Opinião

Avanço tecnológico e as mudanças nas relações trabalhistas e no Direito

Autor

  • Nelson Mannrich

    é advogado sócio do escritório Mannrich e Vasconcelos professor titular da Universidade de São Paulo (aposentado) oresidente da Academia Iberoamericana de Direito do Trabalho e membro e presidente honorário da Academia Brasileira de Direito do Trabalho (cadeira nº 49).

13 de maio de 2023, 6h08

O mercado de trabalho sofreu grandes transformações. Até a década de 1970, as relações eram baseadas no modelo industrial. O trabalho era presencial, em tempo integral e por prazo indeterminado, mediante subordinação direta e pessoal, submetendo-se o empregado às ordens de um único empregador. O Direito do Trabalho e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foram estruturados nesse ecossistema industrial, com viés paternalista, de face autoritária.

O avanço tecnológico, impulsionado pela Quarta Revolução Industrial, modificou profundamente o mundo do trabalho. Os serviços são prestados em regime de teletrabalho e em plataformas digitais, em horários flexíveis. Existem contratos de franquia, prestação de serviços por pessoas jurídicas (PJs), além da própria terceirização.

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A dicotomia "empregado x autônomo" perdeu importância, surgindo novas sinalizações de trabalho com lógicas diferentes. Esses novos arranjos, com cada vez maior especialidade, desafiam o legislador e os tribunais a apreender as novas realidades sociais, econômicas, tecnológicas, políticas e culturais, provocando o Direito do Trabalho a continuar desempenhando seu papel com eficácia.

Ocorreram importantes mudanças legislativas. A reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) alterou diversos paradigmas. Foi aprovado o marco legal da terceirização (Lei nº 6.019/74, artigo 4º-A), superando-se antiga orientação do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que engessava as relações de trabalho. Foi regulamentado o teletrabalho (CLT, artigo 75-A e ss). Deu-se novo impulso à negociação coletiva, ao vedar a ultratividade da norma coletiva (CLT, artigo 614, §3º), sendo melhor regulada a prevalência do negociado em face do legislado em determinadas matérias (CLT, artigo 611-A).

Outra mudança bem-vinda foi a Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), que limitou o intervencionismo estatal, prestigiou a livre iniciativa e reconheceu a liberdade como garantia, no exercício de atividades econômicas.

No Brasil, apesar dos apelos de necessárias mudanças, foi mantida legislação protecionista e intervencionista, escudo de resistência a mudanças. A Justiça do Trabalho passa a valorizar mais as novas modalidades contratuais, em especial de prestação de serviços, apesar de resistências, como se todo trabalhador ainda fosse hipossuficiente ou necessitasse do aparato protetor da CLT. Para determinada ala mais conservadora, continua-se presumindo que qualquer serviço prestado é subordinado e tem natureza empregatícia.

Há novas relações entre o Direito do Trabalho e o Direito Civil, no que se refere à autonomia individual dos contratantes, à luz da Teoria dos Atos Próprios. Apesar disso, parece que o princípio de proteção não mereceu ainda seu indispensável ressignificado. Ora, tal princípio busca concretizar a igualdade material, conferindo tratamento desigual aos desiguais, na medida das desigualdades.

Existem trabalhadores aos quais não se aplica o mesmo grau de proteção conferido aos hipossuficientes. A aplicação do princípio de proteção, de forma indistinta, pode resultar em graves injustiças.

A própria reforma trabalhista acabou reconhecendo que nem todo trabalhador é hipossuficiente. Criou a figura do trabalhador hipersuficiente e reconheceu sua capacidade para praticar determinados atos, antes vedados expressamente.

As recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) dão novo alento, permitindo um olhar voltado ao futuro — e não ao passado. Nos julgamentos do RE 958.252 (Tema 725, de Repercussão Geral) e da ADPF 324, reconheceu a constitucionalidade da terceirização irrestrita. Mesmo porque, como ficou assentado, nunca houve vedação legal para se terceirizar atividadefim.

Já no julgamento da ADC 66, o STF ratificou a constitucionalidade do artigo 129, da Lei 11.196/2005, ao legitimar a prestação de serviços intelectuais sob as regras fiscais e previdenciárias aplicáveis às pessoas jurídicas.

Como se vê, a recente jurisprudência do STF aponta verdadeira mudança paradigmática. Se antes os tribunais consideravam contratações sem vínculo de emprego como presumidamente fraudulentas — salvo prova em contrário —, agora inverte-se a dinâmica interpretativa. Em vez de presumir-se fraude, deve ser presumida a validade da pactuação civil, afastando-a apenas quando comprovadas a nulidade e a incidência dos requisitos ensejadores do reconhecimento de vínculo empregatício.

Os julgados mencionados revalorizam o princípio da boa-fé contratual nas relações trabalhistas. Busca-se, com essa mudança de paradigma, vedar comportamentos contraditórios de trabalhadores que se beneficiam de vantagens inerentes ao contrato civil (auferir renda mais alta, incidência de menores alíquotas de imposto de renda, flexibilidade de horários e condições de trabalho), para depois pleitearem o reconhecimento do vínculo de emprego, com desprezo à boa-fé.

Essas novas diretrizes apenas atestam a nova lógica das relações de trabalho. O rápido avanço tecnológico desafia todos quantos pensam o Direito do Trabalho. O legislador e a própria Corte Constitucional estão atentos e sensíveis a estas mudanças. Eventuais resistências, que insistem em enquadrar relações civis e comerciais no ecossistema celetista, perdem espaço perante a jurisprudência vinculante do STF.

Autores

  • é mestre, doutor e livre-docente em Direito pela USP, advogado sócio do escritório Mannrich e Vasconcelos, professor titular de Direito do Trabalho da USP (aposentado), membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e presidente da Academia Iberoamericana de Direito do Trabalho.

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