Opinião

Regra de direito intertemporal inserida no artigo 5º da Lei nº 14.112/2020

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29 de junho de 2023, 11h24

Não é novidade que a Lei nº 14.112/2020 promoveu substanciais alterações na Lei nº 11.101/05. Muitas das modificações já fazem eco nos tribunais do país e abrem espaço para interpretações de aplicabilidade.

A análise que aqui se faz, cinge-se especificamente sobre a regra de direito intertemporal inserida na Lei nº 14.112/2020, a qual estabelece que:

"Artigo 5º Observado o disposto no artigo 14 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil) , esta Lei aplica-se de imediato aos processos pendentes.

§1º. Os dispositivos constantes dos incisos seguintes somente serão aplicáveis às falências decretadas, inclusive as decorrentes de convolação, e aos pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial ajuizados após o início da vigência desta Lei:

II – as alterações sobre a sujeição de créditos na recuperação judicial e sobre a ordem de classificação de créditos na falência, previstas, respectivamente, nos artigos 49, 83 e 84 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005".

O artigo 49 não será tratado neste texto, eis que versa sobre a sujeição de créditos na recuperação judicial. O cerne da discussão posta em debate, volta-se ao artigo 83 da lei, o qual versa sobre a ordem de classificação dos créditos sujeitos à falência.

A regra de direito intertemporal estabeleceu que as alterações promovidas na ordem de classificação dos créditos inseridas nos artigos 83 e 84 da LFRJ, serão aplicadas apenas às falências decretadas após o início de vigência da Lei n° 14.112/2020 (23/1/2021).

O ponto que, em tese, cabe interpretação de aplicabilidade do novo regramento, encontra-se na revogação do §4 e inserção do §5 do artigo 83 da LFRJ, os quais têm as seguintes redações:

"Artigo 83, §4º, da Lei nº. 11.101/2005 (dispositivo revogado): Os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários;".

"Artigo 85, §5º, da Lei nº 11.101/2005 (texto revogador): Para os fins do disposto nesta Lei, os créditos cedidos a qualquer título manterão sua natureza e classificação".

Nota-se da literalidade do dispositivo revogado que o legislador não estabeleceu se a hipótese fática imporia aos créditos trabalhistas cedidos a terceiros a perda da natureza, da classificação, ou ambas.

O legislador reformador corrigiu a imprecisão contida na norma revogada, a fim de impossibilitar a transmudação do crédito laboral cedido a terceiro, seja pela natureza ou pela classificação, nomenclaturas estas expressamente utilizadas no texto legal.

Este é o ponto fulcral da presente análise. Se o crédito trabalhista cedido a terceiro não perde mais a natureza, por força de previsão expressa, não há que se falar em reclassificação, de vez que esta decorre daquela. Ou seja, se altera-se a natureza, consequentemente, modifica-se a classificação, mas se a natureza não se troca, fatalmente, não haverá substituição de classe.

Isso importa dizer, objetivamente, que a regra de direito intertemporal em questão, não se aplica à hipótese de cessão de crédito trabalhista a terceiro.

Isso não significa que a regra de direito intertemporal não será aplicada, ao revés, a norma é de extrema importância para a nova sistemática de classificação, tendo em vista as importantes e substanciais modificações inerentes à ordem de classificação.

Cita-se, à guisa de exemplo, algumas alterações:

a) dentre os créditos concursais, 1) acabou com a classe dos créditos com privilégio especial (LRE, artigo 83, inciso IV) e com privilégio geral (LRE, artigo 83, inciso V), aglutinando-os na classe dos quirografários (LRE, artigo 83, §6º), e 2) inseriu, como nova classe (abaixo dos subordinados), os créditos por juros vencidos após decretação da falência (LRE, artigos 93, inciso IX, e 124);

b) dentre os créditos extraconcursais, 3) desmembrou a primeira classe (LRE, artigo 84, inciso I), ordenando-os em quatro distintas e novas classes (sujeitando-os, assim, a uma inédita ordem sucessiva de satisfação) (LRE, artigo 84, incisos I-A a I-E).

Verifica-se que houve diversas alterações na classificação dos créditos e havia a necessidade de estabelecer critérios para a aplicação, o que fora feito pelo legislador.

Mas não há como aplicar a regra de direito intertemporal à hipótese de cessão de crédito trabalhista a terceiro porque, neste caso, a mudança ocorreu apenas na natureza do crédito e não na classificação. O crédito trabalhista continua sendo laboral, já que a Lei estabeleceu que a alienação não implica em perda da natureza.

Vale citar, como exemplo, a doutrina pretérita às alterações do jurisconsulto e ex-juiz da 2ª Vara de Recuperações Judiciais e Falências do Foro Central da Comarca de São Paulo/SP, doutor Marcelo Barbosa Sacramone [1], eis que o jurisconsulto elucida com meridiana clareza que a cessão do crédito implicava em perda da natureza:

"A alteração da natureza do crédito se justifica, porém, em razão dos direitos dos terceiros. Ela decorre da perda do caráter alimentar do crédito em face do cessionário, que o adquire voluntariamente em razão de seu interesse pecuniário".

Verifica-se, portanto, que o mens legis do artigo 5º, §1º, II, da Lei nº 14.112/20, regra de direito intertemporal, está jungido às alterações atinentes às exclusões de classes, criações de novas classes e desmembramento de classes, eis que estas hipóteses estão subsumidas à ordem de classificação dos créditos, e não a alteração da natureza do crédito, como ocorre na cessão de crédito vinculado à falência.

E isso porque, nota-se que a regra de direito intertemporal se restringe às alterações relativas à ordem de classificação do crédito, especificadas alhures, e não se estende àquelas que dizem respeito à natureza dos créditos.

Nessa intelecção, destaca-se trecho de contemporâneo acórdão prolatado pela colenda 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que indica, com clareza, a atual situação dos créditos trabalhistas cedidos a terceiros, mesmo no contexto dos processos anteriores à Lei nº 14.112/2020:

"(…) a Lei nº 14.112/2020 revogou a previsão que alterava a classificação do crédito no caso de cessão (artigo 83, §4º, da Lei 11.101/2005), o que, tendo em vista o disposto no seu artigo 5º, tem aplicabilidade imediata (…).

Ressalta-se que a ressalva da regra de direito intertemporal se restringe à ORDEM de classificação do crédito, e não à sua natureza.

Logo, o dispositivo legal no qual se fundou o juízo de origem [artigo 83, §4º, da Lei nº 11.101/2005] não mais integra o ordenamento jurídico, sendo de aplicabilidade imediata os efeitos de sua revogação às recuperações judiciais em curso.

Nesse sentido, observo que o resultado da ADI 34244, cujo julgamento pelo Plenário do STF findou em 17.04.2021, na qual se discutia, dentre outros pontos, a (in)constitucionalidade do artigo 83, §4º, da Lei 11.101/2005, vai ao encontro do ora exposto, visto que, por maioria, a análise pela Suprema Corte restou prejudicada ante a revogação do dispositivo e sua aplicação imediata os efeitos de sua revogação às recuperações judiciais em curso". (TJ-PR. 18ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento nº 0002788- 34.2021.8.16.0000. Data do Julgamento: 11/06/2021. Trânsito em julgado: 06/08/2021).

Há de se registrar, ainda, que a manutenção da natureza do crédito beneficia diretamente o credor trabalhista, eis que aumenta a concorrência por seu crédito e proporcionalmente o preço a ser pago por ele, de modo a valorizar os créditos trabalhistas no mercado de ativos estressados.

Portanto, é certo afirmar que entendimento diverso à manutenção da natureza do crédito prejudicaria a quem Lei decidiu proteger, qual seja, o detentor de direito trabalhista.

A caminho do fim, registra-se que o Supremo Tribunal Federal, ao debruçar-se no julgamento, em 22/5/2020, do Recurso Extraordinário tombado sob o nº 631.537,  fixou tese relativa ao Tema de Repercussão Geral 361, na qual estabeleceu que crédito alimentício cedido não perde sua natureza, entendimento que se aplica, na íntegra, ao tema discutido.

O entendimento do STF se coaduna ao espírito da Lei Falitária, eis que os ministros da Suprema Corte também sopesaram que, caso houvesse a alteração da qualidade do crédito, haveria perda de interesse na sua aquisição ou diminuição de seu valor, prejudicando, assim, os credores alimentares – justamente aqueles que a Lei e a Constituição mais buscam proteger.

Para que não haja dúvidas, frisa-se que embora tal julgado faça menção a precatório de natureza alimentar, a mesma lógica se aplica a qualquer crédito trabalhista, inclusive, aos atrelados a processos de falência, tendo em vista que o precatório alimentar nada mais é, afinal, do que um crédito trabalhista contra o poder público. E, se o raciocínio se aplica aos créditos trabalhistas contra o poder público, entende-se que também deve se aplicar aos créditos trabalhistas contra particulares.

Conclui-se que o artigo 5º, §1º, II, da Lei nº 14.112/20 é expresso em limitar a aplicação deste dispositivo às alterações sobre a sujeição de créditos na recuperação judicial e sobre à ordem de classificação de créditos na falência, previstas, respectivamente, nos artigos 49, 83 e 84 da Lei nº 11.101/2005, e não sobre a natureza dos créditos, de modo que qualquer a premissa utilizada para sustentar suposta reclassificação do crédito trabalhista cedido a terceiro para a classe quirografária, por ocasião de celebração de cessão de crédito, não condiz com o texto legal e com a jurisprudência do STF.

 


[1] Sacramone, Marcelo Barbosa, Comentários à lei de recuperação de empresas e falência / Marcelo Barbosa Sacramone. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018, Pág. 330.

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