Opinião

Locação de habitação de interesse social na cidade de São Paulo

Autores

  • Nathália Lopes

    é advogada com atuação na área de direito imobiliário especialista em Direito Imobiliário pelo Sindicato das Empresas de Compra Venda e Administração de Imóveis (Secovi) e mestranda em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP).

  • Rodrigo Cury Bicalho

    é sócio do escritório Bicalho Mirisola Bresolin Dias Advogados e especializado em Direito imobiliário.

15 de maio de 2023, 13h17

Necessidade econômica e social
O devido enfrentamento do déficit habitacional do Brasil é uma questão urgente. Somente na cidade de São Paulo, além da parcela da população que habita imóveis precários, 48 mil pessoas vivem em situação de rua, demonstrando a insuficiência das políticas públicas para prover habitação, sobretudo para as camadas mais carentes da população.

Cabe aos municípios, enquanto entes federados (artigo 39, §2º, da Constituição), criarem uma política pública habitacional para endereçar o atendimento das necessidades dos munícipes quanto ao direito à moradia digna (artigo 6º da CF) que se efetiva, dentre outras formas, por meio do incentivo à produção de Habitação de Interesse Social (HIS) (artigo 35, III do Estatuto da Cidade).

No âmbito dos municípios, o arranjo institucional dessa política pública pode se dar pela concessão de benefícios fiscais e urbanísticos (além de outros) voltados para atrair interesse do setor produtivo em investir em edificação de moradias econômicas para aumentar a sua produção, em quantidade, qualidade e preço.  

Os incentivos urbanísticos variam de acordo com a legislação municipal, sendo que no caso da cidade de São Paulo, foco principal do presente artigo, o incentivo é bastante relevante: dispensa o pagamento de outorga onerosa do direito de construir e ainda concede o maior potencial construtivo adicional possível para a cidade, podendo chegar em até seis vezes a área do terreno.

A somatória de benefícios resulta em construir por um preço menor, com o intuito de ofertar mais moradias por preços mais acessíveis para a população de baixa renda. Ou seja, trata-se de uma política pública honrosa do município de São Paulo voltada para efetivamente induzir o empreendedor privado a edificar habitação econômica.

Aliada a esses benefícios, existe a necessária contrapartida: destinar a produção de unidades HIS (e, no caso de São Paulo, também Habitação de Mercado Popular — HMP) para o público-alvo, representado por famílias que se enquadram na faixa de renda prevista na legislação municipal.

Ocorre que para a efetividade de tal política, além de estimular o interesse privado em edificar tais unidades, é preciso garantir crédito imobiliário e/ou subsídios para que as famílias alvo da política tenham acesso à moradia produzida. Sem a aliança entre crédito e construção, a efetividade no enfrentamento do déficit habitacional pode ser prejudicada, empurrando a população mais carente, muitas vezes, à moradia precária e informal.

Para isso, é preciso ter em mente que as famílias a quem se destinam tais unidades estão separadas por faixa de renda, da seguinte forma: para HIS 1 até três salários-mínimos; HIS 2 para famílias com até seis salários-mínimos e HMP até dez salários, sendo que os valores devem ser atualizados anualmente por meio de decreto municipal.

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Habitação social no centro de São Paulo
Divulgação

A oferta de crédito imobiliário é, portanto, essencial para essas famílias poderem ter acesso à habitação, razão pela qual programas como o Minha Casa, Minha Vida são essenciais. Ainda assim, muitas famílias não conseguem acesso ao crédito, em razão de formalidades na análise ou mesmo insegurança em assumir uma dívida que perdurará por décadas, ainda mais para famílias cuja renda não é estável e na imensa maioria das vezes não há uma poupança que possa fazer frente a períodos de desemprego familiar.

Nesse cenário, existe uma ideia equivocada de que a destinação dessas unidades deveria ser apenas para a aquisição da casa própria, quando na verdade o objetivo dessa política pública deveria ser ofertar moradias (ou destinar, para seguir o termo da lei municipal) o bastante para que a população mais carente tenha acesso, seja pela aquisição, pela locação, arrendamento ou outra forma de acesso justo à moradia digna.  

 Havendo um foco exclusivo na aquisição da casa própria, cria-se um gargalo nos modelos da política de habitação social praticado pelos municípios. Tal modelo, mesmo diante de subsídios e incentivos, exclui grande parte da população sem acesso à financiamento para a celebração de uma aquisição imobiliária, não cobrindo toda a necessidade social por habitação.

Se o objetivo central das legislações urbanas que preveem habitação de interesse social é garantir moradia, não deveriam se restringir àqueles que tenham condição financeira permanente e segura o suficiente para adquirir um imóvel, contratando financiamento por trinta anos. Diante disso, a locação é não apenas uma possibilidade jurídica, mas uma necessidade econômica e social que garante à parcela da população sem crédito imobiliário o acesso aos imóveis empreendidos com incentivo municipal, como forma de garantir o direito à moradia digna, como determina a Constituição.

Outra vantagem social é que a locação confere flexibilidade. A aquisição da casa própria via financiamento de longo prazo é incompatível com situações de transferência de emprego ou mudanças para outras localidades. Nessas situações, o dinamismo negocial da locação residencial é altamente favorável à realocação rápida e desburocratizada de tais famílias, bem como à manutenção do equilíbrio da relação entre os locais de emprego e de moradia [1].

A possibilidade de se produzir imóveis HIS e HMP para locação, utilizando-se dos incentivos fiscais e urbanístico, certamente leva ao aumento da produção dessa modalidade de empreendimento. Aliás, seguindo o exemplo do que acontece no exterior, há empresas e fundos de investimento interessados em tal tipo de negócio, elevando a oferta de moradias econômicas, aguardando apenas melhor segurança jurídica.

Possibilidade jurídica
A Constituição determina que cabe aos municípios estabelecerem "a política de desenvolvimento urbano, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (artigo 182), promover o adequado ordenamento do seu território, mediante o planejamento e o controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, elaborando e executando, para tanto, o plano diretor (artigo 30, VIII)" [2]

Nesses termos, à legislação urbanística municipal compete tratar do ordenamento da cidade, o que envolve não só a regulação do uso e ocupação do solo urbano, o controle das construções e função das edificações, mas também sua organização, os objetivos sociais e ambientais da cidade para os dias atuais e futuro. Tudo isso deve constar do planejamento da cidade de forma a orientar seu crescimento, sua ordenação e mais ainda a habitação, que, nas palavras de Hely Lopes Meirelles, "é a razão de ser de toda cidade" [3]. Assim, o ordenamento da cidade é atribuição municipal.

Já a forma de utilização da propriedade, se mediante venda, locação, comodato, arrendamento, ou outra forma prevista pelo direito civil, é matéria de competência privativa da União (artigo 22, I, da Constituição).

Desse modo, cabe ao município legislar sobre uso, ocupação, regras de edificação no território urbano, ao passo que a destinação da propriedade, a forma como o titular de domínio decide destiná-la com vistas ao cumprimento de sua função social é de competência exclusiva da União. Sobre isso, destaca-se o preciso ensinamento de Hely Lopes Meirelles [4]:

"Advirta-se também que ao Município só incubem a legislação e o controle dos aspectos técnicos, estruturais e urbanísticos das construções e dos loteamentos urbanos ou para fins urbanos, não lhe competindo editar normas ou fazer imposições de natureza civil ou imobiliária, privativas da União, ou invadir competências do Estado e de órgãos federais, com exigências e impugnações sobre a propriedade e suas mutações dominiais ou possessórias."

Exposto isso, o município de São Paulo, como de fato lhe compete constitucionalmente, previu, no Plano Diretor e na Lei de Zoneamento, incentivos urbanísticos, conforme detalhado acima, para induzir a edificação de habitações populares, classificadas como HIS e HMP.  

Tais moradias devem ser construídas sob a regra urbanística municipal e destinadas, a partir de determinados critérios econômicos, para a população enquadrada nessa política habitacional. Assim, apesar de ser uma faculdade [5] do setor privado de construir tais modalidades de habitação, uma vez feita a opção, ela é vinculante. Para cumprir com a função social da destinação de tais benefícios, o projeto aprovado como habitação social está, então, obrigado a garantir a destinação, seja pela venda, seja pela locação (ou outra forma civil de destinação), exclusivamente às famílias que se enquadrem nos critérios de renda estabelecidos pela legislação vigente.

Tanto assim é que a legislação municipal atualmente em vigor deixa clara a pretensão do legislador de destinar a produção de HIS/HMP ao público-alvo, conforme, por exemplo, a definição contida no Quadro 1 do Plano Diretor da Cidade de São Paulo, de acordo com o qual "Habitação de Interesse Social – HIS é aquela destinada ao atendimento habitacional das famílias de baixa renda (…)".

Corroborando com tal entendimento, o Decreto Municipal nº 59.885/2020, que estabelece o regramento para a aprovação de unidades HIS e HMP na cidade de São Paulo, fez clara distinção entre a obrigação de destinação das unidades ao público-alvo e a possibilidade de comercialização (ou não) dessas unidades. Por um lado, referido decreto determina que o proprietário (ou possuidor) que for desenvolver o empreendimento se responsabilizará pela correta destinação das unidades por ele produzidas; por outro, deverá, em relação às unidades que forem comercializadas, ou seja, poderão existir unidades não comercializadas, averbar nas respectivas matrículas a destinação de tais unidades de forma a publicizar a futuros terceiros adquirentes as restrições aplicáveis a esses imóveis.

Portanto, na forma como atualmente prevista na legislação urbanística municipal, tais unidades HIS/HMP podem ser alugadas, no âmbito privado, desde que para locatários que se enquadrem nas faixas de renda, atendendo, com isso, a finalidade da lei: disponibilizar moradia a um custo acessível para as famílias que se enquadrem na respectiva faixa de renda.

Nessa hipótese, não há inconstitucionalidade no Plano Diretor, já que o regramento de HIS/HMP se restringe ao detalhamento da norma urbanística para sua aprovação e edificação, sem avançar sobre matéria de competência privativa da União. Inconstitucionalidade haveria, entretanto, se a lei local pretendesse obrigar à venda de propriedade, ou venha a ser alterada para tal finalidade.

A inconstitucionalidade de normas municipais que disciplinam competências privativas da União já foi inclusive motivo de deliberação da Comissão de Constituição, Justiça e Legislação Participativa (CCJ) da Câmara de São Paulo para decidir pela ilegalidade do Projeto de Lei nº 0362/2015, que visava dispor sobre procedimentos para locação de imóveis, tendo ultrapassado as competências legislativas municipais, segundo a CCJ no parecer nº 2254/2015:

"A propositura não encontra amparo em nosso ordenamento jurídico para seguir em tramitação. Isto porque a definição acerca dos procedimentos para locação de imóvel é matéria de direito civil, cuja competência legislativa é privativa da União Federal. De fato, o artigo 22, I, da Constituição Federal assegura a competência privativa da União Federal para legislar sobre matérias de Direito Civil. Por esta razão, foi editada a Lei Federal nº 8.245/1991, que dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Em seu art. 22, a referida Lei define os deveres do locador. No artigo seguinte, os deveres do locatário. Sendo assim, não há como ampliar, por meio de lei municipal, os deveres das partes do contrato de locação."

Contraditoriamente, o projeto de lei de revisão do PDE de São Paulo (PL nº 127/2023), a despeito de disciplinar matéria na qual o Município não possui competência, foi aprovado pela referida Comissão (CCJ). Ainda em tramitação, a possível alteração legal, que pretende atribuir à legislação urbana a competência de impor limites no direito de propriedade poderá incorrer em inconstitucionalidade por violar matéria de competência exclusiva da União.

Mais uma vez, Hely Lopes Meirelles [6] acentua que somente caberá à União dispor sobre as formas de destinação da propriedade, conforme abaixo se destaca:

"As limitações urbanísticas incidem sobre a utilização da propriedade, enquanto as imposições civis incidem sobre o direito de propriedade em si mesmo. […]. Só a União pode dispor sobre a translação da propriedade de um titular para outro. Ao Município só compete estabelecer como a propriedade urbana será utilizada. Daí resultam as leis locais de zoneamento e de lote amento, só abrangendo os aspectos urbanísticos destinados à ordenação espacial da cidade, para sua maior funcionalidade e conforto de seus habitantes. A União diz como se adquire, se preserva e se transfere a propriedade; o Município diz como se utiliza a propriedade na área urbana."

Cabe ao município, portanto, dispor sobre a correta destinação das unidades habitacionais que foram construídas com os incentivos urbanísticos alinhados a uma política habitacional, mas não vedar os direitos de propriedade disciplinados pela legislação federal (Lei nº 10.406/02 e Lei nº 8.245/91), especialmente diante do seu potencial de limitar a eficácia ao direito de moradia.

Ademais, diferentemente do cenário paulistano, diversos municípios incentivam essa forma de moradia por meio de programas de locação social.

A instrumentalização da locação como uma vantagem para os programas de habitação social está presente em diversas normas federais e municipais, à exemplo do novo Programa Federal Minha Casa Minha Vida, ao retornar pela Medida Provisória 1.162/2023, que prevê a possibilidade de realização de locação, arrendamento e comodato para combater o déficit habitacional (artigo 3º, §2º).

Outro exemplo é a Resolução nº 159/20 do Ministério da Economia que postula uma política de fomento a parcerias com a iniciativa privada para estudar alternativas habitacionais destinadas à locação social, regulamentada pelo Decreto Federal nº 10.678/21.

No município de São Paulo, a locação social foi aprovada pela Resolução da Secretaria de Habitação (Sehab/CMH) nº 23/02 com o intuito de fornecer aluguéis compatíveis com as necessidades familiares e a capacidade de pagamento das famílias de baixa renda como uma política complementar a política da casa própria.

Também em São Paulo, a Lei Municipal nº 17.638/21 disciplina o Programa "Pode Entrar" desenvolvido para ampliar e facilitar o acesso às unidades de habitação social, criando mecanismos de incentivo à produção de empreendimentos habitacionais de interesse social com uma política habitacional de financiamento e locação subsidiados.

Para além do âmbito paulista, o Programa "Reviver Centro" instituído pela Lei Complementar nº 229/2021 é um plano de recuperação urbanística, cultural, social e econômica da região central do Rio de Janeiro que, dentre outros aspectos, inclui um Programa de Locação Social que visa disponibilizar propriedades para aluguel e incentivar a população a se mudar para o centro da cidade para revitalizar a área residencial.

As vantagens da locação de habitação de interesse social justificam a importância de legislações urbanas municipais que ampliam a política habitacional para além da aquisição da moradia, que apresenta dificuldades, muitas vezes intransponíveis, para as famílias necessitadas. A mera interpretação contrária, quando a lei não veda, já pode gerar uma política cega, que ignora pontos cruciais da realidade financeira do país e sua necessidade de parceria com o investimento privado e acesso ao crédito imobiliário por parte de sua população.

Sem restrições legais vigentes para a locação na redação da legislação municipal, e diante das evidências das vantagens sociais que tal possibilidade pode agregar a política de enfrentamento do déficit habitacional, não é possível interpretar por qualquer proibição da destinação por meio da locação de unidades habitacionais HIS/HMP.

Há uma legítima preocupação da Municipalidade com a correta destinação das unidades HIS/HMP para o público-alvo. Afinal, para que a política pública atinja seus objetivos é necessária não só a construção de unidades, como também a efetiva destinação para as famílias que se enquadram nos critérios da faixa de renda.

Para que isso ocorra, é necessária uma permanente fiscalização da destinação das unidades, a partir da observância de determinados requisitos contratuais e comerciais a serem observados pelos proprietários de unidades HIS/HMP que pretendem destiná-la à locação efetiva para quem se enquadre nos critérios da política pública.

Assim, ampliar-se-á a oferta de unidades HIS/HMP para a população a qual se destina tal política pública, mediante permanente fiscalização, e garantindo acesso à moradia digna, como prevê a Constituição.


[1] Princípio fundamental da Política de Desenvolvimento Urbano da Cidade de São Paulo conforme disposto no artigo 7º, inciso III do PDE.

[2] SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. Malheiros Editores. 6ª edição, p. 63.

[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de Construir. Malheiros Editores. 11ª edição, p. 120.

[4] Ob. Cit. p. 221.

[5] Exceto para imóveis enquadrados em ZEIS, cujas regras de edificação de HIS e HMP são obrigatórias.

[6] MEIRELLES, Hely Lopes. Parecer: Loteamento Fechado. Competência do Município para Ordenação de seu Território  o Loteamento Fechado ou em Condomínio é regido pela Lei 4.591/64  As Vias Internas do Loteamento Fechado pertencem ao Condomínio  As Diretrizes para Loteamento, fornecidas pela Prefeitura, vinculam o Município e suprem a Legislação Urbanística Local  Cabimento de Mandado De Segurança para Invalidar Indeferimento Ilegal de Plano de Loteamento. Revista de Direito Imobiliário. vol. 9. p. 7 – 15. 1982.

Autores

  • é advogada com atuação na área de direito imobiliário, especialista em Direito Imobiliário pelo Sindicato das Empresas de Compra, Venda e Administração de Imóveis (Secovi) e mestranda em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP).

  • é advogado, membro do Conselho Jurídico do Secovi/SP e do Sinduscon/SP, membro do Conselho de Administração do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim) e professor do Curso MBA Tecnologia e Gestão da Produção de Edifícios da POLI/USP.

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