Opinião

Caso Americanas: efeito dominó na rede contratual de fornecimento

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1 de março de 2023, 11h16

despeito de ainda haver um longo caminho a ser percorrido com relação ao estudo e efetiva aplicação do fenômeno das redes contratuais, o recente episódio envolvendo o procedimento concursal das Lojas Americanas traz à tona inúmeros aspectos atinentes à temática. Como amplamente divulgado pela imprensa, entidades do grupo Americanas requereram o processamento de sua recuperação judicial após os impactos decorrentes dos eventos noticiados no Fato Relevante de 11/1/2023. Para além das cifras bilionárias e do intenso embate envolvendo as recuperandas, de um lado, e instituições financeiras, de outro, há questão relevantíssima que ainda demanda alta indagação: o futuro dos contratos celebrados com os mais de 2.000 fornecedores das devedoras e os impactos que estes terão em suas atividades.

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Em tutela cautelar antecedente à recuperação judicial, as devedoras pediram — e o Poder Judiciário deferiu  a preservação dos contratos necessários à sua operação, inclusive os celebrados com fornecedores [1]. Os denominados "contratos necessários" tiveram sua resolução suspensa pelo . Juízo da 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, que, em adição, suspendeu ainda a eficácia das cláusulas resolutivas expressas que continham a recuperação judicial gatilho. Estariam abarcados pela abrangente ordem não apenas os prestadores de serviço público  como, por exemplo, as distribuidoras de energia elétrica ; mas também os proprietários de imóveis locados às recuperandas (impedidos de despejá-las por débitos abarcados pelo concurso) e "os fornecedores e parceiros comerciais" (impedidos de declarar a resolução contratual ipso facto[2].

Sem que se adentre no debate a respeito da abrangência da decisão, que certamente demandará aprimoramento pelas vias processuais adequadas, a situação expõe aspecto bastante curioso das recuperandas: as Lojas Americanas são essencialmente a líder de uma gigantesca rede de contratos voltada à distribuição de produtos ao mercado de consumo  seja por lojas próprias, comércio online, franquias ou mediante serviços financeiros  e é nisso que parece residir a sua maior fonte de riquezas. É até sintomático, nesse aspecto, que inexistam créditos listados na classe II (garantia real) [3]. E é ainda mais sintomático que os eventos que tenham gerado a crise de liquidez das recuperandas se refiram justamente às operações de risco sacado envolvendo seus fornecedores.

Evidentemente, cada contrato é um contrato e contém especificidades atinentes ao relacionamento entre as partes. No entanto, é plausível assumir o caráter híbrido de grande parte dessas contratações  isto é, em grande medida, o relacionamento não era meramente de relações de intercâmbio; mas nem também chegavam a se constituir vínculos associativos [4]. Alguns fornecedores relatam que cerca de 35% de sua produção era escoada via canais de distribuição coordenados pelas Lojas Americanas [5]. Conforme já noticiado pela mídia, o mercado de "ovos de Páscoa" tende a ser duramente impactado com as dificuldades enfrentadas pelas Lojas Americanas [6]. E as próprias devedoras alegam que o seu colapso "teria certamente efeito sistêmico na cadeia de importantes setores na economia brasileira" [7].

Para além desse estreito relacionamento entre fornecedores e as recuperandas, com notas de dependência econômica, parece claro que as recuperandas, de um modo ou de outro, coordenavam uma enorme rede de distribuição de produtos (Supply chain), formada por inúmeros contratos inseridos dentro uma determinada cadeia de fornecimento.

As características desse estreito relacionamento entre fornecedores e as Americanas intensificam os deveres de cooperação entre as partes, em especial quando comparados a meras relações spot de comercialização de bens e/ou prestação de serviços. Há mais do que um mero dever de não lesar (mea res agitur), sem que, em outra ponta, haja um dever de sacrificar interesses próprios em favor de uma efetiva comunhão de escopos  como se daria em uma sociedade (nostra res agitur[8]. Dentre as obrigações de maior relevo, destacam-se, no caso Americanas, os deveres mútuos de prestação de informações [9] e o de contribuir para a adequada manutenção da rede contratual [10].

Nesse aspecto, questão de relevantíssima que se coloca é a seguinte: houve a violação de tais deveres pelas Lojas Americanas, caso efetivamente se comprove omissão dolosa ou culposa da efetiva situação financeira das recuperandas aos fornecedores? Se sim, qual seria a amplitude e quem se beneficiaria do dever de reparar os danos causados? Haverá a possibilidade de direitos de regresso entre os membros da cadeia de fornecimento? Muito tem se debatido acerca de indenizações a serem outorgadas a acionistas minoritários, mas há também uma outra ordem de questões a serem enfrentadas nesse viés.

Adicionando mais uma camada de dificuldade, há que se perquirir também os efeitos de disposições contratuais firmados com entes da cadeia de fornecimento que não mantinham relação direta com as recuperandas; mas, sim, com seus fornecedores. Os fornecedores "necessários" de fornecedores igualmente "necessários" às recuperandas poderiam ser impedidos de resolver seus contratos? O novo contexto imporia um dever de renegociar obrigações contratuais entre os diversos nódulos da rede?

Há uma infinidade de perguntas em aberto e que precisarão ser respondidas pelos julgadores, sejam estatais ou arbitrais. Como tive a oportunidade de examinar na obra Cooperação Empresarial: Contratos Híbridos e Redes Empresariais [11], a jurisprudência pátria estatal, conquanto não desconheça o fenômeno, parece valer-se dele mais como elemento de retórica do que efetivamente com contornos científicos seguros, especialmente no que toca aos efeitos que deles decorrem [12]. Uma das "chaves" para a resolução dos casos concretos parece residir no grau de controle que as recuperandas exerciam nas atividades individuais de cada um dos fornecedores, ora os aproximando mais do polo de intercâmbio, ora mais do polo associativo. Essa parece-nos ser a métrica para a definição da intensidade dos deveres de cooperação no caso subjudice e que precisará ser avaliada casuisticamente.

Se, de um lado, o caso Americanas tristemente acarretará perdas incomensuráveis a inúmeros entes empresariais, espera-se, com sinceridade, que, de outro, ele traga avanços não apenas a mecanismos de controle do mercado como um todo, mas também para o Direito Contratual Brasileiro. 

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[1] Processo n° 0803087-20.2023.8.19.0001 – ID n° 42086539.

[2] Processo n° 0803087-20.2023.8.19.0001 – ID n° 44335442.

[3] Há, de outro lado, créditos de cerca de R$41 bilhões relativamente a credores quirografários (classe III) e outros no valor de R$109 milhões para Microempresas e Empresários de Pequeno Porte (Classe IV) (Processo n° 0803087-20.2023.8.19.0001 – ID n° 43183495).

[4] Forgioni, Paula Andrea. Teoria Geral dos Contratos Empresariais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2 ed., 2016, p. 154. Para Paula Forgioni, os híbridos seriam os "contratos de entremeio", situados no eixo cujos polos são delimitados pelos contratos de intercâmbio, de um lado, e os de associação, de outro.

[5] https://www.estadao.com.br/economia/americanas-recuperacao-judicial-pequenos-fornecedores/

[6] https://www.estadao.com.br/economia/negocios/crise-americanas-preco-ovo-de-pascoa/. Acesso em 7.2.2023.

[7] Processo n° 0803087-20.2023.8.19.0001 – ID n° 42587749.

[8] Na sempre lúcida súmula da professora Judith Martins-Costa, nos arranjos cooperativos que o "nostra res agitur imiscui-se no mea res agitur" (A boa-fé no Direito Privado, critérios para sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 366).

[9] Sobre o ponto: Teubner, Gunther. Network as Connected Contracts. Oxford: Hart Publishing, 2011, pp. 187-188. No mesmo senso: Weitzenboeck, Emily M. A legal framework for emerging business models: dynamic networks as collaborative contracts. Northhampton: Edward Elgar, 2012, p. 210).

[10] Lorenzetti, Ricardo Luis. Tratado de Los Contratos, Tomo I, Buenos Aires: Rubinzal Culzoni, 2000, p. 82. No mesmo senso: Wellenhofer (Third Party Effects…, p. 124).

[11] Cooperação Empresarial: Contratos Híbridos e Redes Empresariais, São Paulo: Almedina, 2022.

[12] No livro Cooperação Empresarial, tive a oportunidade de analisar julgados a esse respeito (item II.3.1).

Autores

  • é sócio do Lobo de Rizzo Advogados, com experiência na condução de processos judiciais e arbitrais em questões de Direito Empresarial, graduado em Direito pela USP e doutor e mestre em Direito Civil pela USP.

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