Opinião

Gilmar e a renovação do direito constitucional: depoimento para a história

Autor

  • Manoel Gonçalves Ferreira Filho

    é professor emérito e titular aposentado de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Doutor honoris causa da Universidade de Lisboa. Doutor pela Universidade de Paris. Ex-professor visitante da Faculdade de Direito de Aix-en-Provence (França). Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Presidente do Instituto "Pimenta Bueno" — Associação Brasileira dos Constitucionalistas.

26 de junho de 2023, 6h08

*trecho do livro "Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz"

Acompanho a carreira do ministro Gilmar há cerca de 30 anos. O conheci como um jovem jurista que se doutorara na Alemanha e, regressando ao Brasil, veio a participar, na Faculdade do Largo de São Francisco, dos Encontros de Direito Constitucional promovidos pelo Instituto "Pimenta Bueno" que eu presidia.

Nestes, reuniam-se muitos dos principais constitucionalistas brasileiros como Raul Machado Horta, Cezar Saldanha, Caio Tácito, José Alfredo de Oliveira Baracho, Paulo Brossard, Carlos Velloso — e alguns juristas estrangeiros Louis Favoreu, Jorge Miranda, Carlos Blanco de Morais, José Manuel Cardoso da Costa, Massimo Luciani, Giuseppe de Vergottini, José Joaquim Gomes Canotilho, por exemplo.

Nesses encontros se debatiam e se trocavam ideias sobre os principais temas do direito constitucional, num intercâmbio que enriquecia a todos os juristas e também aos numerosos estudantes que assistiam às discussões e com elas muito aprendiam. A prova é que vários dos que estiveram presentes em tais reuniões são ilustres professores da matéria e nas principais Faculdades brasileiras.

É o caso de Anna Cândida da Cunha Ferraz, Fernanda Dias Menezes de Almeida, Mônica Herman Salém Caggiano, Fernando Dias Menezes de Almeida, Alexandre de Moraes, José Levi Mello do Amaral Junior, Roger Stiefelmann Leal, Carlos Bastide Horbach. Os últimos cinco, aliás, hoje ensinam na Faculdade de Direito da USP.

Atendiam esses encontros, ademais, a uma necessidade, pois, se faziam na época da elaboração da Constituição brasileira ainda hoje em vigor, com a discussão de alternativas propostas e, em seguida à sua promulgação, à exigência de interpretação de suas inovações.

Foi nesses encontros que, desde logo, se destacou Gilmar Ferreira Mendes, cujos amplos conhecimentos logo se tornaram evidentes, como também sua inspiração germânica (nenhuma palestra sua deixava de ter uma citação em alemão…).

Um de seus temas prediletos era o controle de constitucionalidade. E neste campo desde logo ele trouxe de imediato uma contribuição importante, que depois vingou. Com efeito, ainda prevalecia então, e incontestada, a doutrina clássica norte-americana, exposta pelo Chief Justice Marshall, no julgamento do célebre caso Marbury v. Madison. E nela se destacava especialmente ser o ato inconstitucional nulo e írrito.

Esta lição se incorporara profundamente no pensamento jurídico brasileiro, graças às lições do grande Ruy Barbosa. Foi este, sem dúvida, quem introduziu o instituto na Constituição de 1891 e na doutrina a sua interpretação. Se outras razões não houvesse para louvá-lo, isto já bastaria para consagrá-lo, não só como jurista, mas também como um dos maiores de todos os tempos. Com efeito, sem o controle a Constituição não prevalece sobre os atos legislativos e administrativos e assim não é barreira contra o arbítrio. E o grande Ruy o apontou, demonstrou e fez valer esse papel de limitação do Poder, pelo que todos os brasileiros lhe devem ser gratos.

Entretanto, a lição clássica, já no século 20, foi reestudada por Hans Kelsen. Esse, na sua obra profundamente técnica, apontou que a nulidade do ato inconstitucional não expressava senão simplificadamente a sua natureza. De fato, um ato mesmo inconstitucional podia produzir alguns efeitos que não podiam ser desconhecidos (e a jurisprudência já disso se apercebera que, para não o reconhecer como írrito, usava de discretos expedientes). A nulidade absoluta do ato inconstitucional somente poderia ser o grau final de uma anulação, sempre operada sob a capa de uma "declaração" quando, na verdade, possuía juridicamente outro caráter, um caráter constitutivo negativo.

Essas e outras lições de Kelsen eram conhecidas no Brasil ao menos desde a metade do século passado. Mas, no que tange à natureza do ato inconstitucional, eram guardadas como um segredo, tal o peso da opinião do grande Ruy.

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Ora, isto não deteve o jovem jurista que claramente assumiu a tese kelseniana. E foi o inspirador, depois de anos de pregação, da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, que adota no seu cerne tal tese e com isto enseja a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, o que seria logicamente impossível se o ato inconstitucional fosse írrito.

Essencialmente, por essa luta e seu êxito, que afirmei ser Gilmar Mendes comparável a Ruy Barbosa, na construção, ou melhor, da reconstrução do direito constitucional brasileiro. Sim, porque a tutela das normas constitucionais é o ápice da supremacia da Constituição.

Mas há outras razões para a comparação. Não se limita ao ponto mencionado a sua contribuição para o direito constitucional brasileiro.

Um deles está na sua contribuição para que a Constituição, além de Lei suprema, concretizasse o modelo almejado para a Nação – e não apenas para o Estado brasileiro. Ela, de fato, não se preocupa apenas a impedir o arbítrio, o que já não é pouco, mas também configura a ordem social e econômica a ser estabelecida para a comunidade.

E para que este estado de coisas se efetive e não permaneça como que morto numa folha de papel, muito têm contribuído as lições doutrinárias e os votos de Gilmar Mendes no Supremo Tribunal Federal. Não apenas no tocante à esfera hoje reconhecida no tocante ao mandado de injunção, mas de modo mais concreto por exemplo no seu voto a respeito da Lei nº 10.835/2004, que instituiu a renda básica de cidadania. Neste, revela-se claramente a sua atenção para com o social.

Sem dúvida, a construção da Nação conforme a Constituição suscita graves problemas como o risco da judicialização da política. Essa, porém, foi propiciada pela Constituição, ao fixar programas e metas que não devem ficar sem efeito concreto. Isto bem sabe Gilmar Mendes que não confunde o jurídico com político.

A todos esses méritos, soma-se outro, próprio de um homem de Estado que ele também o é. Ou seja, a questão da governança em face da notória crise do sistema de governo brasileiro. Olhando para o futuro, participou ativamente das discussões sobre a substituição desse regime por um semipresidencialismo, debate que chegou até o Congresso Nacional.

Muito mais haveria a dizer a respeito da obra do ministro Gilmar Mendes, mas é cedo para escrever a sua biografia. Longe está do ponto final o seu trabalho.

** "Gilmar Mendes, 20 anos de STF: o acadêmico, o gestor, o juiz" será lançado nesta semana em Lisboa, e em agosto no Brasil

Autores

  • é advogado, professor titular aposentado de Direito Constitucional e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; é doutor em Direito pela Universidade de Paris e doutor Honoris Causa da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Foi professor visitante da Faculdade de Direito de Aix-en-Provence e é presidente da Associação Brasileira dos Constitucionalistas (Instituto Pimenta Bueno), além de ex-vice-governador do estado de São Paulo.

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