Opinião

Voto conjunto no Supremo Tribunal Federal

Autores

  • Mário Augusto Figueiredo de Lacerda Guerreiro

    é juiz de direito do TJ-RS e juiz auxiliar da Presidência do STF. Ex-conselheiro do CNJ onde presidiu a Rede Nacional de Cooperação Judiciária e relatou a Resolução 350/2020. Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra.

  • Dorotheo Barbosa Neto

    é juiz do Trabalho (TRT-14). Juiz auxiliar da Presidência do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Coordenador do Programa Justiça 4.0. Especialista em Direito e Processo do Trabalho Gestão Pública e Gestão de Projetos.

19 de junho de 2023, 7h11

No julgamento do segundo referendo de medida cautelar na ADI 7.222, retomado no último dia 16 de junho, os ministros Roberto Barroso (relator) e Gilmar Mendes (vistor) apresentaram "voto complementar conjunto", tendo o ministro Dias Toffoli pedido vista do caso em seguida.

A prolação de voto conjunto por dois membros do mesmo órgão colegiado pode causar certa perplexidade à primeira vista, mas, como se verá, trata-se de medida totalmente amparada pela ordem jurídica nacional, que autoriza e incentiva todos os juízes brasileiros a praticarem atos de cooperação judiciária para a maior eficiência da Justiça, como ocorre na hipótese do ato conjunto.

Para melhor contextualização da controvérsia, é necessário, primeiramente, compreender a matéria de fundo objeto do julgamento.

No caso, a Lei 14.434/2022 instituiu o piso salarial nacional para os profissionais do campo da enfermagem, a saber: enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem e parteiras.

A legislação entraria em vigor na data de sua publicação oficial, garantindo ainda a manutenção das remunerações e dos salários vigentes que fossem superiores ao piso estabelecido naquele momento, independentemente da jornada de trabalho para a qual o profissional ou trabalhador foi admitido ou contratado, estabelecendo, ainda, que acordos individuais, contratos e convenções coletivas deveriam respeitar o piso salarial previsto na Lei 7.498/1986, sendo considerada ilegal e ilícita a sua desconsideração ou supressão.

Ocorre que a Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde) contestou a constitucionalidade da lei, alegando, em resumo, que ela apresentaria vícios de inconstitucionalidade formais e materiais. Segundo a autora, haveria violação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, além dos efeitos adversos práticos que dela resultariam.

Sustentou que o conteúdo da lei restringiria significativamente a liberdade de contratação e negociação e não consideraria as disparidades regionais que tornariam o piso salarial fixado inviável em algumas unidades federativas, gerando distorção salarial, uma vez que o piso salarial dos médicos seria inferior ao previsto para os profissionais de enfermagem.

Ademais, a aplicação da lei tenderia a resultar no aumento do desemprego entre aqueles que pretendia beneficiar, na falência de unidades de saúde ou no repasse dos custos aos usuários de serviços de saúde privados, bem como na redução da oferta desses serviços por particulares, inclusive na rede conveniada.

A ADI 7.222 ainda continha pedido de medida cautelar para que fossem suspensos os efeitos dos artigos 15-A, 15-B e 15-C da Lei 7.498/1986, com a redação dada pela Lei 14.434/2022, até o julgamento de mérito da ação.

Em análise do pedido cautelar, o ministro Roberto Barroso, após determinar a colhida de informações à Presidência da República, à Câmara dos Deputados e ao Senado, realizando percuciente análise fático-jurídica, proferiu decisão que suspendeu os efeitos da Lei 14.434/2022 até que fossem avaliados os seus impactos sobre (i) a situação financeira de Estados e Municípios; (ii) a empregabilidade; e (iii) a qualidade dos serviços de saúde. Determinou, outrossim, a prestação de informações pelos entes estatais, órgãos públicos e entidades representativas das categorias e setores afetados que identificou.

Em 19/9/2022, no primeiro referendo de medida cautelar, o Plenário do STF confirmou a decisão acima descrita, porém, diante das novas informações prestadas, o relator, ministro Roberto Barroso, proferiu nova decisão:

"(…)Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSO LEGISLATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR. PISO SALARIAL DOS PROFISSIONAIS DE ENFERMAGEM. ASSISTÊNCIA FINANCEIRA DA UNIÃO. REVOGAÇÃO PARCIAL. 1. A ação. Ação direta de inconstitucionalidade contra a Lei nº 14.434/2022, que institui o piso salarial nacional do enfermeiro, do técnico de enfermagem, do auxiliar de enfermagem e da parteira, a ser aplicado (a) aos profissionais contratados sob o regime celetista; (b) aos servidores públicos civis da União, das autarquias e fundações públicas federais; e (c) aos servidores dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de suas autarquias e fundações. 2. A medida cautelar concedida. À falta de indicação da fonte adequada de custeio e considerado o iminente risco de graves prejuízos para os Estados e Municípios, demissões em massa e redução do número de leitos e da qualidade dos serviços de saúde, foi concedida medida cautelar suspendendo os efeitos da lei, até que sobreviesse a avaliação dos impactos da alteração legislativa. Em 19.09.2022, o Plenário do Supremo Tribunal Federal referendou a medida cautelar. 3. A aprovação de emenda constitucional. Na sequência, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional nº 127/2022, prevendo competir à União, nos termos da lei, prestar assistência financeira aos entes subnacionais, às entidades filantrópicas e aos prestadores de serviços que atendam, no mínimo, 60% de seus pacientes pelo SUS, com vista ao cumprimento dos pisos salariais. Como a lei prevista na própria emenda constitucional ainda não havia sido editada, não foi possível suspender a cautelar. 4. Superveniência da Lei nº 14.581/2023. Em 11.05.2023, porém, foi editada a legislação que regulamenta a EC nº 127/2022, prevendo a abertura de crédito especial ao Orçamento da União, no valor de R$ 7,3 bilhões, para atendimento a essa programação específica. Diante disso, a medida cautelar cumpriu parte do seu propósito, pois permitiu a mobilização dos Poderes Executivo e Legislativo para que destinassem recursos para custeio do piso salarial pelos entes subnacionais e entidades integrantes da rede complementar do SUS. 5. Observância do princípio federativo. Cabe relembrar, todavia, que lei federal não pode impor piso salarial a Estados e Municípios sem aportar integralmente os recursos necessários para cobrir a diferença remuneratória, sob pena de comprometer sua autonomia financeira, violando o princípio federativo, cláusula pétrea da Constituição brasileira. 6. Impacto sobre o setor privado. Ademais, o financiamento previsto nas normas recém-editadas não reduz nem endereça, de nenhuma forma, o impacto que o piso produz sobre o setor privado, de modo que subsiste o risco de demissões em massa e de prejuízo aos serviços hospitalares. 7. Revogação parcial da cautelar. À vista do exposto, fica revogada parcialmente a cautelar concedida, a fim de que sejam restabelecidos os efeitos da Lei nº 14.434/2022, com exceção da expressão "acordos, contratos e convenções coletivas" constante do seu art. 2º, § 2º, para que seja implementado o piso salarial nacional por ela instituído, nos seguintes termos: (i) em relação aos servidores públicos civis da União, autarquias e fundações públicas federais, a implementação do piso salarial nacional deve ocorrer na forma prevista na Lei nº 14.434/2022; (ii) em relação aos servidores públicos dos Estados, Distrito Federal, Municípios e de suas autarquias, bem como aos profissionais contratados por entidades privadas que atendam, no mínimo, 60% de seus pacientes pelo SUS, a implementação da diferença resultante do piso salarial nacional deve se dar em toda a extensão coberta pelos recursos provenientes da assistência financeira da União; e (iii) em relação aos profissionais celetistas em geral, a implementação do piso salarial nacional deve ocorrer na forma prevista na Lei nº 14.434/2022, a menos que se convencione diversamente em negociação coletiva, a partir da preocupação com demissões em massa ou comprometimento dos serviços de saúde. Essa é a razão do diferimento previsto a seguir. Nesse caso, deve prevalecer o negociado sobre o legislado (RE 590.415, rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 30.04.2015; ARE 1.121.633, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 02.06.2022.). 8. Quanto aos efeitos temporais da presente decisão, em relação aos profissionais referidos nos itens (i) e (ii), eles  se produzem na forma da Portaria GM/MS nº 597, de 12 de maio de 2023; e, em relação aos profissionais referidos no item (iii), para os salários relativos ao período trabalhado a partir de 01º.07.2023. (…)"

Quanto a esta segunda decisão, em novo referendo de medida cautelar na ADI 7.222, o ministro Gilmar Mendes pediu vista dos autos, ora devolvida para continuidade do julgamento, na forma de "voto complementar conjunto" com o ministro Roberto Barroso. 

Postas essas premissas do caso concreto, passa-se ao exame da juridicidade do voto complementar conjunto proferido pelos ministros relator e vistor, uma vez que tal fato nunca havia ocorrido na história do STF.

Nesse ponto, em primeiro lugar, há que se assentar a previsão legal da cooperação judiciária nacional, introduzida pelo Código de Processo Civil de 2015, nos seus artigos 67 a 69, que estabelecem o dever de recíproca cooperação entre todos os órgãos do Poder Judiciário, para a prática de qualquer ato de cooperação.

Posteriormente, a Resolução 350/2020 do CNJ avançou na regulamentação da matéria, estabelecendo que a cooperação judiciária prescinde de forma específica e pode ser executada através de auxílio direto, atos conjuntos e atos concertados entre os juízos cooperantes (artigo 8º). Outrossim, o referido ato normativo dispõe que "os atos conjuntos e concertados são adequados para disciplinar a cooperação entre órgãos jurisdicionais em torno de um ou alguns processos, ou a prática de atos mais complexos relacionados a esses mesmos processos" (artigo 11, caput). Por fim, a resolução trouxe modelos de auxílio direto, atos conjuntos e atos concertados nos seus anexos.

O Supremo, igualmente, disciplinou a cooperação judiciária no seu âmbito de atuação, através da Resolução 775/2022, que prevê: 1) a cooperação para a prática de qualquer ato judicial (artigo 1º, § 1º); 2) a consensualidade e a primazia do melhor interesse da administração da justiça (artigo 2º, caput); 3) a informalidade dos atos de cooperação, desde que observadas a fundamentação, documentação e publicização (artigo 3º, § 2º); 4) a utilização do auxílio direto, dos atos conjuntos e dos atos concertados para operacionalizar a cooperação (artigo 4º); 5) o ajuste do ato de cooperação diretamente entre os órgãos cooperantes (artigo 8º).

Constata-se, portanto, que há farta base normativa para a prática de atos de cooperação judiciária no STF. No caso em questão, inclusive, foram observadas todas as diretrizes traçadas pela legislação de regência, produzindo-se ato conjunto decisório para a uniformização de entendimentos em julgamento por órgão colegiado, medida que contribui sobremaneira para a eficiência da atividade jurisdicional, evitando eventual dispersão de votos que poderia dificultar a formação do consenso da maioria dos julgadores e a proclamação do resultado do julgamento.

Em suma, conclui-se que o voto conjunto proferido no julgamento da ADI 7.222 não só é plenamente harmônico com o arcabouço processual vigente, como consiste em inovação que surge para aprimorar a prestação jurisdicional, devendo servir de exemplo para outros órgãos colegiados do Poder Judiciário brasileiro.

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  • é juiz de direito do TJ-RS e juiz auxiliar da Presidência do STF. Ex-conselheiro do CNJ, onde presidiu a Rede Nacional de Cooperação Judiciária e relatou a Resolução 350/2020. Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra.

  • é juiz do Trabalho (TRT-14). Juiz auxiliar da Presidência do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Coordenador do Programa Justiça 4.0. Especialista em Direito e Processo do Trabalho, Gestão Pública e Gestão de Projetos.

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