Opinião

Dispensa na Lei nº 14.133/2021: o que são "objetos de mesma natureza"?

Autores

  • João Paulo Forni

    é auditor federal de Controle Externo do TCU assessor de licitações e contratações da Secretaria-Geral de Administração do TCU (Segedam/TCU) mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília advogado e administrador.

  • Francismary Souza Pimenta Maciel

    é secretária de Licitações Contratos e Patrimônio do TCU mestranda no mestrado profissional em Administração Pública pelo IDP especialista em Gestão de Logística na Administração Pública e graduada em Administração.

30 de junho de 2023, 7h13

A Constituição de 1988 prevê, em seu artigo 37, XXI, que compras públicas serão realizadas mediante licitação, ressalvados os casos especificados na legislação. Do texto, infere-se que a regra geral é a licitação prévia às compras públicas, sendo as contratações diretas a exceção.

Entretanto, uma breve consulta ao painel de compras do governo federal sugere o contrário. Das 724.580 [1] compras homologadas nos anos de 2019 a 2023, 480.389 são fruto de contratação direta (dispensa e inexigibilidade), o que representa aproximadamente 67% do total.

Um dado relevante é que o total em valor financeiro associado às contratações diretas totaliza pouco mais de R$ 151 bilhões, enquanto o total das contratações homologadas é da ordem de R$ 547 bilhões. Logo, em valor financeiro, as contratações diretas representam 27% do total.

A partir dessas informações, deve-se ponderar o quão relevantes são as contratações diretas no dia a dia da administração pública, bem como impende considerar o custo do processamento desse número extraordinário de dispensas e inexigibilidades.

Das 480.389 compras homologadas decorrentes de contratação direta, pouco mais de 400 mil dizem respeito a dispensas, cujo valor total ultrapassa os R$ 80 bilhões, previstas em rol taxativo no artigo 75 da Nova Lei de Licitações e Contratos (14.133/2021).

Uma das hipóteses mais comuns de contratação direta (sem licitação) é a dispensa em razão do valor, cuja racionalidade reside no fato de que o custo do procedimento licitatório seria desarrazoado (alto) em cotejo com o (baixo) valor do bem ou serviço a ser contratado.

Grande controvérsia surge em torno do § 1º do referido artigo 75, que traça critérios a serem observados no cálculo dos limites de valor insculpidos no mesmo dispositivo — positivados visando evitar o fracionamento de despesa, que é a divisão indevida do objeto licitatório em contratações menores, ocasionando várias dispensas em razão do valor, quando seria adequada a realização de licitação abrangendo, conjuntamente, todos os bens ou serviços visados, por ultrapassarem, somados, o valor que permite a dispensa:

"Art. 75. É dispensável a licitação:
I – para contratação que envolva valores inferiores a R$ 100.000,00 (cem mil reais), no caso de obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores;
II – para contratação que envolva valores inferiores a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), no caso de outros serviços e compras; (…)
§ 1º Para fins de aferição dos valores que atendam aos limites referidos nos incisos I e II do caput deste artigo, deverão ser observados:
I – o somatório do que for despendido no exercício financeiro pela respectiva unidade gestora;
II – o somatório da despesa realizada com objetos de mesma natureza, entendidos como tais aqueles relativos a contratações no mesmo ramo de atividade."

A aludida controvérsia se relaciona à definição do que seriam "objetos de mesma natureza", que, de acordo com o dispositivo legal, são "aqueles relativos a contratações no mesmo ramo de atividade".

A IN Seges/ME 67/2021, que regulamenta a matéria no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, previa originalmente, a esse respeito, o seguinte: "Considera-se ramo de atividade a partição econômica do mercado, identificada pelo nível de subclasse da Classificação Nacional de Atividades Econômicas — Cnae".

A redação do dispositivo foi então alterada pela IN Seges/MGI 8/2023, passando a considerar "ramo de atividade a linha de fornecimento registrada pelo fornecedor quando do seu cadastramento no Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores (Sicaf), vinculada: I – à classe de materiais, utilizando o Padrão Descritivo de Materiais (PDM) do Sistema de Catalogação de Material do Governo federal; ou II – à descrição dos serviços ou das obras, constante do Sistema de Catalogação de Serviços ou de Obras do Governo federal".

Quanto à previsão anterior, que relacionava a "natureza" dos objetos licitados ao ramo de atividade tendo por parâmetro o Cnae, entendemos insuficiente e inapropriada para os fins pretendidos pelo dispositivo — evitar o fracionamento de despesas.

O Cnae é a classificação adotada oficialmente no Sistema Estatístico Nacional na produção de estatísticas por tipo de atividade econômica, sob a gestão do IBGE [2]. A lógica de sua estruturação foi concebida para finalidades econômicas, fiscais e tributárias, passando ao largo das particularidades capazes de identificar distinções e similaridades entre objetos para fins de contratação pública. Para Marçal Justen Filho, "as subclasses do Cnae podem reunir objetos e atividades correlatas que, em princípio, pertencem ao mesmo ramo de atividade. Mas nem sempre uma subclasse do Cnae implicará a identidade entre diversos objetos nela abrangidos", o que leva à conclusão de que o Cnae "não apresenta uma solução prática eficaz e satisfatória para a questão do somatório para fins de dispensa" [3].

O uso do Cnae para fins de identificação de fracionamento implicaria, ademais, um relevante custo operacional, decerto sopesado para o abandono da solução: seria necessário instituir espécie de classificação paralela ao catálogo de materiais e serviços já existente. A cada contratação seria imprescindível ao gestor identificar e relacionar o código de classificação Cnae aplicável ao objeto, bem como instituir mecanismos de registro, organização e consulta do conjunto dados. A prática, afora provavelmente ineficaz, acabaria por exigir um penoso controle.

A alternativa implementada pela IN Seges/MGI 8/2023 é, sem dúvidas, mais racional e funcional, vez que utiliza o próprio sistema de catalogação de materiais e serviços aplicado às contratações em âmbito federal. Importa, na prática, atribuir outra utilidade – significativa – à já obrigatória (e usual) escolha do código de classificação dos materiais e serviços, para fins de contratação.

Há que se reconhecer ainda, em favor dessa solução, que ela se beneficia do esforço que o governo federal tem empreendido no sentido de aperfeiçoar a padronização e de simplificar as consultas ao catálogo de materiais e de serviços, sobretudo desde 2021. É um esforço justificável. Um sistema eficiente e uniforme de identificação, codificação e catalogação dos bens e serviços a serem adquiridos, além de fornecer informações muito úteis à gestão e à transparência, tem potencial que contribuir para a própria qualidade do gasto público, por meio, por exemplo, da racionalização das especificações e da redução de ruídos junto ao mercado. O planejamento é uma das várias dimensões do processo de compra que pode e deve ser favorecida pelo uso eficiente do sistema de catalogação.

No entanto, é preciso compreender que, embora útil, o catálogo de materiais e serviços não se mostra suficiente ao específico propósito de identificação do chamado "ramo de atividade". O recurso, isoladamente, tal como a identificação do Cnae, não é capaz de evitar a nociva prática do fracionamento irregular, como pode fazer crer, em leitura apressada, a nova redação da IN Seges/ME 67/2021.

Passemos a um singelo exercício prático capaz de evidenciar essa constatação. No catálogo de materiais do governo federal [4], a Classe 7.510 é descrita como "artigos para escritório". Nessa mesma classe, no nível Padrão Descritivo de Material (PDM) podem ser encontrados produtos como "envelope" (código 19705), "caneta hidrográfica" (código 18078), "lápis preto" (código 12) e "caneta ponta porosa" (código 1590). Resta evidente que, no exemplo, o PDM não se mostraria agrupador adequado para a avaliar o ramo de atividade. Por certo não há empresas especializadas somente em canetas ou em envelopes. Também não seria razoável supor que o irregular fracionamento ocorreria somente se agrupadas indevidamente despesas em cada PDM. Ora, parece-nos inquestionável que as compras de material de escritório, em regra, podem ser feitas em conjunto, no mesmo processo, independentemente do tipo de material.

Poder-se-ia argumentar que a melhor interpretação da norma é no sentido de se considerar como identificador para fins de fracionamento, no catálogo de materiais, a classe, e não o PDM. Isso de fato resolveria, a princípio, as inconsistências suscitadas no nosso exemplo. Mas surgiriam outras. Veja-se, por exemplo, uma compra de diversos tipos de mobiliário. Identificamos pelo menos cinco classes, no catálogo, que contém itens de mobiliário: "Mobiliário para escritório" (7110), "Mobiliário, equipamentos, utensílios e suprimentos hospitalares" (6530), "Mobiliário diversos e acessórios" (7195), "Armários e estantes" (7125); "Produtos diversos não metálicos" (9390). Num eventual intuito malicioso de fracionamento, ainda que cabível a licitação, bastaria que o comprador classificasse os itens em diversas classes.

Propositadamente referimo-nos, nos exemplos, a aquisições bastante simples e corriqueiras, cujas dificuldades até poderiam ser resolvidas por um aprimoramento do catálogo, de implementação inviável a curto e médio prazos. Mas se conjetura uma miríade de situações — algumas bastante complexas — em que identificar se há ou não fracionamento irregular da despesa requererá um esforço muito mais sofisticado do que a mera classificação num sistema de catalogação. Pode inclusive haver casos em que, absolutamente coincidentes PDM ou descrição dos serviços, não há que se falar em risco de fracionamento. É o que ocorre, por exemplo, quando dois objetos, de mesma natureza e descrição, são comercializados por segmentos distintos e específicos do mercado, a justificar a compra em separado.

No fim das contas, a melhor interpretação parece apontar para considerar as referências indicadas na norma regulamentadora tão somente presunções relativas de que os objetos são do mesmo "ramo de atividade" ou da "mesma natureza" no contexto licitatório. Apenas peculiaridades dos casos concretos é que permitirão aferir, motivadamente, se é devido ou não o somatório dos valores para fins de dispensa [5].

Se o propósito do controle prescrito § 1° do artigo 75 da Lei 14.133/2021 é evitar a dispensa indevida do processo licitatório, sugerimos, adicionalmente e invariavelmente à utilização dos indicadores referenciais prescritos na IN, questionar se de fato seria possível licitar conjuntamente. Não importa se os objetos em análise pertencem à mesma subclasse do Cnae ou à mesma classe de materiais do PDM do Sistema de Catalogação de Material do governo federal. O que deve ser levado em conta, com preponderância, é a possibilidade e pertinência de licitação única para os objetos considerados. Se em tese for possível e pertinente a licitação, somam-se os valores para aferir os limites de dispensa. Se não, não cabe somá-los, mas sim considerá-los separadamente.

O raciocínio proposto alberga, de maneira subjacente, outro questionamento: são os mesmos agentes de mercado que fornecem os objetos? Se não forem, o que é ínsito à aferição da viabilidade de certame único, não há que se falar em fracionamento.

É a linha de raciocínio do seguinte trecho do voto do ministro do TCU Walton Alencar, no âmbito do Acórdão 2.157/2011-Plenário [6], analisando o inciso II, do artigo 24, da Lei nº 8.666/93, que regula a dispensa em razão do valor no contexto daquela norma:

"(…) o limite de dispensa de licitação para a realização de compras não deve estar atrelado a grupos ou a classe de despesas em gênero, mas ao próprio item ou serviço a ser contratado. Nessas condições, o órgão contratante poderia promover, por exemplo, diversas aquisições diretas para objetos de mesma natureza, uma para resmas de papel de ofício, outra para canetas, ao invés de categorizar todas essas compras em grupo mais abrangente, tais como materiais de expediente, para, assim, realizar o devido procedimento licitatório."

Em síntese, nada obstante a inegável utilidade dos critérios indicados na IN Seges/ME 67/2021, trata-se de meros parâmetros orientativos subsidiários, tal como o são as classificações orçamentárias por elemento de despesas, muito prescritas até o advento da nova lei de licitações. Afora não serem hábeis, isoladamente, a mitigar os riscos de fracionamento, podem provocar distorções de julgamento.

O bom planejamento é, também para as questões aqui discutidas, a melhor solução. E o bom planejamento não cabe em expedientes cartesianos ou demasiado simplistas; ao contrário, requer do gestor esforço aprimorado de avaliação.

 


[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratações administrativas. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 1047-1048.

[4] https://catalogo.compras.gov.br/cnbs-web/busca. Consulta realizada em 26/6/2023.

[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Op. Cit., p. 1048.

[6] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 2157/2011-Plenário. Rel. Ministro Walton Alencar. Sessão: 17.08.2011.

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  • é auditor federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (TCU), assessor de licitações e contratações da Secretaria-Geral de Administração do TCU (Segedam/TCU), mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (Ceub), advogado e administrador.

  • é secretária de Licitações, Contratos e Patrimônio do Tribunal de Contas da União (TCU), mestranda no mestrado profissional em Administração Pública pelo IDP e especialista em Gestão de Logística na Administração Pública.

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