Tecnicidade v. mérito

Suprema Corte dos EUA nega a presos segunda chance para defender inocência

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26 de junho de 2023, 10h47

A Suprema Corte dos EUA decidiu que um prisioneiro federal, que já entrou com um recurso no passado, não pode contestar sua condenação pela segunda vez, mesmo que uma decisão posterior da própria corte o tenha tornado "legalmente inocente". Ou seja, a corte decidiu, por 6 votos (conservadores) a três (liberais), que um prisioneiro só tem direito a um recurso, mesmo que uma nova lei ou jurisprudência com efeito retroativo o tenha tornado inocente mais tarde. E deve continuar preso até cumprir sua sentença.

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No ano 2000, Marcus DeAngelo Jones foi condenado a 27 anos de prisão por posse ilegal de arma (ex-condenados não podem comprar e portar armas) e por fazer declarações falsas para comprá-la. No julgamento, ele sustentou que ignorava a proibição. Pensou que, ao fazer o acordo de confissão de culpa com a Promotoria, na condenação anterior, havia acertado suas contas com o estado.

Jones recorreu contra uma parte de sua sentença. E ganhou. Uma "vitória de Pirro", no entanto, porque não diminuiu o tempo de prisão, uma vez que as sentenças deveriam ser cumpridas simultaneamente, e veio a ser a razão de seu infortúnio, decretado agora pela Suprema Corte, em Jones v. Hendrix.

Jones voltou a recorrer, desta vez contra toda sua condenação, depois que a Suprema Corte tomou uma decisão, em 2019, que aparentemente deveria devolvê-lo às ruas. A corte decidiu, em Rehaif v. United States, que a Promotoria tem de provar que o réu sabia que a lei o proibia de possuir ou portar armas, para condená-lo à prisão. Isso não foi provado no julgamento de Jones. Assim, Jones e seu advogado chegaram à conclusão de que ele era "legalmente inocente".

Mas, a Suprema Corte discordou, em uma decisão de 25 páginas relatada pelo ministro Clarence Thomas, com a adesão dos outros cinco ministros conservadores e protestos das três ministras liberais, em dois votos dissidentes — um de duas páginas das ministras Sonia Sotomayor e Elena Kagan e outro de 39 páginas da ministra Ketanji Brown Jackson (KBJ), a única com experiência em Direito Penal da corte.

A decisão da maioria diz que o entendimento histórico da "cláusula de salvamento" ("saving clause") é limitado a "circunstâncias incomuns, nas quais é impossível ou impraticável para um prisioneiro obter uma tutela jurisdicional contra decisão do juiz". Tais circunstâncias "incluem situações em que a corte onde a sentença foi proferida foi dissolvida ou para a qual o prisioneiro não pode ser transportado".

O conceito da "saving clause" é, basicamente, o de que, quando uma cláusula da lei ou de contrato é revogada, as outras são preservadas, por serem independentes. Para entender melhor o que está por trás disso e da decisão da Suprema Corte, é preciso conhecer a evolução processo de recursos e do habeas corpus nos EUA, como explicado pelo SCOTUS Blog e informações adicionais do Courthouse News Service, Washington Post e Vox.

Até 1948, prisioneiros federais podiam impetrar pedidos de habeas corpus, para contestar suas condenações, no distrito judicial em que a prisão se localizava. Isso gerava problemas práticos: os distritos com um grande número de prisioneiros ficavam inundados de petições de habeas corpus; além disso, algumas vezes era difícil conseguir os autos do processo de outro distrito judicial, onde o réu foi originalmente condenado.

Em 1948, o Congresso resolveu esse problema com a aprovação da "28 U.S.C. § 2255". A nova lei, conhecida como "Seção 2255", estabeleceu que as petições de habeas corpus, com "pedido para revogar" ("motion to vacate") uma condenação, deveriam ser encaminhadas à corte em que o réu foi julgado e a sentença proferida originalmente. A nova lei substituiu o "remédio do habeas" pelo "pedido para revogar" — "exceto se o pedido para revogar for inadequado ou ineficaz para testar a legalidade da detenção do prisioneiro". A exceção "salvou" o habeas corpus para prisioneiros, nesse caso.

Porém, em 1996, o Congresso passou uma nova lei, a Anti-Terrorism and Effective Death Penalty Act (AEDPA), por causa do "Atentado de Oklahoma City", que restringiu a capacidade dos prisioneiros de protocolar "segundos ou sucessivos pedidos para revogar" condenações, com base na Seção 2255.

Na prática, a AEDPA estabeleceu que prisioneiros só têm direito a um recurso — a não ser que: 1) quando provas recém-descobertas sejam suficientes para estabelecer que nenhuma investigação razoável conclua pela culpa do réu; 2) quando uma nova regra de lei constitucional, que não estava disponível anteriormente, tiver efeitos retroativos por decisão da Suprema Corte. A EDPA deixou a "saving clause" intacta, de acordo com o SCOTUS Blog.

Com base nesse entendimento, Jones alegou em seu recurso que a "saving clause" permite a ele impetrar um pedido de habeas corpus, uma vez que a proibição de protocolar "segundos ou sucessivos pedidos para revogar, previstos na Seção 2255, é um veículo inadequado ou ineficaz para ele contestar sua condenação".

Mas a Suprema Corte decidiu que, como a AEPDA previu que as exceções aos limites impostos a sucessivas petições se referem apenas a provas recém-descobertas e alegações constitucionais não disponíveis anteriormente, por "implicação negativa" se entende que o Congresso pretendeu que a proibição se aplicasse a pedidos baseados em lei não disponível anteriormente, como o que Jones sustentou em sua petição. Para Thomas, isso seria uma tentativa de contornar a lei.

Em voto dissidente "metódico e perspicaz", segundo o SCOTUS Blog, a ministra Ketanji Brown Jackson desmontou os argumentos da maioria, um a um. Na análise histórica, por exemplo, ela escreveu que o propósito da lei de 1948, que não foi prejudicado pela AEDPA, foi conceder aos prisioneiros os mesmos direitos que tinham de buscar através do pedido de habeas corpus, apenas em um fórum mais conveniente.

Além disso, a "saving clause" expressa a intenção do Congresso de manter equivalência entre o que um prisioneiro pode pleitear antes e depois da sanção da lei. No entanto, o entendimento da maioria encolhe o universo das pretensões previamente disponíveis — o oposto do que o Congresso estabeleceu quando aprovou o §2255, ela escreveu.

A ministra argumentou que "a decisão da maioria produz em resultado perverso: um prisioneiro que não entra com recurso com base na Seção 2255, por qualquer razão, ou que perde o prazo para fazê-lo, poderia pleitear esse direito mais tarde (porque a petição não seria sucessiva), enquanto um prisioneiro que buscou diligentemente seus direitos não pode".

KBJ citou casos anteriores em que "a corte decidiu que o Congresso poderia restringir o remédio do habeas corpus apenas com uma declaração clara de que a intenção era fazer exatamente isso — e não por implicação negativa". E que a maioria interpretou "inadequado ou ineficaz" como "impossível ou impraticável", uma leitura que foge totalmente do texto da lei.

Ketanji Brown Jackson, a mais nova da corte, criticou o entendimento de Thomas, o decano, de que apenas circunstâncias incomuns, como a de que uma corte é dissolvida, podem justificar a "saving clause". Nesse caso, escreveu a ministra, "um prisioneiro só pode contestar sua condenação se a corte em que foi sentenciado for destruída por um incêndio ou levada por um deslizamento de terra".

Em seu voto dissidente separado, as ministras Sonya Sotomayor e Elena Kagan expressaram sua concordância com o voto de KBJ que salientou os "resultados preocupantes" da decisão da maioria e lamentaram o fato de que "um prisioneiro que é realmente inocente, encarcerado por uma conduta que o Congresso não criminalizou, seja barrado para sempre de entrar com um recurso, meramente porque utilizou o mesmo procedimento anteriormente, para contestar uma parte de sua condenação".

"Não importa se uma decisão anterior da corte tenha confirmado a inocência do réu. O que permanece é o fato de que, pelo simples fato de ter contestado sua sentença após a condenação, ele perdeu sua liberdade", diz o voto assinado pelas duas ministras (o que é fora do comum).

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