Opinião

Considerações sobre a coisa julgada no Direito Administrativo brasileiro

Autor

  • João Luiz Martins Teixeira Soares

    é advogado mestrando em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pelo Centro Universitário de Bauru (Ceub) — ITE/Bauru (SP) e pós-graduando em Direito Público Aplicado pela Escola Brasileira de Direito (Ebradi).

30 de junho de 2023, 9h20

Pode-se dizer que o Direito Administrativo surgiu por volta de 1819, idealizado pela Revolução Francesa, que foi o ápice da luta contra o absolutismo autoritário.

Com a adoção da teoria da divisão dos poderes, idealizada por Montesquieu, o Estado francês teve as suas principais funções tripartidas entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário: poderes harmônicos entre si, controlados uns pelos outros, conforme sistema de freios e contrapesos.

Conforme Di Pietro leciona:

"a formação do Direito Administrativo, como ramo autônomo, teve início, juntamente com o direito constitucional e outros ramos do direito público, a partir do momento em que começou a desenvolver-se  já na fase do Estado Moderno  o conceito de Estado de Direito, estruturado sobre o princípio da legalidade (em decorrência do qual até mesmo os governantes se submetem à lei, em especial à lei fundamental que é a Constituição) e sobre o princípio da separação de poderes, que tem por objetivo assegurar a proteção dos direitos individuais, não apenas nas relações entre particulares, mas também entre estes e o Estado". (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella Direito administrativo. 33. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020. E-book).

Mário G. Losano sustenta que o Direito Administrativo é produto exclusivo da situação gerada pela Revolução Francesa, só existindo nos países que adotaram os princípios por ela defendidos.

O marco definitivo do Direito Administrativo, para alguns autores, foi o denominado caso Blanco, ocorrido na França em 1873. No julgamento desse caso, o Tribunal de Conflitos decidiu pela responsabilidade civil extracontratual do Estado, sem se cogitar da culpa do agente público (FARIA, 2018).

O Direito administrativo pode ser conceituado como o "conjunto harmônico de princípios jurídicos que regem os órgãos, os agentes e as atividades públicas tendentes a realizar concreta, direta e imediatamente os fins desejados pelo Estado" (MEIRELLES, 2016).

Celso Antônio Bandeira de Melo, por sua vez, define o direito administrativo como "o ramo do Direito Público que disciplina o exercício da função administrativa, bem como pessoas e órgãos que a desempenham" [1].

Assim, observa-se que o Direito Administrativo visa regular a atividade administrativa regida pelo Estado, tendo como objetos as relações internas à administração pública, as relações entre a administração e os administrados, bem como, as atividades da administração pública exercidas por particulares [2].

O Direito administrativo Brasileiro é regulado por diversos princípios, sendo os mais importantes: Supremacia do Interesse Público; Indisponibilidade do interesse público; Legalidade; Impessoalidade; Moralidade; Publicidade e Eficiência.

O sistema administrativo, por sua vbez, pode ser conceituado como o regime adotado pelo Estado para a realização do controle dos atos administrativos ilegais ou ilegítimos que vierem a ser praticados pelo poder público [3].

Dois são os sistemas administrativos existentes, conforme se classifica:

a) Sistema inglês: O sistema inglês, ou de unicidade de jurisdição, é aquele em que todos os litígios  administrativos ou que envolvam interesses exclusivamente privados – podem ser levados ao Poder Judiciário, único que dispõe de competência para dizer o direito aplicável aos casos litigiosos, de forma definitiva, com força da chamada coisa julgada. Diz-se que somente o Poder Judiciário tem jurisdição, em sentido próprio.

b) Sistema Francês: O sistema francês, ou de dualidade de jurisdição, ou sistema do contencioso administrativo é aquele em que se veda o conhecimento pelo Poder Judiciário de atos da administração pública, ficando estes sujeitos à chamada jurisdição especial do contencioso administrativo, formada por tribunais de índole administrativa. Nesse sistema há, portanto, uma dualidade de jurisdição: a jurisdição administrativa (formada pelos tribunais de natureza administrativa, com plena jurisdição em matéria administrativa) e a jurisdição comum (formada pelos órgãos do Poder Judiciário, com a competência de resolver os demais litígios). (ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Administrativo Descomplicado. 27. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019, página 07 e 08).

Ou seja, no sistema inglês, qualquer litígio, inclusive os de natureza administrativa que já tenham sido concluídos podem ser levados às portas do Poder Judiciário, tendo em vista que este é o único competente para dizer o direito.

Já no sistema francês, os litígios de natureza administrativa que tenham sido resolvidos e já julgados, não podem ser analisados pelo poder judiciário, uma vez que a competência para se julgar o contencioso administrativo é exclusiva da jurisdição administrativa.

Em síntese, no sistema francês o contencioso administrativo possui capacidade para se produzir coisa julgada impedindo uma nova análise ou um novo julgamento pelo poder judiciário, ao contrário do sistema inglês, em que o único capaz de produzir a coisa julgada é o Judiciário.

O motivo pelo qual o sistema francês confere tal importância à administração pública é porque, conforme já dito, o surgimento do direito administrativo teve grande influência dos ideais da Revolução Francesa.

Da coisa julgada administrativa
O Brasil adotou o sistema administrativo inglês, por essa razão que todos os litígios podem ser resolvidos pelo Poder Judiciário, ao qual é atribuída a função de dizer, em caráter definitivo, o direito aplicável aos casos submetidos a sua apreciação [4].

Isso se dá em razão do princípio da inafastabilidade de jurisdição ou da unicidade de jurisdição, previsto no artigo , inciso XXXV da Constituição Federal: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

Aliás, em decorrência desse princípio, não é necessário sequer aguardar o esgotamento da via administrativa para ajuizamento de medida judicial, ou seja, não é necessário aguardar decisão administrativa em definitivo para o ingresso em juízo, embora seja recomendável aguardar o esgotamento da referida via administrativa, não pode o judiciário se negar a apreciar eventual demanda que lese ou ameace direito [5].

Conforme se explica:

No Brasil, temos órgãos administrativos que decidem litígios de natureza administrativa. A diferença é que, no sistema de jurisdição única, como é o nosso, as decisões dos órgãos administrativos não são dotadas da força e da definitividade que caracterizam as decisões do Poder Judiciário. Os órgãos administrativos solucionam litígios dessa natureza, mas as suas decisões não fazem coisa julgada em sentido próprio, ficando sujeitas à revisão pelo Poder Judiciário – desde que este seja provocado. (ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Administrativo Descomplicado. 27. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019, página 09).

Ou seja, eventual processo administrativo, pode ser analisado novamente pelo Poder Judiciário, mesmo que haja decisão administrativa que tenha analisado totalmente o conteúdo da referida demanda, isso porque, somente a decisão final proferida pelo Poder Judiciário terminará definitivamente a questão, fazendo a denominada coisa julgada e impedindo que esse mesmo assunto seja discutido outra vez no âmbito de qualquer Poder.

A definição de coisa julgada pode ser definida pelo caput do artigo 505 do Código de Processo Civil: "Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide…".

Ou seja, tendo o poder judiciário decidido a respeito de determinada demanda, com o esgotamento das vias recursais e a decisão tendo transitado em julgado, não se poderá rediscutir a mesma lide, tendo em vista que isso já foi feito.

Contudo, quando se fala em coisa julgada no Direito Administrativo é necessário verificar que ela não possui o mesmo sentido atribuído no âmbito do Direito Processual, a coisa julgada administrativa significa que um ato administrativo se tornou irretratável pela própria Administração [6].

Celso Antônio Bandeira de Mello define a coisa julgada administrativa como:

"A coisa julgada administrativa, consoante entendemos, diz respeito unicamente a situações nas quais a Administração haja decidido contenciosamente determinada questão  isto é, em que tenha formalmente assumido a posição de aplicar o Direito a um tema litigioso; portanto, também, com as implicações de um contraditório. Aliás, nisto se exibe mais uma diferença em relação à simples irrevogabilidade, que, como visto, estende-se a inúmeras outras hipóteses. Toda vez que a Administração decidir um dado assunto em última instância, de modo contencioso, ocorrerá a chamada 'coisa julgada administrativa'". (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. Página 472).

Diante disso, verifica-se que o contencioso administrativo ele produz coisa julgada administrativa, tornando assim a decisão do processo administrativo irretratável, contudo, a coisa julgada administrativa não tem força de impedir a reapreciação judicial do ato, podendo este ser anulado ou homologado por eventual decisão judiciais.

Hely Lopes Meirelles estabelece que "todo ato administrativo é revogável até que se tome irretratável para a Administração, quer por ter exaurido seus efeitos ou seus recursos, quer por ter gerado direito subjetivo para o beneficiário, interessado na sua manutenção". E essa irretratabilidade que o ato administrativo recebe é justamente a coisa julgada administrativa, mesmo que o ato possa vir a ser apreciado novamente pelo Poder Judiciário, não pode a administração pública revogar ato que esteja sob o manto da coisa julgada administrativa [7].

Basicamente os fundamentos jurídicos para a existência da coisa julgada administrativa é o mesmo fundamento que norteia a coisa julgada judicial, sendo eles: a segurança jurídica, a lealdade e a boa-fé. Além disso, é necessário que haja estabilidade das decisões administrativas e no próprio agir da administração pública, não podendo a administração ser volúvel e errática em suas decisões.


[1] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2015.

[2] Nesse sentido: Em síntese, o direito administrativo tem como objeto: a) as relações internas à administração pública entre os órgãos e entidades administrativas, uns com os outros, e entre a administração e seus agentes, estatutários e celetistas; b) as relações entre a administração e os administrados, regidas predominantemente pelo direito público ou pelo direito privado; e c) as atividades de administração pública em sentido material exercidas por particulares sob regime predominante de direito público, tais como a prestação de serviços públicos mediante contratos de concessão ou de permissão. (ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Administrativo Descomplicado. 27. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019, página 04).

[3] ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Administrativo Descomplicado. 27. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019, página 07.

[4] ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Administrativo Descomplicado. 27. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019, página 08.

[5] Nesse sentido:"no Brasil, o administrado tem a opção de resolver seus conflitos com a administração pública instaurando processos perante ela. O administrado, mesmo após instaurado um processo administrativo, pode abandoná-lo em qualquer etapa e recorrer ao Poder Judiciário para ver resolvido seu litígio. O administrado pode, ainda, em qualquer hipótese, recorrer diretamente ao Poder Judiciário quando entender que se perpetrou alguma lesão ou ameaça a direito seu. Em síntese, embora no Brasil sejam comuns processos, procedimentos, e mesmo litígios, instaurados e solucionados em âmbito administrativo, sempre que o administrado entender que houve lesão a direito seu, poderá recorrer ao Poder Judiciário, antes ou depois de esgotada a via administrativa. O Poder Judiciário, uma vez provocado, poderá confirmar o entendimento esposado pela administração, ou modificá-lo". (ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Administrativo Descomplicado. 27. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019, página 10).

[6] Nesse mesmo sentido: "… não podem ser revogados os atos vinculados, os que exauriram os seus efeitos, os meros atos administrativos, os que geraram direitos subjetivos. Não podendo ser revogados, tornam-se irretratáveis pela própria Administração, fazendo coisa julgada administrativa". (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella Direito administrativo. 33. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020. E-book)

[7] "Ato irrevogável é aquele que se tomou insuscetível de revogação (não confundir com anulação), por ter produzido seus efeitos ou gerado direito subjetivo para o beneficiário ou, ainda, por resultar de coisa julgada administrativa. Advirta-se, neste passo, que a coisa julgada administrativa só o é para a Administração, uma vez que não impede a reapreciação judicial do ato. A decisão administrativa, ainda que final, não produz coisa julgada em sentido próprio, mas opera a irretratabilidade do ato pela Administração… A tendência moderna é considerar-se a irrevogabilidade do ato administrativo como regra e a revogabilidade como exceção, para dar-se cada vez mais estabilidade às relações entre a Administração e os administrados… Em princípio, todo ato administrativo é revogável até que se tome irretratável para a Administração, quer por ter exaurido seus efeitos ou seus recursos, quer por ter gerado direito subjetivo para o beneficiário, interessado na sua manutenção". (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro / Hely Lopes Meirelles, José Emmanuel Burle Filho. – 42. ed. / atual. até a Emenda Constitucional 90, de 15.9.2015. – São Paulo : Malheiros, 2016. Página 200).

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