Opinião

Os regulamentos europeus realmente ajudam a combater o desmatamento?

Autores

  • Anderson de Andrade Bichara

    é delegado de Polícia Federal superintendente da Polícia Federal no estado do Amapá ex-secretário-executivo da Comissão de Definição das Ações de Segurança para os Jogos Rio 2016 MPA Gestão de Órgãos de Segurança Pública pela Universidade Cândido Mendes mestrando em Criminologia na Universidad Católica de Ávila e especializando em Criminologia na Universidade de São Paulo (USP).

  • Agostinho Gomes Cascardo Junior

    é delegado de Polícia Federal adido policial federal do Brasil na Bolívia mestre em Ciência de Sistemas de Informação Geográfica pela Universidade Nova de Lisboa especialista em Segurança Pública professional certificate in Blockchain Fundamentals pela University of California/Berkeley geospatial intelligence collegiate certificate pela United States Geospatial Intelligence Foundation e cryptocurrency tracing certified examiner (CTCE) pela CipherTrace (2022).

  • Rafael Ferreira Filippin

    é advogado doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento e fundador da NFC Advogados.

20 de junho de 2023, 6h36

Este artigo examina as diferenças de tratamento regulatório dado pela União Europeia para a importação de produtos de origem animal e de madeira do Brasil, assim como as propostas ora em discussão e que estão entrando em vigor no âmbito da política europeia do Green Deal e, por fim, especula se influenciam no aumento ou na diminuição do desmatamento na Amazônia brasileira.

A tese de que uma demanda econômica pode levar ao cometimento de crimes não é nova: Gary Becker, professor da Universidade de Chicago, economista neoclássico e agraciado com Prêmio Nobel de Economia de 1992, publicou o artigo Crime and Punishment: An Economic approach (Crime e Punição: uma abordagem econômica, numa tradução livre) no Journal of Political Economy em 1968.

Entretanto, o que se deve questionar é: até que ponto as regulações adotadas pelos mercados consumidores de produtos exportados brasileiros podem influenciar no aumento ou na diminuição da prática de crimes contra a flora tipificados na Lei nº 9605/1998? 

De fato, essa é uma inquietação que está estimulando novas reflexões na área da criminologia, cuja atenção está se voltando para as ações ilícitas que são perpetradas por eventual influência do mercado e parece ser não só oportuna, como também necessária.

Por outro lado, há um amplo debate sobre a influência exercida pelos mercados na formulação de políticas e regulamentos. Exemplos disso são os diferentes vieses regulatórios adotados pela União Europeia para a importação de carne bovina e de madeira. Com efeito, enquanto os produtos de origem animal proveniente do Brasil são frequentemente sujeitos a proibições ou restrições, o mesmo não ocorre com a madeira oriunda de espécies nativas brasileiras.

O Regulamento 1760/2000 da União Europeia, por exemplo, não apenas estabelece um sistema de identificação e registro de bovinos, mas também determina um regime específico para a rotulagem da carne de bovino e dos produtos que a contêm. Por sua vez, o Regulamento 178/2002 tem um escopo mais abrangente determina que será assegurada a rastreabilidade em todas as etapas da cadeia produtiva de alimentos e ingredientes alimentícios, ração animal e animais produtores de insumos alimentícios, tornando possível, dessa forma, a identificação do fornecedor de tais produtos, inclusive no caso da ração animal.

Já o Regulamento 854/2004 foi adotado para estabelecer regras específicas para a organização de controles oficiais de produtos de origem animal destinados ao consumo humano, abrange carnes, frutos do mar, produtos lácteos, ovos, mel dentre outros produtos e cobre aspectos como: inspeções de saúde animal, de bem-estar animal, verificações de higiene durante o abate e processamento. Em particular, esse regulamento determina que os produtos de origem animal só podem ser importados se forem provenientes de estabelecimentos de países terceiros constantes de listas atualizadas.

Agência Brasil
Agência Brasil

Adicionalmente, os Anexos do Regulamento de Execução 2018/700 esmiuçam o tema e discriminam a relação dos frigoríficos brasileiros que deixaram de se enquadrar e, portanto, estão impedidos de exportar.

É certo que a Europa agiu em conformidade com os seus próprios interesses, baseada no que lhe seria mais conveniente e benéfico do ponto de vista sanitário e econômico. No entanto, do ponto de vista do equilíbrio das relações comerciais internacionais, é perfeitamente razoável questionar se essa atitude afeta negativa ou positivamente os interesses brasileiros. A resposta, no entanto, não parece ser tão óbvia. Afinal, se por um lado restringe o acesso ao mercado europeu, por outro lado, talvez possa estar contribuindo para o controle do desmatamento.

Essa pelo menos é a justificativa adotada pelos europeus para a adoção da política do Green Deal, pela qual propõem a necessidade de diligência para comprovar que os produtos do agronegócio que ingressam no seu mercado não são oriundos de áreas de desmatamento posterior a 2020, conforme passou a ser exigido no recentíssimo Regulamento 1115/2023, válido a partir de dezembro de 2024.

Em outras palavras, a União Europeia impõem restrições específicas que lhes permitem comprar apenas de determinados estabelecimentos previamente definidos e selecionados ou que sejam capazes de comprovar mediante diligência devida que cumprem elevados padrões de rastreabilidade e não contribuem para o desmatamento.

Nessa mesma linha de argumentação, a Febraban (Federação Brasileira dos Bancos) recentemente publicou uma proposta de autorregulação que vincula a concessão de financiamento para frigoríficos à rastreabilidade da cadeia direta e indireta, ou seja, os agentes desse mercado terão que garantir que não compram gado de áreas onde houve desmatamento ilegal até 2025. Do contrário não terão acesso a crédito.

Ou seja, essa parece ser a tendência contemporânea, muito justificada no pensamento de Gary Becker de que o mercado pode influenciar positivamente na diminuição da criminalidade. Mas isso convida a uma outra reflexão, mais aprofundada, a respeito do mercado de madeira, isto é, se os europeus são tão exigentes assim em relação à madeira que importam, como são em relação aos produtos de origem animal.

Para responder a essa questão, é preciso lembrar que, atualmente, o comércio de madeira com a União Europeia é normatizado principalmente pelo Regulamento 995/2010 e pelo Regulamento de Execução 607/2012, dado que o Regulamento 1115/2023 passará a vigorar somente em dezembro de 2024. Esse conjunto de normas tem um escopo muito mais limitado quando se compara com o das normas que controlam o mercado de produtos de origem animal. Afinal, as exigências se concentram majoritariamente na verificação de documentos cujo conteúdo pode ter a sua veracidade manipulada. Outra particularidade é a de que esses regulamentos exigem uma verificação efetiva apenas na primeira operação, deixando as transações subsequentes sujeitas a controles menos rigorosos.

Dessa forma, talvez as exigências europeias menos rigorosas existentes até a entrada em vigor do Regulamento 1115/2023 para o mercado de madeira ajudem a explicar o aumento das taxas de desmatamento ilegal na Amazônia brasileira dos últimos anos, conduzido inclusive por organizações criminosas transnacionais, o que se apresenta como um grande desafio para a criminologia, que deveria aprofundar as pesquisas no assunto, inclusive para se verificar se a teoria econômica do crime se confirma na realidade ou não.

Por outro lado, do ponto de vista da teoria das relações internacionais, podem ser levantadas diversas críticas em relação a essa postura dos europeus. A primeira delas é a da assimetria nas relações comerciais, uma vez que não há uniformidade quanto às exigências. Ou melhor, as restrições são maiores em relação ao mercado de produtos de origem animal, que os europeus tradicionalmente desejam proteger, o que tornaria o argumento ambiental um tanto falacioso. Além disso, existem recursos tecnológicos acessíveis que permitiriam ir muito além daquilo que as medidas de controle do mercado de madeira atualmente exigem.

Por exemplo, as restrições europeias à importação de madeira ilegal poderiam se concentrar em determinadas espécies, como ocorre no caso da sistemática da Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites). Além disso, as restrições também poderiam ser baseadas em determinados modelos de manejo específicos, como os propostos pelo Imazon, os quais estão lastreados em robusta pesquisa científica.

Por outro lado, uma alternativa semelhante à adotada para os exportadores de produtos de origem animal, e oposta à ideia de proibir completamente a compra de certos produtos, seria a imposição de listas de exportadores que foram devidamente reconhecidos e certificados pelas autoridades europeias. Pode-se especular que, na linha de pensamento de Gary Becker, se essa abordagem é boa para o controle dos produtos de origem animal, talvez então pudesse ser boa também para a sustentabilidade do mercado de madeira, promovendo quem sabe uma gestão florestal mais responsável no longo prazo.

Em síntese, todos os discursos convergem para a ideia de que é fundamental incentivar a exploração dos recursos ambientais Amazônicos de forma responsável, equitativa e sustentável, promovendo os direitos sociais, ambientais, trabalhistas e previdenciários, bem como assegurando o recolhimento de tributos. No entanto, não se pode ter uma visão românica da exploração da Amazônia, nem dos interesses europeus.

Autores

  • é delegado de Polícia Federal, superintendente da Polícia Federal no estado do Amapá, ex-secretário-executivo da Comissão de Definição das Ações de Segurança para os Jogos Rio 2016, MPA Gestão de Órgãos de Segurança Pública pela Universidade Cândido Mendes, mestrando em Criminologia na Universidad Católica de Ávila e especializando em Criminologia na Universidade de São Paulo (USP).

  • é delegado de Polícia Federal, adido policial federal do Brasil na Bolívia, mestre em Ciência de Sistemas de Informação Geográfica pela Universidade Nova de Lisboa, especialista em Segurança Pública, professional certificate in Blockchain Fundamentals pela University of California/Berkeley, geospatial intelligence collegiate certificate pela United States Geospatial Intelligence Foundation e cryptocurrency tracing certified examiner (CTCE) pela CipherTrace (2022).

  • é sócio-fundador da Nichetti, Filippin e Comazzi Advogados, doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre em Direito Ambiental pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), especialista em Gestão de Recursos Hídricos pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e atualmente vice-presidente da Comissão de Direito Ambiental da Seção Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil.

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