Opinião

PL 2.067/21 e a cláusula de diversidade racial nos contratos públicos

Autor

  • Fabio Paulo Reis de Santana

    é professor de cursos de pós-graduação doutorando em Direito pela PUC-SP presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB e procurador do município de São Paulo.

14 de maio de 2023, 17h17

A reparação da maior tragédia que assolou a história do nosso país, ao longo de mais de 300 anos de exploração forçada, acompanhada, posteriormente, da ausência de políticas públicas que conferissem o mínimo de dignidade à população negra deixada à margem da sociedade, exige um comprometimento visceral do Estado brasileiro, não apenas com a erradicação de práticas racistas, mas sobretudo com o estímulo à diversidade racial e à conduta antirracista em todas as formas de atuação estatal.

Expressões do compromisso com o combate ao racismo, as Leis 12.711/2012 e 12.990/2014 garantem a reserva de vagas para ingresso em universidades e concursos públicos federais, respectivamente. Porém, não é suficiente.

Não basta o compromisso do Estado brasileiro com a sua própria estrutura administrativa — seja nos equipamentos públicos, seja nos cargos públicos — é preciso que haja o exercício da função promocional do Direito [1], estimulando o comportamento antidiscriminatório nas empresas privadas e instituições sem fins lucrativos que contratam com o poder público, e que, portanto, recebem verbas públicas.

Nesse sentido, o Projeto de Lei 2.067/2021, que tramita perante a Câmara dos Deputados, já aprovado pela Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial, vem, em boa hora, promovendo alterações na nova Lei Geral de Licitações e Contratos (Lei 14.133/2021), para "permitir que o edital exija que o contratado destine um percentual mínimo da mão de obra responsável pelo objeto da contratação a pessoas negras e torna cláusula necessária nos contratos de serviços de execução por terceiros o compromisso de promoção da igualdade racial pelo contratado e a reserva de pelo menos 30% (trinta por cento) dos postos de trabalho a empregados negros" (artigo 1°, do PL 2.067/2021).

Ocorre que, sobre os contratos de terceirização na administração pública, o artigo 48, da nova Lei 14.133/2021, estabelece que "poderão ser objeto de execução por terceiros as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituam área de competência legal do órgão ou da entidade […]".

Assim, o PL 2.067/2021, a despeito de traduzir importante avanço no comportamento antirracista do Estado brasileiro no tema das contratações públicas, acabou cingindo-se às atividades acessórias da administração, deixando de promover também conquistas no estímulo à diversidade nas posições com poder de decisão dentro das empresas e das instituições que contratam com o poder público.

Além disso, relegou à mera discricionaridade do administrador local o compromisso de reparação histórica da exploração forçada de pessoas traficadas do continente africano, a qual constituiu as bases de organização das relações sociais, políticas e econômicas da sociedade brasileira — ao que a doutrina abalizada costuma denominar de racismo estrutural [2] —, cuja observância deveria decorrer de uma imposição estatal aos entes federativos, em razão de política pública do Estado brasileiro.

Toda e qualquer atuação estatal, inclusive as contratações públicas, somente se justifica, sob pena de inconstitucionalidade, quando em consonância com os objetivos da República, insculpidos nos incisos do artigo 3°, da Constituição, quais sejam, "construir uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I); garantir o desenvolvimento nacional (inciso II); erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (inciso III); e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV)".

Ademais, a Constituição — expressão das escolhas mais fundamentais da sociedade brasileira — definiu, no artigo 4°, inciso VIII, o "repúdio ao racismo" como um princípio que deve reger as relações internacionais, além de capitular a prática de racismo como crime imprescritível e inafiançável, sujeito à pena de reclusão, nos termos do artigo 5°, inciso XLII.

Assim, tendo em vista que o PL 2.067/2021 buscou estabelecer um mero requisito de habilitação de empresas e instituições para as contratações públicas, e não uma obrigatoriedade geral de reserva de cargos à iniciativa privada, poderia ter avançado mais na disciplina da cláusula de diversidade racial nos contratos públicos.

O PL 2.067/2021 poderia instituir, por exemplo, os requisitos previstos no seu artigo 1°, quais sejam, "o compromisso de promoção da igualdade racial pelo contratado e a reserva de pelo menos 30% dos postos de trabalho a empregados negros", como um critério de desempate nas contratações em geral; ou, ainda, estabelecer a obrigatoriedade de licitações exclusivas para empresas com determinado percentual mínimo de postos de trabalho ocupados por pessoas negras; dentre outras soluções possíveis [3].

Portanto, faz-se mister reconhecer que o PL 2.067/2021, embora represente uma significativa contribuição no combate à discriminação racial, pode se valer das ferramentas à disposição do direito administrativo para oferecer contribuições ainda mais maiores à disciplina legal da cláusula de diversidade racial nos contratos públicos.

 


[1] BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Revisão técnica de Orlando Seixas Bechara, Renata Nagamine. Barueri, SP: Manole, 2007. p. 71.

[2] ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2021. p. 50.

[3] Conferir palestra do autor intitulada A cláusula de diversidade nos contratos públicos ministrada no 2º Congresso Brasileiro de Direito Público. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8RpvJZjiIEI

Autores

  • é advogado, doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB/SP e membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB.

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