Opinião

A privacidade não está desaparecendo

Autor

  • Paola Roos

    é advogada especializada em Privacidade e Proteção de Dados Pessoais e Data Protection Officer internacionalmente certificada mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e especialista em Direito Notarial e Registral pela Laureate International Universities (Uniritter).

16 de maio de 2023, 16h22

Os estudiosos do tema sabem bem que privacidade é um conceito bastante contestado.

O sociólogo Alan Westin, escreveu que "poucos valores tão fundamentais para a sociedade quanto a privacidade foram deixados tão indefinidos na teoria social ou foram objeto de escritos tão vagos e confusos por cientistas sociais" [1].

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A filósofa do direito Judith Jarvis Thomson, em um artigo de 1975, expressou ceticismo sobre a coerência do próprio conceito de privacidade, afirmando que "a coisa mais impressionante sobre o direito à privacidade é que ninguém parece ter uma ideia muito clara do que é" [2].

Mais recentemente, o teórico jurídico Robert Post observou que "privacidade é um valor tão complexo, tão emaranhado em dimensões concorrentes e contraditórias, tão repleto de vários e distintos significados, que às vezes fico desesperado se pode ser abordado de forma útil" [3]. O teórico da privacidade Daniel Solove simplesmente o declara "um conceito em desordem" [4].

Há autores que dizem que é o "direito fundamental mais difícil de conceituar" [5], que é um termo impreciso até entre os especialistas [6], um termo camaleão. Historicamente a privacidade tem sido conectada ora à criação de conhecimento, ora à dignidade e à liberdade.

Os teóricos, filósofos e profissionais do direito procuraram superar a contestabilidade da privacidade aceitando-a e tratando-a simplesmente como uma noção confusa. Alguns tentam reduzir a ambiguidade estreitando o leque de ideias que permeiam a privacidade – como um termo guarda-chuva que abarcaria determinados tópicos essenciais – enquanto outros tentam legitimar a ambiguidade por meio de heurísticas que unem múltiplos conceitos de privacidade.

Essa característica de "textura aberta" e "multifacetada" do conceito de privacidade não pode, contudo, ser utilizada como desculpa para simplesmente descartá-la, tomando-a por um mito, ou algo morto ou, pior ainda,  desvirtuá-la como pretexto para exercício de poder. A contestabilidade do conceito de privacidade tem sido usada como pretexto para descartar completamente a sua relevância na contemporaneidade, como foi o caso da afirmação de Scott McNealy, cofundador e ex-CEO da Sun Microsystems, que disse a um grupo de repórteres em 1999: "Você não tem privacidade de qualquer maneira… Supere isso!". 

Naquele ano a internet como a conhecemos tinha apenas cinco anos, não havia Facebook, Google ou Twitter. O eBay tinha quatro anos, mas mal começava a aceitar cartões de crédito. PayPal não existiria por mais três anos…

Com a evolução tecnológica esse caldo histórico de estudos e debates sobre privacidade foi utilizado por especialistas e formuladores de políticas para explorar os riscos e desenvolver proteções para a privacidade das pessoas.

Um conjunto de princípios justos de práticas de informação [7] foram criados em um compromisso de proteger a autodeterminação informativa ou informacional, que é "a autoridade do indivíduo para decidir a si mesmo, com base na ideia de autodeterminação, quando e dentro de quais limites as informações sobre sua vida privada devem ser comunicadas a outros" [8].

Esses princípios justos de práticas de informação agora formam a base de leis de proteção de dados pessoais e privacidade em vários países, assim como a estrutura organizacional para muitos trabalhos institucionais e profissionais em todo o mundo, nos setores público e privado.

Os princípios foram direcionados para proteger o direito do indivíduo à autodeterminação informativa em várias esferas da vida econômica e para abordar e combater os riscos emergentes da introdução de tecnologias cada vez mais avançadas.

Contudo, a autodeterminação informacional não se revela um objetivo suficiente e tampouco o controle individual é um mecanismo eficaz para proteger a privacidade diante dessa nova classe de tecnologias e ameaças delas decorrentes. É preciso encarar de uma vez por todas que danos à privacidade podem ocorrer e para os quais o controle individual não oferece nenhuma proteção ou remédio, por exemplo, quando ações são tomadas com base em classificações de grupo, ou percepções novas e inesperadas são inferidas a partir de dados que os indivíduos divulgaram intencionalmente, ou se as informações pessoais confidenciais de um indivíduo são obtidas por meio da análise de dados revelados por outras pessoas em sua rede social, seu comportamento nas mídias sociais ou por conjuntos de referências cruzadas de dados 'desidentificados' nos quais eles estão incluídos.

A limitação da autodeterminação informacional como um componente conceitual central da privacidade apresenta um desafio e uma oportunidade para expandir a forma como concebemos a privacidade, seus riscos e estratégias de proteção.

À medida que esbarramos nas fronteiras da autodeterminação informacional, necessariamente temos que nos envolver com o terreno emaranhado, ambíguo e contestado da privacidade. E, ao mesmo tempo, a necessidade de construir valores de privacidade na ciência de dados exige que os propósitos aos quais a privacidade serve sejam devidamente esclarecidos, assim como as justificativas que a animam e as ações que a colocam em risco. Atingir esses objetivos simultaneamente não é tarefa fácil, mas deve ser a agenda central da pesquisa nesta seara nos dias que correm.

Os danos à privacidade decorrem da informação, mas não podem ser abordados por estratégias centradas no controle individual sobre a informação. Esse cenário encerra o desafio mais premente à privacidade em um mundo repleto de grandes conjuntos de dados que representam ações, transações, interações, fisiologia, crenças, estados e expressões de indivíduos, todos processados algoritmicamente como base para a tomada de decisões sobre pessoas.

Mesmo existindo substanciais diferenças entre os modelos legais de proteção de dados pelo mundo, eles continuam a se concentrar na preservação do controle individual sobre as informações por meio de uma série de limitações na coleta, uso, divulgação e processamento de informações pessoais.

Apesar da atual incapacidade da autodeterminação informacional e do controle individual sobre a informação de contornar e remediar os problemas emergentes de privacidade, os regimes jurídicos que incorporam os princípios da prática de informações justas têm se mostrado resilientes.

À sombra desses regimes jurídicos, estudiosos e profissionais estão buscando concepções alternativas de privacidade que abordem os novos riscos da ciência de dados, aprendizado de máquina (ML), avanços da Inteligência Artificial (AI) e outras inovações tecnológicas.

Conceitos como "confiança" e "atendimento às expectativas" têm sido resgatados. Também os denominados conceitos de contraste  como "assustador"  em um esforço para abordar as mudanças nas preocupações com a privacidade de clientes e cidadãos. Os reguladores de privacidade também estão expandindo seu trabalho, ramificando-se para ética no trato da informação e ética de dados em resposta aos desafios impostos pela big data.

A evolução/transmutação do conceito de privacidade é a chave para garantir sua generatividade [9], capacitando-a para responder a problemas criados pela tecnologia e mudanças sociais.

São os debates sobre o significado e a aplicação da privacidade que garantem sua importância para os desafios de amanhã, sendo essenciais para sua relevância contínua. A textura aberta da privacidade e a existência de múltiplas concepções do conceito é que criam o espaço necessário para que ele se oxigene e possa atingir seu significado mais expressivo no atual contexto histórico e social.

Apenas para ilustrar, seguem duas pequenas fatias da história da privacidade relatadas ao longo dos anos por autores que tratam do tema. No final do século 19, em resposta à invenção das 'fotografias instantâneas' e do modelo de negócios da "empresa jornalística", Warren e Brandeis escreveram O Direito à Privacidade na Harvard Law Review e deram início a uma tendência de privacidade como "o direito de ser deixado em paz" [10]. Codificada em delitos, a lei nos EUA reconheceu a proteção contra fofocas sobre pessoas no jornal ou uso da imagem de alguém em publicidade.

Na metade do século 20, na medida em que a tecnologia de computador se desenvolveu, tornou-se cada vez mais possível coletar e analisar um número relativamente grande de registros relacionados a uma única pessoa. A privacidade então foi aplicada de uma nova maneira, para descrever a proteção não contra fofocas, mas contra decisões tomadas em bancos de dados impessoais do governo.

Os princípios de práticas justas de informação, enumerados em um relatório de 1973 sobre registros, computadores e os direitos dos cidadãos [11] descreveram a limitação da divulgação, os direitos de acesso e o direito a dados corretos que podem ser usados em determinações do governo.

Esses princípios de práticas justas de informação foram refletidos no US Privacy Act de 1974 [12], nas diretrizes da OCDE em 1980 [13] e ainda constam nos relatórios da Federal Trade Commission (Comissão Federal de Comércio) dos Estados Unidos e na regulamentação de proteção de dados da União Europeia.

A distância entre a privacidade, conforme figurava nas discussões públicas e jurídicas das décadas de 1890 a 1960, e a privacidade como foi posteriormente reconfigurada na década de 1970, é uma demonstração da abertura do seu conceito.

Os contextos tecnológicos e sociais em que a privacidade foi invocada em cada momento histórico foram radicalmente diferentes e, no entanto, ela foi alavancada em ambos os cenários, que buscaram proteger o que as pessoas valorizavam.

É importante ressaltar que apesar de suas diferenças, em ambos os contextos a base foi a privacidade. Os praticantes do contexto posterior poderiam ter descartado o conceito anterior. Em vez de descartá-lo, eles procuraram transformá-lo, e o fizeram discutindo seu significado. O fato de a privacidade poder ser transformada dessa maneira indica sua abertura conceitual.

Hoje, enfrentamos mais uma vez a perspectiva de um conceito aberto e transformável de privacidade. As diretrizes existentes sobre privacidade estão novamente esbarrando em grandes desafios, em função das novas tecnologias poderosas que expõem seus limites.

A privacidade não está desaparecendo, mas está passando (e passará ainda mais) por transformações importantes. Diante dessas transformações, o reconhecimento da contestabilidade da privacidade deve orientar a investigação de seus contornos conceituais atuais. Ela deve ser  promovida, reduzindo-se cada vez mais o papel inerentemente desempenhado pelo poder na respectiva definição nas disputas contemporâneas, permeadas pela big tech [14].

 


[1] Westin A. 1967. Privacidade e liberdade . Nova York, NY: Atheneum, pág. 5

[2] Thomson JJ. 1975. O direito à privacidade . Philos. Public Affairs 4  pág. 295

[3] Pós RC. 2000. Três conceitos de privacidade . Georgetown Law J. 89 , pág. 2087

[4] Solove DJ. 2008. Entendendo a privacidade . Cambridge, MA: Harvard University Press, pág 9.

[5] Michael, James, Privacy and Human Rights, Londres: Dartmouth Publishing Company, 1994, p. 1.

[6] Fernandes, Milton. Proteção civil da intimidade. Imprensa: São Paulo, Saraiva, 1977, pág 46.

[7] Ou Fair Information Practice Principles (FIPPs): Acesso e Alteração, Responsabilidade, Autoridade, Minimização, Qualidade e Integridade, Participação Individual, Especificação de Finalidade e Limitação de Uso, Segurança e Transparência.

[8] Gutwirth, Serge. [Dordrecht?] (Reinventando a proteção de dados?). Springer. 2009.ISBN 9781402094989.

[9] A generatividade foi descrita por Erikson como a preocupação com o desenvolvimento da comunidade humana e o bem-estar das próximas gerações. In ERIKSON, E. H. Childhood and society. New York: Norton. 1963.

[10] Warren SD, Brandeis LD. 1890. O direito à privacidade . Harvard Law Rev. 4, 193–220.

[11] Department of Health, Education and Welfare. 1973 Records, computers and the rights of citizens. Washington, DC: Department of Health, Education and Welfare.

[12] https://www.justice.gov/ –   Office of Privacy and Civil Liberties  – Privacy Act of 1974

[13] Organisation for Economic Co-operation and Development. 1980 Guidelines governing the protection of privacy and transborder flows of personal data. Paris, France: OECD.

[14] Big Tech, também conhecido como Tech Giants , refere-se às empresas mais dominantes no setor de tecnologia da informação , notadamente as cinco maiores empresas americanas de tecnologia: Alphabet (Google), Amazon, Apple, Meta (Facebook) e Microsoft . Essas empresas são chamadas de Big Five.Os Big Five são players dominantes em suas respectivas áreas de tecnologia: inteligência artificial, computação em nuvem, eletrônicos de consumo, comércio eletrônico, automação residencial, publicidade online, carros autônomos, redes sociais, software e mídia de streaming. Eles estão entre as empresas públicas mais valiosas

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