Opinião

Divórcio liminar e princípios da não surpresa e da dignidade da pessoa humana

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30 de maio de 2023, 13h19

Com o advento da Constituição de 1988, estabeleceu-se o divórcio como o instituto hábil a extinguir o vínculo matrimonial entre o casal. Trata-se de um direito potestativo, bastando a vontade do indivíduo de encerrar o vínculo conjugal para que possa ser devidamente exercido, não sendo necessária a anuência do cônjuge, qualquer explicação quanto aos motivos que o levaram a decidir pelo fim do matrimônio, tampouco a perquirição de culpa ou "contribuição" de alguma das partes para a tomada da decisão.

Atualmente, basta que uma das partes deseje o fim da relação conjugal para que possa então exercer o direito de divórcio e jurídica e legalmente por fim ao matrimônio.

Por se tratar de um direito potestativo, em que não importam quais sejam os argumentos do outro ou as causas do rompimento da relação, se for da vontade do indivíduo o término da relação esta deverá prevalecer irrefutavelmente, muitos operadores do Direito entendem que poderia ser concedido tal direito já em liminar, inaudita altera pars, sem a necessidade de prévia oitiva da parte contrária.

Ou seja, aquele cônjuge que deseja o fim da relação marital poderia ingressar em juízo com o pedido para que, liminarmente, sem que haja manifestação anterior do outro, o juiz imediatamente decrete o divórcio e ponha fim àquela relação.

É o que chamamos de "divórcio liminar".

À primeira vista, particularmente, parece ser sensata a defesa do divórcio liminar, de forma a reconhecer o direito individual e inegável que toca a cada um dos cônjuges de pôr fim à relação, bem como de possibilitar o célere andamento do processo judicial, podendo o juízo já então julgar de pronto tal questão e relegar sua atenção às questões controversas entre o casal.

Por não se tratar de uma questão a ser posta em debate, o divórcio então poderia ser liminarmente decretado.

Isso possibilitaria, por exemplo, que uma das partes possa já adquirir e vender bens sem que conste como casado, evitando assim qualquer outorga uxória no futuro ou até mesmo comunicabilidade de bens. Sabe-se que o lapso temporal entre a interposição de uma ação judicial e a apresentação de uma contestação pela parte contrária pode levar meses na realidade do nosso sistema judicial atual. Isso, obviamente, acaba por trancar a vida dos envolvidos.

Porém, surge então o seguinte e importante questionamento: e o outro?

Poderia o Judiciário decretar o divórcio e pôr fim a um relacionamento conjugal, que muitas vezes durou décadas, sem que o outro pudesse pelo menos tomar conhecimento da ação e ter ciência de que o seu estado civil será alterado em breve?

Será que poderia o Judiciário simplesmente mudar radicalmente a vida de alguém sem que a ele fosse permitido pelo menos o conhecimento de tal mudança? Será que seria justo da nossa parte, para não dizer humano, decretar o divórcio entre duas pessoas e uma das partes tomar conhecimento de que passou a ser "divorciada" somente quando averbado o divórcio na certidão de casamento?

Será que os anos, muitas vezes as décadas, de relacionamento não merecem um mínimo de respeito e empatia para que o outro tome o conhecimento da medida e possa, ainda que não interferir na decisão do cônjuge, mas preparar-se para tanto?

Nós, operadores do Direito, especialmente aqueles afetos ao Direito Familiarista, não podemos perder a sensibilidade que inegavelmente permeia as relações familiares para adotarmos um viés exclusivamente patrimonial e individualista sobre as relações. Tratamos das questões mais sensíveis e particulares dos indivíduos e precisamos respeitá-las. Para nós, pode ser só mais um divórcio, para a parte, é O divórcio.

Veja que o ordenamento jurídico brasileiro hoje é orientado também pelo Princípio da não surpresa (artigos 9 e 10 do CPC), que prevê expressamente que não serão proferidas decisões contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida, ainda que se trate de matéria que possa ser decidida de ofício.

Ou seja, o divórcio, ainda que não possa sofrer alteração pelos argumentos que o outro possa vir a alegar, deverá ser previamente comunicado à outra parte, de forma a respeitar e assegurar outro princípio basilar do nosso ordenamento: a dignidade da pessoa humana. Com a devida vênia aos que pensam diferente, mas parece ser fundamental para o respeito e dignidade do indivíduo que ele tome conhecimento do divórcio antes de uma decisão judicial.

Por isso, ainda que fundamentada no caráter potestativo do divórcio, a concessão da medida liminar para decretar o fim do vínculo marital não nos parece ser a decisão mais adequada e justa.

Obviamente, não se está aqui a defender que o outro possa interferir na decisão de um dos cônjuges de pôr fim ao matrimônio, pois a liberdade e o desejo individual de cada um devem ser respeitados acima de tudo. Porém, em respeito ao tempo de convívio, à história daquele relacionamento e à dignidade da pessoa humana, deve-se dar primeiramente o conhecimento do divórcio e alteração do estado civil, ainda que nada possa ser feito a respeito.

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