Opinião

Ruy Barbosa (1849-1923), o advogado da Federação e da República

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1 de março de 2023, 7h04

Em 1º de março de 2023, rememora-se o falecimento do grande e inestimável Ruy Barbosa, ocorrido há exatos cem anos. O notável baiano, nascido no dia 5 de novembro de 1849 e filho primogênito de João José Barbosa de Oliveira e Maria Adélia Barbosa de Almeida, exerceu com maestria os ofícios de advogado, jurista, deputado, senador, ministro, diplomata, tradutor, jornalista e membro fundador da Academia Brasileira de Letras.

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Igualmente aos numerosos ofícios, a publicação de Ruy é vasta. A Fundação Casa Rui Barbosa reuniu em 137 tomos, com os mais variados temas, a poesia, discursos, peças jurídicas, entre outros, o trabalho produzido e publicizado por Ruy Barbosa em todos esses campos que atuou. Instigado pela robustez do trabalho e pela importância de Ruy nos rumos jurídicos políticos do Brasil me investi no desafio de escrever uma obra que busque destacar a atuação do advogado Ruy Barbosa e os caminhos percorridos na formação da República e da Federação, que ainda atualmente, o notabilizam como referência na compreensão do Estado brasileiro. O fio condutor que une os trabalhos escolhidos para figurar nesta obra é a atuação de Ruy Barbosa como advogado dos princípios e valores contidos na Constituição de 1891[1] e no regime recém-inaugurado: a República federativa.

A começar pela grafia do nome do homenageado, afinal, o correto é Ruy ou Rui? Neste texto e no livro, optou-se pela adoção da forma com "y", pois é a grafia constante em sua certidão de nascimento e a qual o próprio Ruy utilizou em toda sua vida. O nome post mortem, grafado com "i", surgiu a partir das "Instruções para a organização do vocabulário ortográfico da Língua Portuguesa", datado de 1943; contudo, tais instruções foram superadas pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, em vigor no Brasil desde 2009, que retomou o uso das letras "k", "w" e "y".

A vida de Ruy advogado e político nasce precocemente por influência do pai, que embora médico nutria apreço pela vida política e certa frustração por não ter elegido a carreira de advogado como ofício. Em 1866, Ruy iniciou os estudos na Faculdade de Direito de Recife e, ainda calouro, participa da Associação Acadêmica Abolicionista criada por Castro Alves, Augusto Alves Guimarães, Plínio de Lima e outros. No ano seguinte ao ingresso na faculdade, sua mãe falece e Ruy tem uma congestão cerebral.  Insatisfeito com rumos de sua vida universitária em Recife transfere sua matrícula para a Faculdade de Direito de São Paulo.

Já no estado de São Paulo, Ruy se integra à campanha abolicionista e organiza, junto a Luiz Gama, Américo de Campos, Bernardino Pamplona e Júlio Cesar de Freitas Coutinho, a criação do jornal Radical Paulistano. No exercício da advocacia afirmava que se orientava por:

Um invencível horror à violência, uma sede insaciável de justiça constitui o fundo de minha índole e tem modelado irresistivelmente a minha vida inteira. Simpatizei sempre com os fracos, respeitei sempre os vencidos, patrocinei sempre os opressos. Minha estreia na tribuna popular, ainda estudante, foi a defesa de um escravo contra o senhor. Minha estreia na tribuna forense, foi a desafronta da honra de uma inocente filha do povo contra a lascívia opulenta de um mandão. Minha estreia na tribuna parlamentar foi o patrocínio da eleição de um conservador contra o partido liberal em que eu militava[2].

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As palavras de Ruy Barbosa não se restringem a artifícios de retórica; como o próprio relata, seu trabalho como advogado foi pautado na defesa de pessoas oprimidas assim como o trabalho parlamentar. Seu pendor à justiça e à superação das desigualdades é reconhecido e celebrado ainda nos tempos atuais pela mais alta Corte do país. Diversos julgados do Supremo Tribunal Federal ainda trazem os ensinamentos de Ruy Barbosa como diretriz de julgamento e provam sua atualidade.

O julgamento da ADI 3.330, de relatoria do ministro Ayres Britto e julgada em 2013, versava acerca da possível inconstitucionalidade do Programa Universidade para Todos (Prouni), uma iniciativa de concessão de bolsas de estudos em universidade privadas a discentes que cursaram ensino médio em escola pública ou ainda, em escola particular, desde que com bolsa que cobrisse 100% do custeio da mensalidade escolar. A ADI foi rejeitada e traz na ementa, o seguinte excerto ao se referir à máxima aristotélica que versa sobre tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais: […] máxima que Ruy Barbosa interpretou como o ideal de tratar igualmente os iguais, porém na medida em que se igualem; e tratar desigualmente os desiguais, também na medida em que se desigualem.[3] Ruy Barbosa, à altura deste julgamento já havia falecido há noventa anos mas seguiu como referência na interpretação de valores de justiça e Educação e foi lembrado na defesa de um dos programas sociais que mais permitiu ingresso de pessoas de origem humilde em universidades brasileiras.

Em 1874, o pai de Ruy falece. Diante do pouco dinheiro, assume o ofício do pai como secretário da Santa Casa da Misericórdia da Bahia ao tempo em que exerceu também a condição de jurisconsulto e, com seus pareceres, logrou muito prestígio e notoriedade, "mas paralelamente advogou sempre, consagrando à advocacia atenções de enamorado, porque só ela satisfazia plenamente as tendências básicas do seu espírito e da sua formação"[4].

Ruy foi destacado político, iniciando a carreira na Bahia em 1878 quando foi eleito deputado para a Assembleia Legislativa Provincial, meses depois angariou novo pleito e foi eleito deputado geral à 17ª Legislatura. Em dezembro do mesmo ano, já com seus 29 anos de idade, Ruy e sua família migram para morar na cidade do Rio de Janeiro, capital do país naquela época e futura capital federal. Nas palavras de Rubem Noguera, “a capital federal, sim, porque foi com a república que Ruy atingiu ao máximo da sua grandeza de profissional do direito, de vigilante intransigente da lei, de advogado forense infatigável e perfeito"[5]. Enquanto estava no Rio de Janeiro, além da atividade parlamentar como deputado geral de 1878 a 1884, continuou exercendo a advocacia e o jornalismo. Ainda sob o regime monárquico, defendia com vigor a abolição da escravatura, a separação entre Igreja e Estado, a liberdade religiosa e eleições diretas.

Nesse escopo, cabe o destaque de outra recente lembrança das contribuições de Ruy Barbosa para o constitucionalismo brasileiro, dessa vez no âmbito da liberdade religiosa, celebrada na ementa da ADI 6.669. Nesta ação, a Procuradoria-Geral da República questiona normas do estado do Maranhão que criam cargos em comissão de capelão religioso nos quadros da Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros Militar, da Polícia Civil e das Secretarias Estaduais de Administração Penitenciária e de Segurança Pública. Nas palavras do relator, ministro Nunes Marques, "cumpre respeitar a liberdade religiosa e de crença dos servidores, que também são cidadãos (CF/1988, artigo 5º, V e VI). Tamanha sua relevância, a liberdade religiosa é garantia expressa contida na Primeira Emenda à Constituição norte-americana; no Brasil, é prevista desde a Constituição de 1891, por influência de Rui Barbosa".[6].

Ruy Barbosa foi um dos autores da primeira constituição republicana do Brasil, promulgada no dia 24 de fevereiro de 1891, sendo responsável por grande parte do seu texto, como também se tornou uma espécie de fiador do novo regime que se implantava no país: a república federativa.

Ruy por duas vezes foi candidato à Presidência da República, em 1910 e 1919, perdeu nas duas ocasiões, mas na condição de senador, homem público e notável jurista, participou ativamente da política brasileira e internacional. Na oposição ao governo de Floriano Peixoto, protestou e denunciou com eloquência as arbitrariedades políticas, tanto na tribuna do Senado e no Jornal do Brasil como também no Supremo Tribunal Federal (STF), utilizando o habeas corpus como um instrumento jurídico na defesa das garantias individuais contra a ilegalidade e os abusos de poder.

Os trabalhos jurídicos de Ruy Barbosa contra o mau uso do estado de sítio deram vazão à primeira interpretação liberal da Constituição: "O Estado de Sítio — sua natureza, seus efeitos, seus limites" e "Atos Inconstitucionais do Congresso e do Executivo". Nessas publicações, Ruy critica o uso do estado de sítio pelos governistas, alegando que confundiram tal situação com o estado de guerra; o estado de sítio suspendia apenas algumas das garantias constitucionais, e não todas, como queriam os florianistas, e, por fim, aquilo que, naquele momento, o habeas corpus era o único remédio capaz de impedir a degeneração do estado de sítio pela razão do Estado[7].

Interessava a Ruy Barbosa, para além da possível ilegalidade das prisões, firmar a tese da competência do STF para questionar e anular quaisquer atos dos Poderes Executivo e Legislativo que não mostrassem compatibilidade com a Constituição, nos moldes do judicial review estadunidense. Uma de suas preocupações quando da colaboração na Constituição de 1891 havia sido fortalecer o Poder Judiciário, afigurando o STF como sucessor republicano do poder moderador do império[8].

Diante do destaque que os habeas corpus impetrados por Ruy Barbosa alcançaram na formação da doutrina jurídica brasileira e na combustão política, o jurista protagonizou a chamada "Doutrina brasileira do habeas corpus", que ampliava a aplicação do writ para além dos casos de constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, servindo também como instrumento hábil a interromper a violação de quaisquer direitos do cidadão. Em que pese a superação do preceituado na doutrina brasileira do habeas corpus diante da reforma constitucional de 1926, seguem alguns julgados que rememoram as contribuições de Ruy para a atualidade das discussões referente ao writ: HC 111.074 [9], HC 102.041[10], HC 83.238[11], além de outros diversos processos que referenciam à doutrina preconizada por Ruy Barbosa sem que a menção esteja expressa na ementa.

Ruy não era um mero mimetizador dos Estados Unidos da América tampouco pode ser reduzido ao adjetivo de pernóstico, como muitos o acusam. Suas ideias tiveram fortes influências dos ideais liberais estadunidenses, mas foi sobretudo a observância dos aprimoramentos argentinos que a Constituição Republicana de 1891 foi promulgada para selar a modernização do modelo liberal democrático federativo e republicano no Brasil.

Acerca das acusações de pernóstico ou prolixo, prima destacar que Ruy é produtor de vasta obra que foi fundamental para a consolidação do Estado brasileiro como o temos até os dias atuais, em sua forma republicana e federativa. Diante da escassez de doutrina em língua portuguesa que se adequasse às peculiaridades brasileiras, Ruy arvorou-se de tal incumbência, redigindo suas peças e discursos com vasta doutrina e por diversas vezes utilizando estudos traduzidos e adaptados aos novos rumos da República federativa recém-criada. Ruy dedicou sua vida à representação do país e de seus valores, tomou para si a tarefa de evoluir uma nação.

Por fim, cabem as palavras do próprio Ruy Barbosa na tribuna do Supremo Tribunal Federal em 1914 durante a exposição do HC 3.536: "mais vale emudecer, deixando toda responsabilidade do feito ao critério do tribunal, que dar, com uma exposição truncada e infiel da controvérsia, incompleta ou errônea ideia da sua justiça"[12]. Ruy possuía vasto vocabulário e se utilizava de sua eloquência e cultura na defesa das causas e de seus ideais, esses elementos revelam as possibilidades que o eminente advogado dispunha na defesa do que acreditava e ajudava, naquele momento a construir. No HC 3.536, Ruy defendia a publicação de seus discursos no Senado em jornal de grande circulação local. A defesa do uso da palavra por Ruy era basilar para a defesa da justiça.

No livro "Ruy Barbosa: O advogado da Federação e da República" é realizada, após breve biografia, a análise de algumas obras escritas por Ruy, a exemplo do HC 3.536 anteriormente citado. Tais peças auxiliam a compreensão da trajetória que justificam o título dado ao livro e constituem uma singela homenagem à memória desse valoroso advogado.


[1] BRASIL, Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Congresso Constituinte, para organizar um regime livre e democrático, estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte. 1891. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em: 13 fev. 2023.

[2] PALHA, Américo. História da vida de Ruy Barbosa. Coleção Homens do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Minerva Ltda., 1948. p. 19.

[3] ADI 3330, Relator(a): AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 03/05/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-055 DIVULG 21-03-2013 PUBLIC 22-03-2013 RTJ VOL-00224-01 PP-00207

[4] NOGUEIRA, Rubem. O advogado Ruy Barbosa: Momentos culminantes de sua vida profissional. 5º ed. São Paulo: Editora Noeses, 2009,  p. XXXVI.

[5] NOGUERA, Rubem. O advogado Ruy Barbosa: Momentos culminantes de sua vida profissional. 5º ed. São Paulo: Editora Noeses, 2009, p. 44.

[6] ADI 6669, Relator(a): NUNES MARQUES, Tribunal Pleno, julgado em 11/10/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-233  DIVULG 24-11-2021  PUBLIC 25-11-2021

[7] LYNCH, Christian Edward Cyril. O caminho para Washington passa por Buenos Aires. A recepção do conceito argentino do estado de sítio e seu papel na construção da República brasileira (1890-1898). RBCS, v. 27, n. 28, fev. 2012.

[8] IDEM

[9] HC 111074, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 13/12/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014 RTJ VOL-00230-01 PP-00406

[10] HC 102041, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 20/04/2010, DJe-154 DIVULG 19-08-2010 PUBLIC 20-08-2010 EMENT VOL-02411-03 PP-00669

[11] HC 83238, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 25/11/2003, DJe-075 DIVULG 23-04-2009 PUBLIC 24-04-2009 EMENT VOL-02357-01 PP-00069

[12]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus no 3536/RJ. Paciente: Rui Barbosa. Coator: Presidência da República. Relator: Ministro Oliveira Ribeiro. Rio de Janeiro, julgado em 5 de junho de 1914. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur92383/false. Acesso em: 13 fev. 2023.

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