Opinião

Dia do Trabalho: o mercado do século 21, Britney Spears e as novas tecnologias

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1 de maio de 2023, 6h05

Neste 1º de Maio, celebramos mais um Dia do Trabalho, relembrando os conflitos e manifestações ocorridos ainda no século 19, mais precisamente em 1886, em Chicago. Eram tempos agitados. Sopravam os mais significativos e turbulentos ventos da Revolução Industrial, reconfigurando o mundo como até então se conhecia. Nessa época, "luta de classes" não era apenas uma expressão, como muitos fazem supor hoje em dia. Era a cotidianidade de todo mundo, não importava o lado da trincheira. Empregados e empregadores respiravam, com pretensões conflitantes, claro, o mesmo ar.

Por aqui, há quem fale na data-símbolo da luta por direitos trabalhistas e melhores condições laborais ainda no século 19, tal qual em Chicago. Mas o certo mesmo é que somente em 1924 o presidente Arthur Bernardes reservou o 1º de Maio como o Dia do Trabalho no Brasil. De lá para cá, década a década, mais que um bom dia para relaxar e ficar em casa, a data tem sido marcada por imensas manifestações organizadas por sindicatos e outros grupos representativos da classe trabalhadora, principalmente do operariado urbano.

Quem gosta de manter um olho sempre atento no retrovisor da História, sabe que essas mesmas manifestações não apenas reivindicavam melhores condições de trabalho, como já se fazia há mais de um século, como, ainda, evidenciavam — e com razão — um injusto sistema distributivo da riqueza gerada com o suor do próprio rosto. Em miúdos, essas mesmas manifestações faziam lembrar – ainda fazem, na verdade – uma já enraizada exploração da força de trabalho, num global arranjo produtivo, conhecido por todos nós.

Pois bem. Diante disso, duas são as provocações feitas aos leitores e às leitoras, nesta data tão simbólica. A primeira delas é a que interroga pelo futuro dessas mesmas circunstâncias. Em outras palavras, o que nos perguntamos — e compartilhamos com vocês — é se essas mesmas agendas permanecem atuais, ou se, com o passar dos anos, os "explorados no mundo do trabalho" vêm sendo substituídos paulatinamente pelos "desnecessários no sistema produtivo".

A segunda, bem mais dramática, é: se a resposta à primeira questão é afirmativa, como vamos reorganizar nossa vida, se sustentamos nossa cotidianidade com um trabalho que, vejam só, tende a desaparecer?

Embora o tom da discussão não seja inédito, parece haver novos ingredientes nesse intrincado quebra-cabeças, sobre a forma como reproduzimos nossa vida. Se desde a Revolução Industrial sustentamos nosso dia a dia com o binômio emprego-trabalho, o século 21 parece trazer, com suas "modernitudes", grandes novidades. Sim. Desta vez, há algo de novo no front.

Como propõe o autor israelense Yuval Noah Harari, autor, entre outras obras, do bestseller "Sapiens", a reviravolta (que está por vir) no mercado está por trás da invasão da IA (inteligência artificial) em nossa cotidianidade. Máquinas — ou melhor, "inteligências" — tenderiam a substituir humanos em uma série de funções laborais. E engana-se quem pensa, segundo ele, que a tecnologia sai na frente, na fila do emprego, apenas em serviços, digamos, mais braçais ou mecânicos. Da medicina ao mercado financeiro, passando pelas carreiras jurídicas, a IA tende a conquistar muitos postos de trabalho, total ou parcialmente, no futuro. Inclusive entre artistas.

Parece loucura? Parece. Mas segundo Yuval, "se a beleza está, na verdade, nos ouvidos de quem ouve, e se o cliente tem sempre razão, então os algoritmos biométricos têm a oportunidade de produzir a melhor arte da história". E sem muito esforço. Afinal, "para entrar no mercado de arte e substituir muitos compositores e intérpretes, os algoritmos não teriam de começar superando Tchaikovsky. Bastaria que fossem melhores que Britney Spears".

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A cantora americana Britney Spears
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Seja como for, não apenas a a estrela pop americana estaria "ameaçada", mas todos nós. A vantagem competitiva das novas tecnologias em relação a humanos não estaria (apenas) sedimentada no bom alinhamento com o discurso contrário a direitos trabalhistas e "outros inconvenientes" nas relações entre empregado e empregador, mas principalmente na identificação de padrões. Sim. Combinada em rede, essa espécie de "intuição algorítmica em massa" daria uma grande vantagem sobre os humanos no mercado de trabalho, não apenas quantitativa, mas qualitativamente. Isso significa que a automação não faria apenas "mais e mais rápido". Faria "mais, mais rápido e melhor".

Colocadas nesses termos, essas questões todas, claro, atualizam as discussões debatidas desde a invenção da máquina a vapor. O ponto não é mais se determinadas engenhocas facilitadoras poderão legar uma vida mais lúdica aos humanos — que deixarão o trabalho com as máquinas e ficarão tão-somente com a distribuição de riquezas — como um dia, utopicamente, se imaginou. Essa hipótese romantizada está há tempos abandonada. O ponto, agora, é: o futuro está substituindo os "explorados" das manifestações típicas de 1º de Maio pelos "desnecessários" do século 21?

Mais uma vez, a discussão não é nova. Sempre que as cíclicas crises do capitalismo abalam o mercado, não faltam aqueles a denunciar justamente a ausência das condições para, com autonomia, sustentar e dirigir a própria vida, no liberalizante discurso que nos encaixa, de acordo com nossos méritos e capacidades, num determinado espaço no mundo do trabalho. Como o caráter cíclico das crises parece ganhar um contorno permanente, não se trata mais de encontrar o lugar certo para encaixar a peça certa. Na verdade, não há mais lugares. Os postos de trabalho — já escassos — ficarão cada vez mais rarefeitos com as "inteligências" que vieram e virão, claro, para ficar. O caminho parece sem volta. A automação não é transitória.

O mundo como conhecemos será reconfigurado?

É possível. Se reproduzimos nossas vidas com emprego-trabalho, e direta ou indiretamente diluímos os riscos da vida contemporânea através dele (pagando impostos sobre a renda ou o consumo decorrentes), o futuro de uma série de direitos sociais pode estar, também, em xeque. Se a passagem do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro impôs graves consequências ao mundo dos empregos — como não de hoje já se vê —, a adição da inteligência artificial às fórmulas do sistema produtivo tende, inclusive, à anulação de determinadas agendas políitico-ideológicas, como a que propõe, desde Marx, traduzir o poder econômico do proletariado em poder político.

Na verdade, se no futuro comemorarmos o "Dia do Trabalho do Robô", mais que isso, ela colapsará a vida como a conhecemos. Por isso, os leitores e as leitoras mais atentos já devem ter percebido que, no fundo, a discussão é paradigmática, e envolve uma série de arestas éticas e morais. No limite, todos esses argumentos dialogam com a função social do trabalho, e não exatamente com a capacidade de substituição da mão humana pela máquina. É difícil imaginar o próximo lance no tabuleiro da História e estamos longe da pretensão de tentar adivinhá-lo. Mas o prognóstico não é favorável.

Precisaremos reorganizar nossa vida com projetos de renda mínima universal? Se sim, quem pagará a conta? Manifestações em 1º de Maio serão nostálgicas coisas do passado? Formaremos equipes de trabalho híbridas, combinando Inteligência Artificial e humanos? As transformações no mundo do trabalho farão — de sólidas carreiras — transitoriedades líquidas? Se sim, como sobreviveremos nas transições cada vez mais constantes? Como sustentaremos programas de bem-estar social? Enfim, qual o futuro do trabalho? As questões levantadas são inúmeras. E estão em aberto. A ver. Que o futuro, enfim, nos diga algo sobre tudo isso.

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