Opinião

Limites são necessários para se chegar ao ponto mais alto da perfeição

Autor

  • Patrícia Carrijo

    é juíza presidente da Asmego (Associação dos Magistrados de Goiás) e vice-presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros).

15 de maio de 2023, 6h32

De como Itaguaí ganhou uma casa de Orates sabe quem leu o conto O Alienista. No divertido e enriquecedor texto de Machado de Assis, o personagem principal, Simão Bacamarte, é tachado pelo narrador como um "homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência".

Torrente de loucos foi o que ele, médico psiquiatra da narrativa, criou com sua idiossincrasia. No Judiciário brasileiro, a atual conjuntura impõe aos magistrados enredo que pode dar origem a história parecida.

Deus sabe o que faz!, e a magistratura se apega à necessidade de ser respeitada ao se cumprir o determinado pela nossa Constituição — prestação jurisdicional célere, efetiva — um número de processos que assegure essa celeridade na resposta estatal, mas que também resguarde a saúde dos magistrados, bem como a qualidade das decisões proferidas.

Uma teoria nova parece ter sido criada aos moldes da de Bacamarte, na realidade vivida hoje pelos magistrados. O excesso de cobrança pautada unicamente em números parece ter se esquecido de que juiz não é computador. Vidas humanas não podem ser submetidas a exigências de produções exatas. O resultado provavelmente será inexato, e o erro prejudicará certamente os magistrados.

O terror para os magistrados são o excesso de trabalho, a pressão psicológica, as constantes críticas recebidas nas redes sociais por pessoas que não conhecem o processo jurídico e muitos outros fatores. Não à toa, são assustadoramente crescentes os diagnósticos de doenças psicológicas em membros da magistratura.

A rebelião não é instrumento usual no Judiciário. Nosso histórico é de estar em concordância com uma das observações do boticário de Itaguaí, Crispim Soares, sobre o ofício de Simão Bacamarte: "a prudência é a primeira das virtudes em tempos de revolução". Preferimos, como mostram os números auferidos pelo próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ), responder com produtividade.

Reprodução
Reprodução de HQ de O Alienista

O inesperado é que nesses tempos modernos pouco se esteja se preocupando com a saúde mental e física dos trabalhadores do sistema de Justiça. E justamente quando a sociedade e as comunidades médicas clamam por proteção à sanidade de membros de todas as categorias.

As angústias do boticário Crispim, ao ver que o amigo Simão resolve internar pessoas em seu sanatório unicamente por decisão pessoal e baseada em seus próprios parâmetros, podem ser claramente compreendidas neste momento pela nossa classe. O trabalho será pesado para batermos as 11 metas do CNJ) para 2023. Teremos de julgar mais processos que os distribuídos; julgar processos mais antigos; estimular a conciliação; priorizar o julgamento dos processos relativos aos crimes contra a administração pública, à improbidade administrativa e aos ilícitos eleitorais; reduzir a taxa de congestionamento, exceto execuções fiscais; priorizar o julgamento das ações coletivas; priorizar o julgamento dos processos dos maiores litigantes e dos recursos repetitivos; priorizar o julgamento dos processos relacionados ao feminicídio e à violência doméstica e familiar contra as mulheres; estimular a inovação no Poder Judiciário; impulsionar os processos de ações ambientais; infância e juventude.

Dois lindos casos. Ressalto a sensibilidade do colegiado que definiu as metas quanto à inserção da 8 — relativa ao feminicídio e à violência doméstica e familiar contra as mulheres — e da 11 — sobre direitos da infância e juventude.

A restauração de uma carga de trabalho compatível com um expediente saudável para nós magistrados é necessária e urgente. Muitos foram os avanços nas últimas décadas, com as facilidades da informatização, digitalização dos processos e o trabalho remoto. Mas ainda convivemos com entraves como déficit de pessoal, diante da crescente demanda da população por seus direitos na Justiça. Entendemos que para se ter mais qualidade, é preciso que sejam criadas mais unidades judiciárias e realizados mais concursos públicos para o ingresso de novos juízes.

O assombro de Itaguaí se reflete aqui, quase 150 anos depois da publicação do conto, nos personagens desta nossa história: "Um [magistrados] fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro [o contexto atual] devassa o futuro com todas as suas auroras".

O final do §4º, do artigo 3º da CLT, expressa que "considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada". A se trabalhar somente nesse período resguardado pela lei maior das relações trabalhistas, será necessária uma jornada sobre-humana, esgotante, para se alcançar as metas. Os moldes que se antevê convergem para que, cada vez mais, os magistrados tenham de decidir os processos em um número mínimo de dias, de atos. E isso não é possível.

Plus ultra! é o que querem que alcancemos. Temos lutado e nos superado para ir além, mas devemos, antes de tudo, respeitar nossos limites. Mudança nos critérios para que magistrados não sejam avaliados apenas por números serão bem-vindas. Nós, magistrados, ingressamos na carreira com vontade de proferir decisões que sejam fruto de pesquisa da jurisprudência, embasadas no denominador comum do direito comparado. Só assim conseguiremos chegar ao ponto mais alto da perfeição.

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