Opinião

O PDL nº 98/2023 em ataque aos decretos do saneamento

Autor

  • Haneron Victor Marcos

    é doutor em Gestão Pública e Governabilidade (UCV/PE) mastère spécialisé em Gestão da Inovação (Emse/França) e procurador e conselheiro de administração representante dos empregados da Casan (Companhia Catarinense de Águas e Saneamento).

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22 de maio de 2023, 19h16

Mentira: antônimo de verdade. Em tempos de desinformação, ou de fake news, há temas que, pela relevância humanitária e ambiental, não permitem emprego eufemístico. Há verdades que precisam ser ditas, entre as quais a de que a principal justificativa do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 98/2023 é uma mentira.

O PDL nº 98/2023 é um condensado de iniciativas que, dentre propósitos verdadeiramente neoliberais e velhos roteiros de medição de forças entre Congresso e governo federal, buscam suspender trechos dos Decretos Federais 11.466 e 11.467/2023, que conferem nova regulamentação ao "Marco Legal do Saneamento Básico" (Lei Federal nº 14026/2020).

Pois bem. A imprensa tradicional e não especializada, insistentemente, vem enfrentando os novéis decretos como um retrocesso, com a cantilena (que não anula uma preocupação de fundo legítima) dos — supostamente — mais de cem milhões de brasileiros despidos de saneamento básico. Supostamente, uma vez que não há consenso nesse dado com que o Instituto Trata Brasil (associação de grandes players privados de mercado) alimenta a mídia, que muito diverge, por exemplo, daqueles apregoados pelo Plansab (Plano Nacional de Saneamento Básico), que considera as soluções individuais de abastecimento de água e tratamento de efluentes.

Esse alegado retrocesso não guarda sintonia com os fatos, ao considerarmos que:

1º) "Marco Legal do Saneamento Básico" é a Lei Federal nº 11.445/2007, que já havia profissionalizado o setor e permitido um volume de investimentos ainda não superado; a Lei Federal nº 14.026/2020 veio, sim, alterar o marco legal, que desde 2007 introduziu no setor, entre outros temas, a regulação, o controle social, e o contrato de programa com exigência de equilíbrio econômico-financeiro, revolucionando os antigos modelos de concessões genéricas e sem definições de metas ou cronogramas;

2º) O equivocadamente nomeado novo "Marco Legal do Saneamento Básico" não veio abrir o mercado ao setor privado. Nunca houve entrave constitucional ou legal à privatização dos serviços de saneamento, competindo aos gestores públicos municipais decidirem entre licitação, gestão direta, ou contratação da respectiva companhia estadual a partir de convênio com o Estado. O que a nova lei passou a promover foi a restrição do leque de opções municipais, forçando a privatização ao impedir contratações diretas orientadas pelo artigo 241 da Constituição Federal;

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3º) Não foram os Decretos 11.466 e 11.467/2023 que vieram permitir a contratação direta — sem licitação — das companhias estaduais de saneamento básico; fora a própria Lei Federal nº 14.026/2020, em seu inciso II do artigo 8º (incorporando a conclusão do STF advinda da ADI nº 1.842/RJ), que dispôs que "exercem a titularidade dos serviços de saneamento básico" (caput), "o Estado, em conjunto com os Municípios que compartilham efetivamente instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual, no caso de interesse comum" (inciso II). O que o Decreto Federal nº 11.467/2023 promoveu foi a reafirmação e a regulamentação de uma questão principiologicamente já prescrita em lei, sem em momento algum fechar o mercado à participação privada; a licitação continua sendo uma opção aos gestores municipais, ou aos colegiados interfederativos que venham a ser criados;

4º) O Decreto Federal nº 11.466/2023 não afronta o Congresso Nacional quando admite a regularização de contratos provisórios não formalizados, irregulares ou precários até 31 de dezembro de 2025. Pelo contrário, restabelece a transitoriedade que havia sido aprovada pelo próprio Congresso, e que foi desrespeitada pelo presidente Jair Messias Bolsonaro ao vetar o artigo 16 do PL então aclamado pela maioria. Se há alguém que desrespeitou o texto originário da Lei Federal nº 14.026/2020, aprovado pela Casa Legislativa, foi o governo Bolsonaro;

5º) Os críticos dos decretos federais editados pelo governo Lula, que os acusam de inconstitucionalmente avançar sobre competências legais, ignoram que o PDL nº 98/2023 mantém aquilo que mais destoa dos limites fixados pela Lei Federal nº 14.026/2020, mas que agrada ao lobby do mercado privado: a liberação do limite de 25% para parcerias público-privadas (artigo 5º, § 4º, do Decreto Federal nº 11.467/2023). Assim, aprovado pelo Senado o PDL, expurgam uma consideração mínima ao papel das companhias estaduais de saneamento (que, em realidade, são quem livram do caos sanitário as zonas periféricas e deficitárias por meio de um subsídio cruzado, instrumento de atuação que ainda não encontrou substitutivo), mas contraditoriamente consideram cômoda a manutenção de trechos interessantes às empresas privadas;

6º) o modelo de privatização brasileiro — que no setor de saneamento segue na contramão mundial — vem sendo pautado por uma fonte substancial — e praticamente exclusiva – de recursos: os bancos públicos, a exemplo dos R$ 19,3 bilhões concedidos pelo BNDES em 2022 à empresa privada Aegea, para auxiliar no pagamento da concessão onerosa vinculada ao leilão da Cedae, no Rio de Janeiro. A insistência legislativa de anular a participação das companhias estaduais de saneamento nos afastará cada vez mais da universalização e do alcance das metas estabelecidas para 2033, o que só poderá ocorrer por meio de uma verdadeira sinergia entre os setores público e privado, cuja efetividade depende de uma revolução na disposição orçamentária pública (resgatando os princípios participativos do Plano Nacional) e de uma efetiva injeção de recursos privados, com fontes verdadeiramente privadas e não derivadas de bancos públicos;

7º) Há — agora — um incentivo às licitações que tenham foco na modicidade tarifária e na antecipação da universalização, e não em certames cujo critério seja o de maior outorga, a exemplo do empregado no Amapá, Rio de Janeiro e Alagoas. As outorgas onerosas são a grande aspiração de gestores que buscam solucionar déficits de caixas gerais, afastando os escassos recursos disponíveis no mercado financeiro para aplicação efetiva em obras de saneamento;

Uma vez enfrentados esses tópicos, sairemos da superfície retórica que permite que um tema de tamanha envergadura orbite na pequenez da queda de braço política entre oposição e situação. Não há solução no maniqueísmo entre público e privado, alimentado e retroalimentado pela mídia não especializada, e pelo lobby privatista. A solução para as metas de 2033 reside — insistimos — na sinergia entre ambos os lados, sem perder de vista que saneamento é um direito humano, exercido por meio de monopólio natural, e que, portanto, não merece operação orientada pelo mercado.

É preciso enfrentar as capacidades e também as debilidades das forças estatais (representadas, essencialmente, pelas companhias estaduais de saneamento, que foram equivocadamente tratadas sem distinções, como as relacionadas com a capacidade econômico-financeira), e enfrentar as mesmas capacidades e debilidades de um setor privado que ainda não comprovou sua independência das fontes públicas, e que precisa responder aos escândalos de corrupção que vêm emoldurando sua participação (hoje, em Santa Catarina, 5% dos prefeitos estão presos por corrupção associada a contratos de saneamento).

Que os próximos e iminentes debates no Senado revelem o amadurecimento esperado.

Autores

  • é doutor em Gestão Pública e Governabilidade (UCV/PE), mastère spécialisé em Gestão da Inovação (Emse/França) e procurador e conselheiro de administração representante dos empregados da Casan (Companhia Catarinense de Águas e Saneamento).

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