Opinião

O diálogo das cortes e o direito à propriedade comunal indígena

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30 de junho de 2023, 15h22

Em atualização dos dados da população indígena no Brasil, o IBGE informou que a coleta de dados do Censo Demográfico já registra em todo o país 1.652.876 pessoas indígenas até 4/3/2023 [1], número preliminar, pois ainda haverá o tratamento estatístico posterior, podendo crescer até a divulgação do resultado final.

No último censo, de 2010, as comunidades indígenas somaram mais de 800 mil pessoas indígenas [2], o que denota o aumento significativo da população identificada.

Diante dos números, o direito à propriedade comunal da terra indígena e o necessário diálogo das cortes ganham ainda mais relevo, especialmente com a iminência da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o marco temporal indígena (RE 1.017.365).

Nas palavras do ministro Menezes Direito no voto proferido na Pet 3.388 (caso Raposa Serra do Sol), "não há índio sem terra. A relação é marca característica da essência indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra".

Cuida-se, assim, não só da proteção individual da terra indígena, mas da constatação do direito comunal, ancestral e coletivo dos povos indígenas sobre a terra habitada.

Nesse sentido, no Caso Comunidade Moiawana vs. Suriname, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) ressaltou que, para tais povos, o nexo com o território ancestral não é meramente uma questão de posse e produção, mas sim um elemento material e espiritual do qual devem gozar plenamente, "(…) inclusive para preservar seu legado cultural e transmiti-lo ás gerações futuras" (Exceções preliminares, mérito, reparações e custas, § 131) [3].

A terra não é apenas o meio de subsistência, mas uma expressão cultural e espiritual.

A própria CorteIDH, no Caso Awas Tingui vs. Nicarágua, decidiu que o artigo 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos protege, além do direito à propriedade privada, também a propriedade comunal dos povos indígenas em suas peculiaridades (Mérito, reparações e custas, §148).

Esta interpretação da CorteIDH confere o direito de propriedade ao povo indígena, com todas as suas repercussões jurídicas, identificando-a enquanto vínculo material e espiritual pertencente à coletividade indígena, em evidente contradição com a decisão do STF no paradigmático caso Raposa Serra do Sol.

Isso porque o mero usufruto exclusivo das terras indígenas reconhecido pelo corte brasileira no Raposa Serra do Sol, em conjunto com as diversas condicionantes ao pleno exercício da propriedade fixadas no julgado, destoa da jurisprudência da corte interamericana.

De fato, enquanto a Corte IDH possui jurisprudência consolidada alinhada à Teoria do Indigenato, que propõe que os povos indígenas têm o direito congênito, imemorial à terra, o Supremo adotou a Teoria do marco temporal no caso Raposa Serra do Sol, pela qual as terras indígenas são aquelas por eles ocupadas na data da promulgação da Constituição de 1988, após interpretação dos artigos 206 e 20, XI, ambos da Carta Magna, os quais conferem a propriedade da terra indígena à União.

Repercute, aqui, o Caso Xukuru vs. Brasil, primeiro precedente da jurisdição contenciosa da CorteIDH envolvendo comunidades indígenas brasileiras, em que este tribunal constatou a violação do direito à propriedade coletiva e à integridade pessoal do povo Indígena Xukuru.

Em consequência da demora de mais de 16 anos, entre 1989 e 2005, no processo administrativo de reconhecimento, titulação, demarcação e delimitação de suas terras e territórios ancestrais, entre outros motivos, a CorteIDH reconheceu o direito de propriedade coletiva do povo Xukuru, compactuando com a Teoria do Indigenato [4].

Outro fator discrepante entre as decisões das cortes antes referidas diz respeito à necessidade de consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas, impactando sobremaneira no direito comunal da terra.

Segundo a corte brasileira, no julgamento dos embargos declaratórios do caso Raposa Serra do Sol, "o direito de prévia consulta às comunidades indígenas deve ceder diante de questões estratégicas, como a defesa nacional, soberania ou a proteção ambiental, que podem prescindir de prévia comunicação a quem quer que seja, incluídas as comunidades indígenas" (Pet. 3.388 ED, relator ministro Roberto Barroso, Plenário, 23/10/2013). 

Ignorou-se, assim, a jurisprudência consolidada da Corte IDH, sustentada em vários julgados, tal como no caso Povo Saramaka vs. Suriname, no qual fincou-se a obrigatoriedade da consulta prévia, livre e informada acerca de qualquer política pública que possa afetar os membros da comunidade.

Nessa perspectiva, a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), incorporada pelo Brasil por meio do Decreto 5.051/2004 e que possui status de norma supralegal, corrobora a necessidade de consulta com as características antes mencionadas, incluindo ainda a exigência de seja realizada de boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias.

Ao interpretá-la no caso Povo Indígena Kichwa Sarayaku vs. Equador, a CorteIDH, considerando que pode utilizar qualquer tratado internacional incidente no nosso continente, ainda que o Estado não a tenha ratificado, utilizou a Convenção 169 da OIT como vetor hermenêutico da Convenção Americana de Direitos Humanos, reconhecendo que o resultado da consulta possui caráter vinculante ao Estado.

Noutro vértice, o STF, também no caso Raposa Serra do Sol, entendeu que a consulta não é vinculante, flexibilizando os direitos indígenas, sobretudo a propriedade comunal da terra.

Apontados os conflitos das cortes com foco na propriedade comunal da terra indígena, torna-se evidente a necessidade de compatibilização entre o resultado do controle de convencionalidade nacional com o decidido no controle de convencionalidade internacional, conforme preceitua o doutrinador André Carvalho de Ramos na criação do Diálogo das Cortes.

Segundo o ilustre autor, tendo em vista que o Brasil adotou diversos diplomas internacionais vinculantes, reconhecendo inclusive a jurisdição obrigatória e vinculante da CorteIDH, "não seria razoável, por exemplo, que, ao julgar determinado artigo da Convenção Americana de Direitos Humanos, o STF optasse por interpretação não acolhida pela CorteIDH, abrindo a possibilidade de eventual sentença desta Corte contra o Brasil" [5].

Busca-se, assim, que a interpretação das normas internacionais pelos tribunais brasileiros, tal como o direito à propriedade previsto no artigo 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos, estejam em consonância com a jurisprudência da CorteIDH, ainda que não se possa obrigar os juízes nacionais ao uso de referido diálogo.

Sendo insuficiente ou inexiste tal expediente, André Ramos Carvalho propõe subsidiariamente a Teoria do Duplo Crivo de Direitos Humanos, ou seja, a submissão do ato estatal ao crivo do controle de constitucionalidade nacional e do controle de convencionalidade internacional, de tal modo que, não superadas as duas garantias, deve ser refutado.

Respeitas essas balizas, a discussão a respeito do direito à propriedade comunal da terra indígena, com a repercussão atinente à adoção da Teoria do Indigenato ou da Teoria do Fato Indígena, toma novo viés, tendo em vista a pacífica jurisprudência da CorteIDH referente à interpretação ampliativa do artigo 21 da Convenção Americana dos Direitos Humanos.

A aplicação da Teoria do Indigenato, portanto, constitui uma consequência lógica da adesão do Brasil à jurisdição contenciosa da CorteIDH, conforme decido no Caso Xukuru vs. Brasil, garantindo o direito à propriedade comunal da terra indígena, com a consequente imposição ao Estado da demarcação das terras ainda não identificadas e delimitadas, e respeitando o direito de consulta livre, prévia e informada da população indígena, ainda que o Estado seja obrigado a indenizar eventuais proprietários de boa-fé sobre o valor total do imóvel, não apenas sobre as benfeitorias.  

Essa consequência lógica seria aplicável ainda que fosse necessária a alteração da Constituição de 1988, de modo a conferir a propriedade das terras indígenas à população indígena, e não o mero usufruto exclusivo hoje estabelecido.

Nessa linha, no caso a Última Tentação de Cristo (Olmedo Bustus e Outros vs. Chile), o Estado Chileno foi responsabilizado pela CorteIDH mesmo agindo com fundamento em uma norma constitucional editada pelo poder constituinte originário.

A decisão do tribunal ordenou a reforma da Constituição Chilena, o que posteriormente de fato aconteceu.

Na lição do professor Caio Paiva, "(…) para o Direito Internacional, não há importância se a norma é constitucional, infraconstitucional ou até mesmo um ato administrativo, já que o direito interno é visto como mero fato. Logo, nem mesmo as normas constitucionais oriundas do poder constituinte originário servem como excludente de responsabilidade internacional por violação aos direitos humanos" [6].

Dessa forma, considerando o número crescente da população indígena no país e a proximidade da decisão do STF acerca do marco temporal indígena, impõe-se a reflexão sobre a premente necessidade do diálogo das cortes, respeitando o direito à propriedade comunal e à consulta da população indígena já consagrados no âmbito da CorteIDH, sob pena de responsabilização internacional.

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Referência Bibliográfica
Caio Cezar, Paiva. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos/ Caio Cezar Paiva, Thimotie Aragon Heemann, 2 ed. – Belo Horizonte CEI, 2017

Ramos, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos/André de Ramos Carvalho – 9. Ed – São Paulo: SaraivaJur, 2022

Petição 3.388-4 RORAIMA, STF – Caso Raposa Serra do Sol

Petição 3.388 ED, relator ministro Roberto Barroso, Plenário, 23/10/2013

Recurso Extraordinário (RE) 1017365, STF

https://www.ibge.gov.br/novo-portal-destaques/36595-com-a-coleta-concluida-em-tis-yanomamis-censo-ja-registra-1-652-876-pessoas-indigenas-em-todo-o-pais.html. Acesso em 15/06/2023.

https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2022-02/ultimo-censo-do-ibge-registrou-quase-900-mil-indigenas-no-pais-dados-serao-atualizados-em-2022#:~:text=%C3%9Altimo%20censo%20do%20IBGE%20registrou,Funda%C3%A7%C3%A3o%20Nacional%20dos%20Povos%20Ind%C3%ADgenas. Acesso em 15/06/2023.

 


[3] Caio Cezar, Paiva. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos/ Caio Cezar Paiva, thimotie Aragon Heemann, 2 ed. – Belo Horizonte CEI, 2017.

[4] Ramos, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos/André de Ramos Carvalho – 9. Ed – São Paulo: SaraivaJur, 2022.

[5] Ramos, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos/André de Ramos Carvalho – 9. Ed – São Paulo: SaraivaJur, 2022.

[6]   Caio Cezar, Paiva. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos/ Caio Cezar Paiva, thimotie Aragon Heemann, 2 ed. – Belo Horizonte CEI, 2017.

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