Opinião

Nulidade da sentença arbitral non-liquet: considerações sobre decisão do TJ-SP

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25 de junho de 2023, 15h44

A 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), em acórdão recente de relatoria do desembargador Cesar Ciampolini, anulou uma sentença arbitral proferida na fase de liquidação de danos, por entender ter havido abstenção de voto de um dos coárbitros que, vencido em sentença parcial acerca do mérito da disputa, deixou de se pronunciar sobre a quantificação dos prejuízos [1].

A arbitragem discutia a rescisão de contratos que tratavam, dentre outros, da compra e venda de espaços para veiculação de mídias de publicidade. No mérito, o tribunal arbitral, em sentença parcial, proferida por maioria de votos, julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados pela parte requerente para, 1) condenar a parte requerida ao pagamento de lucros cessantes em razão da não veiculação da mídia contratada, e 2) determinar que tais danos fossem apurados em fase de liquidação de sentença. Na ocasião, restou vencido um dos coárbitros, que entendeu não estar presente o nexo causal necessário a justificar o pagamento de danos por lucros cessantes.

Durante a liquidação de sentença, e após a realização de laudo pericial para apuração dos lucros cessantes, o tribunal arbitral novamente se dividiu. O coárbitro que havia sido vencido no mérito se absteve de votar a respeito do valor da indenização, reiterando que entendida que não havia sido demonstrado nexo causal apto a justificar os lucros cessantes. A outra coárbitra  que, no mérito, acompanhou o posicionamento vencedor  votou pela realização de nova perícia, por entender que o exame pericial realizado não atendia aos critérios fixados na sentença de mérito.

O presidente do tribunal arbitral, por sua vez, homologou os cálculos do perito. Assim, não tendo o tribunal chegado a um consenso, o presidente determinou a prevalência de seu entendimento sobre o tema, com fundamento no artigo 24, §1º, da Lei de Arbitragem [2].

A parte requerente na arbitragem iniciou, então, ação anulatória perante o Poder Judiciário, em que, dentre outros, alegou que o posicionamento do coárbitro (que, vencido no mérito, votou na fase de liquidação apenas reiterando o seu posicionamento quanto à ausência de nexo causal e consequentemente de quaisquer danos) constituiria, na verdade, um não-voto.

Em resumo, a autora da ação judicial sustentou que a abstenção do coárbitro impediria que o presidente exercesse o voto de minerva, sendo nula a sentença arbitral proferida na fase de liquidação, por 1) violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição; 2) vedação ao non liquet (isto é, impossibilidade de o julgador se furtar a decidir um litígio por falta de elementos para embasar a sua decisão); 3) ter sido proferida fora dos limites da convenção de arbitragem, já que as partes decidiram que a arbitragem seria julgada por um painel composto por três árbitros; 4) violação à coisa julgada (em relação à sentença parcial proferida em fase de mérito na arbitragem); e 5) ofensa à garantia do devido processo legal.

Reformando a sentença de primeira instância, que havia julgado improcedente o pedido de anulação da sentença arbitral, o TJ-SP concluiu que o coárbitro em questão, de fato, teria se abstido de votar, já que ele teria se limitado a fazer referência apenas ao seu entendimento adotado na sentença parcial de mérito e que já havia sido já superado. O TJSP apontou que os árbitros  assim como os juízes  têm o dever de garantir o direito das partes ao acesso à justiça e não podem se abster de tomar uma posição em uma questão apresentada a eles.

Com efeito, acórdão do TJ-SP concluiu que o voto do coárbitro na fase de liquidação configuraria non liquet, de tal forma que não teria ele cumprido com seu dever de decidir, violando, assim, o princípio constitucional do acesso à Justiça (CF, artigo 5º, XXXV), sendo nula, portanto, a sentença arbitral.

Além da peculiaridade da questão analisada pelo TJ-SP (que, por si só, já é bastante interessante), a decisão recém proferida é de importância para a comunidade arbitral em razão da fundamentação adotada pelo tribunal paulista para anular a sentença arbitral. Afinal, pelo que se tem notícia, essa é a primeira vez que uma sentença arbitral é anulada especificamente por violação ao princípio constitucional do acesso à Justiça.

Embora a inobservância do princípio constitucional do acesso à Justiça não esteja mencionada, expressamente, na Lei de Arbitragem como causa para anulação da sentença arbitral, o TJ-SP concluiu que os princípios constitucionais listados no artigo 21, §2º, da Lei de Arbitragem  e cuja violação resulta na nulidade da sentença arbitral (i.e., princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento)  deveriam ser interpretados ampliativamente, para incluir outros princípios constitucionais de mesma categoria, ainda que não expressamente referidos na Lei de Arbitragem.

Muitos dos doutrinadores que apontam a taxatividade das hipóteses de nulidade da sentença arbitral previstas no artigo 32 da Lei de Arbitragem já reconheciam que a violação à ordem pública constituiu princípio implícito cuja violação também caracterizaria a nulidade da sentença arbitral [3] (i.e., uma condição geral de validade da sentença arbitral [4]).

Da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça também já havia se pronunciado no sentido de que "[a] ação anulatória de sentença arbitral há de estar fundada, necessariamente, em uma das específicas hipóteses contidas no artigo 32 da Lei 9.307/1996, ainda que a elas seja possível conferir uma interpretação razoavelmente aberta, com o propósito de preservar, em todos os casos, a ordem pública e o devido processo legal e substancial, inafastáveis do controle judicial" [5].

A despeito dessas considerações acerca da ordem pública, e até onde se tem conhecimento, nossos tribunais estatais ainda não haviam anulado uma sentença arbitral valendo-se especificamente da ampliação do rol de princípios previstos no artigo 21, §2º, da Lei de Arbitragem.

A discussão é bastante relevante. De um lado, o reconhecimento de que o artigo 21, §2º, da Lei de Arbitragem pode ser interpretado ampliativamente  de tal forma que a violação a princípios constitucionais gerais do processo não mencionados expressamente na Lei de Arbitragem (como é princípio do acesso à justiça), poderia dar ensejo à anulação da sentença arbitral  é um passo importante para a garantia dos direitos das partes a um procedimento justo e conduzido à luz dos princípios constitucionais gerais aplicáveis.

De outro, a utilização deste racional deve ser sempre feita de forma criteriosa e balizada pelo Judiciário, para evitar-se o alargamento indevido das situações legais de anulação da sentença (artigo 32 da Lei de Arbitragem), o que certamente poderia vir a macular o instituto da arbitragem e impactar a segurança jurídica que lhe é tão cara.

Caberá aos tribunais estatais, em sua tarefa de controle, analisar e interpretar as situações concretas, detectando caso a caso eventuais excessos ou iniquidades, garantido às partes o devido processo legal (em sentido processual e material), sem, contudo, dar azo à anulação indevida de sentenças arbitrais proferidas em conformidade com as garantias constitucionais e ditames legais aplicáveis à arbitragem.

 


[1] TJ-SP, apelação cível nº 1094661-81.2019.8.26.0100, relator desembargador Cesar Ciampolini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 24.05.2023.

[2] Artigo 24. A decisão do árbitro ou dos árbitros será expressa em documento escrito.

§1º Quando forem vários os árbitros, a decisão será tomada por maioria. Se não houver acordo majoritário, prevalecerá o voto do presidente do tribunal arbitral.

[3] "A leitura do caput e do §2°, do artigo 33 leva à conclusão de que o rol do artigo 32 é taxativo, o que é sustentado pela doutrina visando à estabilidade da sentença arbitral e à segurança jurídica dela decorrente, como reflexo da renunciabilidade à garantia de acesso ao Poder Judiciário, valendo mencionar que às partes não é dado ampliar o rol de hipóteses legais, nem renunciar previamente à aplicação do disposto nos artigos 32 e 33 da Lei, considerados cogentes.

No entanto, ainda entre aqueles que defendem a taxatividade do rol em apreço, que sintetiza matérias de ordem pública que o Estado não admite sejam superadas, muitos há que admitem a existência de hipóteses excepcionais de configuração de causas de nulidade da sentença arbitral ali não expressas, como no caso em que esta ofende a ordem pública, por não aplicar corretamente lei dessa natureza, lembrando-se que, pese embora não seja prevista no rol do artigo 32, desta Lei, atue a ordem pública, ao lado dos bons costumes, como limite às escolhas dos contratantes no âmbito da justiça privada, conforme se lê no artigo 2º, desta Lei.

(…)

Como exemplo de hipótese não arrolada no artigo 32 da Lei em estudo, e que pode levar à nulidade da sentença arbitral, temos que a declaração de inconstitucionalidade pelo árbitro constitui questão de ordem pública, existindo, outrossim, precedentes do Superior Tribunal de justiça e do Supremo Tribunal Federal, no sentido da caracterização da matéria como de ordem pública. (…)

(…)

Portanto, a nulidade do ato inconstitucional encontra previsão na Constituição, como princípio implícito, além de matéria de ordem pública". (FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves; ROCHA, Matheus Lins; FERREIRA, Débora Cristina Fernandes Ananias Alves. Lei de Arbitragem Comentada. 2 ed. Editora JusPODIVUM, 2021, pp. 329-330).

[4] "(…) Em outras palavras: se o legislador não levasse em consideração, como causa de anulação da sentença arbitra (nacional), a violação à ordem pública, todas as arbitragens certamente viriam dar em território nacional (todos os atos seriam praticados no exterior e apenas a sentença arbitral seria proferida no Brasil, o que tornaria a sentença arbitral  ab absurdo  imune a qualquer ataque por força de ofensa à ordem pública!). O argumento (ad terrorem, sem dúvida) serve para pôr à mostra a consequência de tentar evitar o reconhecimento do óbvio: o sistema arbitral brasileiro é coerente, de modo que tanto as sentenças arbitrais nacionais quanto as sentenças arbitrais estrangeiras estão sujeitas à mesma condição geral de validade, qual seja, não atentar contra a ordem pública" (CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 3 ed., ver. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2009, pp. 417-148).

[5] STJ, REsp nº 1.660.963/SP, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j.  26.03.2019.

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