Opinião

Análise da inconstitucionalidade do artigo 11 da Lei do Rerct pelo Supremo Tribunal

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21 de junho de 2023, 16h24

Nesta sexta-feira (23/6) começa uma nova sessão virtual para que o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) volte a analisar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.586/2016. A ação, proposta pelo partido Solidariedade, questiona a constitucionalidade do artigo 11 da Lei nº 13.254, publicada em 14/1/2016, o qual proíbe a adesão ao Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (Rerct) de detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, seus respectivos cônjuges e parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, na data de publicação da Lei.

O Rerct foi um regime de transação de natureza penal e tributária que permitiu que, por meio de declaração voluntária dos interessados e pagamento de 30% do valor dos ativos declarados, fossem regularizados recursos, bens e direitos de origem lícita não declarados ou declarados incorretamente, remetidos ou mantidos no exterior, ou repatriados por residentes ou domiciliados no Brasil até 31/12/2014.

Cumpridos os requisitos e condições do Rerct, os interessados teriam direito à remissão dos créditos tributários, anistia de multas tributárias, extinção de obrigações cambiais e financeiras que seriam cabíveis e da punibilidade por crimes tributários [1], crimes de falso [2], de lavagem de dinheiro e de evasão de divisas (nestes dois, apenas se os recursos fossem oriundos de crimes tributários e/ou de falso) [3].

O julgamento da ADI 5.586 foi iniciado em 8/10/2021 e apenas a relatora ministra Rosa Weber proferiu voto, para conhecer a ação e declarar constitucional o artigo 11, ao que se seguiu pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.

Contudo, como será demonstrado a seguir, o artigo 11 da Lei do Rerct é inconstitucional por violar: a) a igualdade, ao conferir tratamento discriminatório aos detentores de cargos públicos e seus familiares, sem, no entanto, haver uma relação direta entre essa discriminação e a finalidade da lei; b) a proporcionalidade, ao impedir, de forma desnecessária, inadequada e desproporcional, o acesso de determinados indivíduos a regime tributário e penal próprio; e c) a presunção de inocência, por pressupor implicitamente que todo o patrimônio no exterior de titularidade de todos os detentores de cargos públicos de direção ou eletivos e seus parentes tenha origem ilícita e, portanto, não passível de regularização.

O voto proferido pela ministra Rosa Weber não enfrentou as violações b) e c) acima descritas, e se baseou em argumentos que podem ser assim sintetizados: 1) o Rerct configuraria privilégio tributário que poderia ser vedado a determinados ocupantes de cargos públicos e seus parentes, pois essa discriminação maximizaria o âmbito de incidência dos princípios previstos no artigo 37 da Constituição, notadamente a moralidade e impessoalidade administrativas; e 2) existiria dissenso hermenêutico em relação à constitucionalidade do artigo 11, justificando a autocontenção do Poder Judiciário e a presunção de constitucionalidade do dispositivo.

A nosso ver, com todo o respeito, o referido entendimento não deve prevalecer.

Primeiramente, porque o Rerct não é privilégio tributário ou benefício fiscal. Trata-se de regime tributário próprio, no qual os créditos tributários que seriam devidos foram objeto de remissão, mas novos créditos tributários foram constituídos a partir da declaração voluntária do contribuinte. O Rerct autorizou a tributação de saldos inexistentes e movimentações pregressas à data estabelecida para o fato gerador fictício (31.12.2014), além de fazer incidir imposto de renda sobre ingressos oriundos de doações, heranças e outros rendimentos ordinariamente isentos.

Por tais razões, inclusive, são vários os casos em que esse regime acarretou exigência fiscal superior à que seria devida sem a adesão, ao contrário do que pressupõe o voto já proferido na ADI 5.586.

O artigo 11, ao vedar a adesão de determinados indivíduos a esse regime tributário próprio (e não benéfico) exclusivamente por sua ocupação profissional ou parentesco, estabeleceu claro tratamento tributário desigual em relação aos que foram autorizados a aderir. Nesse ponto, é necessário transcrever o artigo 150, II, da Constituição:

"Artigo 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(…)
II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;".

Pergunta-se: o que difere os contribuintes enumerados no artigo 11 dos demais autorizados a aderir ao Rerct? Do ponto de vista tributário, o que justifica a discriminação pretendida?

Ora, o objetivo do artigo 150, II, é justamente impedir que exceções arbitrárias sejam feitas, garantindo a igualdade, em matéria tributária, sempre que os contribuintes estiverem em situação equivalente.

Não se sustenta, portanto, o argumento de que o STF aplica o artigo 150, II, rejeitando a concessão de privilégios tributários a detentores de cargos e funções públicas (item 7 do voto). Não autorizar que se privilegie o funcionário público por sua função não é o mesmo que excluir esses funcionários de determinado regime tributário (ainda que privilegiado) em razão de sua função. Ora, em ambos os casos, deve-se impedir qualquer distinção em razão de ocupação profissional, o que é justamente a pretensão, inconstitucional, do artigo 11 da Lei nº 13.254/16.

Evidentemente, não se ignora que "detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas" estejam sujeitos a rigor ético maior em sua conduta.

Porém, conforme vasta jurisprudência do Plenário do STF, só são admissíveis discriminações quando a desigualdade estabelecida em lei tem relação direta com seu objetivo [4]. Outras restrições de direitos de parentes de políticos, como a proibição do nepotismo, só são aceitas pela Corte quando há comprovação de benefício indevido conferido ao indivíduo em decorrência do parentesco, em prejuízo da administração pública (i.e., comprovação de inequívoca fraude, inidoneidade moral ou inépcia do nomeado) [5].

O mesmo raciocínio pode ser verificado em consultas resolvidas pelo Tribunal Superior Eleitoral, nas quais se reconheceu a inaplicabilidade da vedação contida no artigo 14, §7º, da Constituição (inelegibilidade de parentes no território de jurisdição de chefes do Poder Executivo) com base na razoabilidade da regra diante do caso concreto, ainda que o dispositivo constitucional não contenha essa exceção [6].

Mesmo quando o STF admitiu restrições baseadas em condutas pretéritas (ADI 4.578[7], relativa à Lei Complementar 135/90  "Lei da Ficha Limpa"), somente o fez porque a) a própria Constituição prevê o exame da vida pregressa dos candidatos (artigo 14, §9º); e b) é garantida a possibilidade de interposição de recurso pelos indivíduos que queiram questionar a declaração de sua inelegibilidade.

A segunda premissa equivocada é de que o artigo 11 poderia garantir a probidade e a moralidade administrativas ao estabelecer tratamento discriminatório. Ainda que essa tenha sido a intenção que motivou o dispositivo, a forma escolhida pelo legislador infraconstitucional para implementá-la o tornou desnecessário, inadequado e desproporcional.

Desnecessário, porque a Lei nº 13.254/2016 já proíbe a adesão de indivíduos cujos ativos tenham origem em atividade econômica ilícita (artigos 1º, caput, e 3º) e prevê que, na hipótese de identificação de declaração falsa quanto à licitude dos recursos, o contribuinte seja excluído do programa, recolha todos os tributos incidentes, bem como se sujeite às sanções penais cabíveis (artigo 9º). Ora, tais regras já impedem que agentes públicos que tenham cometido crimes não anistiados pela lei dela se beneficiem, concretizando-se assim os comandos de moralidade e impessoalidade administrativas.

Inadequado, porque fixou o dia 14.01.2016 para determinar os ocupantes de cargos públicos sujeitos à restrição de adesão ao Rerct, ignorando a lacuna temporal entre o período em que os bens eram mantidos pelo declarante no exterior (31.12.2014 ou antes) e o período em que este passou a exercer cargo público e eventualmente obteve, em função dele, vantagens indevidas que não poderiam ser objeto do Rerct [8].

Desproporcional, na medida em que não se admite a comprovação da origem do patrimônio que seria regularizado pelos indivíduos desnecessariamente impedidos de aderir ao programa. Razoável teria sido o legislador permitir a adesão de todos que preencherem os demais requisitos da lei e submeter as pessoas politicamente expostas  a um procedimento imediato e rigoroso de fiscalização para determinar se os recursos regularizados eram lícitos; nesse caso, a suposta função da discriminação e o respeito aos direitos individuais estariam convivendo em harmonia.

Em síntese, o artigo 11 não apenas não precisaria existir e é ilógico considerando os bens regularizados, como criou discriminação absolutamente irrazoável e, portanto, incompatível com a Constituição. Ato contínuo, não se justifica a manutenção do artigo 11 pela suposta efetividade que garantiria aos princípios da moralidade e impessoalidade administrativas, uma vez que tais princípios já foram preservados nas condições impostas nos demais artigos da Lei nº 13.254/16.

Quanto ao argumento de autocontenção do Poder Judiciário, cumpre lembrar que o legislador deve ter coerência ao estabelecer critérios legais discriminatórios no acesso a direitos, os quais devem estar baseados em uma razão adequada. No caso concreto, dentro de sua legítima margem de discricionariedade, o legislador definiu, no artigo 5º, §1º, da Lei do Rerct, os crimes passíveis de extinção da punibilidade. A finalidade da lei é permitir a regularização de recursos não declarados provenientes de atividades econômicas lícitas. Trata-se de uma decisão legítima do legislador e que não afronta o texto constitucional.

Contudo, como demonstrado, os critérios discriminatórios impostos pelo artigo 11 não guardam relação com a finalidade da lei de impedir a regularização de recursos provenientes de atividades ilícitas, de maneira que cabe, sim, ao Poder Judiciário prevenir que a aplicação de tais critérios viole a igualdade e a razoabilidade protegidas pela Constituição.

Por fim, o artigo 11 inverte a lógica constitucional da presunção de inocência. O dispositivo exclui, de antemão, a possibilidade de adesão ao programa de todos os detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, pressupondo, de forma implícita, a ilicitude do patrimônio de tais pessoas.

Adotando-se essa linha, o artigo 11 acaba por configurar verdadeira ficção jurídica de culpa, pressupondo a ocorrência de crimes sem sequer ter havido acusação, e não possibilitando a comprovação da ausência de conexão entre ativos regularizados e exercício do cargo público; tampouco entre patrimônios dos agentes e patrimônios de seus parentes.

Como visto, ao vedar a possibilidade de regularização de recursos de origem lícita a determinadas pessoas exclusivamente em função de sua ocupação ou relação de parentesco, o artigo 11 gerou discriminação desnecessária e desproporcional. O critério temporal adotado pela norma reforça a completa impertinência lógica do tratamento diferenciado conferido, o qual afronta princípios e regras previstos na Constituição.

A partir do dia 23, o Plenário do STF terá nova oportunidade de analisar a matéria e uniformizar o entendimento acerca da questão, eliminando critério discriminatório que apenas contribuiu para a insegurança jurídica e a desconfiança que já tanto prejudicam a relação entre o Estado e o contribuinte no país.

 


[1] Crimes materiais contra a ordem tributária do artigo 1º da Lei nº 8.137/1990; crimes formais contra a ordem tributária do artigo 2º, incisos I, II e V, da Lei nº 8.137/1990; crime de sonegação fiscal da Lei nº 4.729/1965 e o crime de sonegação de contribuição previdenciária previsto no artigo 337-A do Código Penal;

[2] Falsificação de documentos (artigos 297 e 298 do CP), falsidade ideológica (artigo 299 do CP) e uso de documento falso (artigo 304 do CP).

[3] Artigo 1º da Lei nº 9.613/1998; artigo 22, caput e parágrafo único, da Lei nº 7.492/1986, respectivamente.

[4] ADI 3.305, relator ministro Eros Grau, julgado em 13.09.2006; Segundo Agravo Regimental na Suspensão de Segurança 3.902, relator ministro Ayres Britto, julgado em 09.06.2011; e MS 26.690, relator ministro Eros Grau, julgado em 03.09.2008.

[5] RE 579.951, relator ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 20.08.2008. No mesmo sentido, entre outras: Rcl 34.413, relator ministro Alexandre de Moraes, 1ª Turma, julgado em 27.09.2019; Rcl 28.024, relator ministro Roberto Barroso, 1ª Turma, julgado em 29.05.2018; Rcl 29.099, relator ministro Roberto Barroso, dec. monocrática, julgado em 04.04.2018; RE 825.682/SC, relator ministro Teori Zavascki, Segunda Turma, julgado em 10.02.2015; e Rcl 7.590/PR, relator ministro Dias Toffoli, Primeira Turma, julgado em 30.09.2014.

[6] Acórdão nº 11.959 na Consulta nº 785, Resolução nº 20.222 na Consulta nº 453, Resolução nº 15.307 na Consulta nº 10.125, Resolução nº 21.131 na Consulta nº 785, e Resolução nº 11.206 na Consulta nº 6328.

[7] Relator ministro Luiz Fux, Plenário, DJe de 29.06.2012.

[8] A título de exemplo, um professor de universidade pública, que seja nomeado para exercer o cargo de chefe de departamento em janeiro de 2016, por exemplo, não poderá aderir ao Rerct, impossibilitando também seu cônjuge, filhos, netos, pais, avós, sogros, irmãos e cunhados de aderir ao regime, ainda que o patrimônio detido por eles em 2014 não tenha relação alguma com o exercício de cargos públicos. Por outro lado, um ocupante de cargo público anteriormente a 13.01.2016, mesmo condenado por crimes contra o Estado, poderia se beneficiar do Rerct.

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