., pos. 363.

[7] DWORKIN, Reinaldo. Taking rights seriously. Harvard University Press. Edição do Kindle, pos. 34.

[8] DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Harvard University Press. Edição do Kindle, pos. 51.

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