Opinião

Royalties de petróleo e gás natural: distorções no federalismo fiscal brasileiro

Autor

  • Ana Carolina Ali Garcia

    é procuradora-geral do Estado de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direito Tributário pelo Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários) e Master of Business Administration em Parcerias Público-Privadas e Concessões pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp). Designada Consultora Legislativa do Estado de MS (2018-2022) e procuradora-chefe da Coordenadoria Jurídica da Secretaria de Estado de Governo e Gestão Estratégica (2016-2018) procuradora do Estado chefe da Coordenadoria Jurídica da Secretaria de Estado de Educação (2015-2016) e procuradora-chefe da Procuradoria de Assessoria ao Gabinete da PGE (2008-2014).

16 de junho de 2023, 15h18

A expectativa de julgamento pelo STF (Supremo Tribunal Federal) das ações que discutem as regras de rateio dos royalties ganhou novo contorno com a decisão da ministra Cármen Lúcia, datada do último dia 12 de junho, que, invocando "o alto significado do tema e a imprescindibilidade do diálogo e da cooperação institucionais para a solução dos conflitos federativos" encaminhou todas as ações diretas de inconstitucionalidade (nºs 4.916; 4.917; 4.918; 4.920; 5.038 e 5.621) ao Centro de Soluções Alternativas de Litígios da Suprema Corte para a tentativa de "solução dialogada da controvérsia".

O que se verifica, desde a edição da Lei n° 12.734/2012 e da sua não aplicação, por força da cautelar que perdura há dez anos, é uma distorção no federalismo fiscal brasileiro.

Reprodução
A discussão acerca da constitucionalidade de dispositivos da Lei nº 12.734/2012 foi levada ao STF, por meio de ações diretas de inconstitucionalidade, tendo a ministra Cármen Lúcia, em decisão monocrática datada de 18 de março de 2013, concedido a cautelar nos autos da ADI nº 4.917/MC para suspender os dispositivos impugnados da referida lei, sob, em síntese, os seguintes fundamentos:

– o legislador ordinário desconsiderou a natureza indenizatória dos royalties ao subtrair dos entes produtores ou confrontantes valores compensatórios que lhes seriam devidos pelos danos suportados pela exploração do petróleo;
– 
a vinculação dos royalties aos chamados entes produtores ou confrontantes acomoda-se ao regime tributário do ICMS nas operações interestaduais com petróleo e derivados, já que o titular do tributo é o Estado de destino e não de origem do produto; e
– 
a aplicação imediata das novas regras de rateio aos contratos de concessão vigentes afronta a segurança jurídica.

À União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios é assegurada, nos termos da lei, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração (artigo 20, §1º, CF).

O §1º do artigo 20 da CF é o dispositivo central objeto do debate e exige uma leitura sistemática com o caput e os incisos V, VI e IX do referido dispositivo legal, bem como com o §1º do artigo 176 e o inciso I do art. 177, todos da CF, para se extrair a seguinte norma: se a União explorar petróleo e gás natural deve partilhar com os demais entes da federação as receitas auferidas com essa atividade econômica, por meio da participação no resultado da exploração, ou deve compensá-los financeiramente por essa exploração, nos termos da lei.

Partindo da leitura sistemática proposta, concluímos que o petróleo e o gás natural, enquanto espécies de recursos minerais, são bens da União e que, havendo a exploração dessas riquezas, direta ou indiretamente, deve a União partilhar com os demais entes da federação uma parcela das receitas auferidas, por meio da "participação no resultado da exploração", ou deve "compensá-los financeiramente" pelos impactos acarretados pela atividade, nos termos da lei.

O constituinte, no citado §1º do artigo 20, valeu-se do conectivo "ou" na função de disjuntor includente, admitindo a instituição de uma ou de ambas as obrigações simultaneamente, nos termos do que vier a dispor a lei ordinária.

Participação e compensação financeira são obrigações com naturezas jurídicas distintas e decorrentes de fatos causais diversos, de maneira que uma não substitui tampouco exclui o direito ao recebimento da outra.

Dos textos constitucionais invocados, extraímos a existência de 03 (três) categorias de relações obrigacionais. A primeira, de natureza contratual, entre a União, titular dos recursos minerais, e o concessionário que exercerá a atividade de exploração; e as outras, entre a União, titular dos recursos minerais, e os Estados, Distrito Federal e Municípios, sob duas espécies: participação e compensação financeira.

Destrinchando essas duas modalidades obrigacionais, construímos suas normas de incidência: (i) participação: se a União explorar petróleo e gás natural e auferir renda deve partilhar o resultado dessa exploração com os estados, Distrito Federal e municípios, por meio de uma divisão de lucros (distribuição de riquezas nacionais); e (ii) compensação financeira: se a União explorar petróleo e gás natural e onerar outros entes federativos com essa exploração, causando-lhes danos, deve compensá-los (indenização).

Participação no resultado da exploração não possui qualquer nexo de causalidade com danos advindos da atividade econômica; ao revés, os impactos econômicos e socioambientais causados no local ou na região afetada pela atividade são elementos que devem compor, necessariamente, apenas, a hipótese de incidência da norma de compensação financeira.

Quanto aos legitimados ao recebimento da compensação financeira, restringimo-nos, fundamentalmente, aos entes federados que tenham sofrido danos (causalidade e proporcionalidade).

Já na sujeição ativa da norma de participação, estão inseridos todos os entes federados, não estando o legislador atrelado a nenhuma condicionante — especialmente aquela relacionada à posição geográfica do ente em relação ao local da exploração — quando visa a disciplinar mera partilha da contraprestação exigida pela exploração lucrativa do patrimônio público federal.

A obrigação pecuniária exigida pela exploração de petróleo e gás natural é chamada, pelo legislador ordinário, de royalties, conceituados legalmente como sendo compensação financeira (§1º do artigo 42 da Lei nº 12.351/2010, na redação dada pela Lei Federal nº 12.734/2012).

Como se sabe, para a definição da natureza da obrigação é irrelevante a denominação conferida. Sobre o tema, julgado da Corte Suprema:

"Cuidando-se de obrigação legal, de fonte constitucional, ainda que não seja tributo, é dado transplantar, mutatis mutandis para identificar a natureza da CFEM, a regra de hermenêutica do art. 4º, I, CTN, que adverte da irrelevância da denominação dada à exação". (STF. RE nº 228.800-5/DF, 1ª Turma, relator ministro Sepúlveda Pertence)

Haverá norma jurídica onde houver a seguinte mensagem: se o antecedente, então, deve-ser o consequente. A partir da estruturação lógica da obrigação com dados positivos, isto é, com os elementos da lei, torna-se possível identificar sua natureza jurídica, especialmente com a conjugação de dois destes elementos: o critério material e a base de cálculo.

O cálculo dos royalties, pela exploração de petróleo e gás natural, desde a sua origem, tem sido efetuado, por determinação legal, com base no volume total da produção, sem qualquer relação com a ocorrência de dano (artigo 47 da Lei nº 9.478/1997 e artigo 42 da Lei nº 12.351/2010, na redação dada pela Lei nº 12.734/2012).

Levando em conta a regra civilista de que "a indenização mede-se pela extensão do dano" (caput do artigo 944 do Código Civil), para que os royalties ostentassem natureza indenizatória necessário seria que a lei ordinária tivesse estabelecido uma fórmula de cálculo proporcional à extensão dos danos, reveladora dos impactos trazidos pela atividade, na seara social, econômica e ambiental, e não fixado percentuais incidentes sobre o volume da produção, como o fez.

O STF enfrentou, com propriedade, questão similar ao analisar a natureza da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) e decidir que a sua incidência sobre o faturamento líquido da venda do produto mineral após a última fase de beneficiamento desnatura-a como compensação e a qualifica como participação no resultado da exploração, sendo de somenos importância a denominação dada. Vejamos trecho do voto do ministro Sepúlveda Pertence:

"Na verdade — na alternativa que lhe confiara a Lei fundamental — o que a Lei 7.990-1989 instituiu, ao estabelecer no artigo 6º que 'a compensação financeira pela exploração de recursos minerais, para fins de aproveitamento econômico, será de 3% sobre o valor do faturamento líquido resultante da venda do produto mineral' não foi verdadeira compensação financeira: foi sim, genuína ‘participação sobre o resultado da exploração' (…)
Nada importa que – tendo-a instituído como verdadeira 'participação nos resultados' da exploração mineral, a lei lhe haja emprestado a denominação de 'compensação financeira' pela mesma exploração — outro termo da alternativa exposta pelo artigo 20, §1º, da Constituição (…)". (STF. RE nº 228.800-5/DF, 1ª Turma) (grifamos)

O STF, no julgado citado, registra, com acerto, que "impressiona a alegação de incompatibilidade com o art. 20, §1º, CF, da eventual destinação da receita a Estado ou Município diverso do local da extração do minério" e deixa claro "não parecer unívoca essa interpretação da lei".

Esboçamos raciocínio comparativo entre os royalties e a CFEM para reforçar a conclusão de que, uma vez que aqueles são calculados, segundo a lei ordinária, sobre o volume total da produção, grandeza essa desatrelada aos danos trazidos pela exploração, revestem a natureza de participação e não de compensação financeira.

As linhas gerais de rateio dos royalties trazidas pela Lei nº 12.734/2012 referendam sua natureza de participação no resultado da exploração e, como tal, legitimam o rateio entre todos os entes da federação, independentemente de suas posições geográficas em relação ao local da produção, sem representar afronta ao texto constitucional.

Remanesce a possibilidade de o legislador ordinário vir a instituir outra obrigação, com natureza de compensação financeira pelo aproveitamento de petróleo e gás natural, visando à indenização dos entes impactados pela atividade, mediante a fixação na lei de um critério quantitativo da obrigação revelador da extensão dos danos experimentados.

O STF, nos autos da ADI nº 3.3786/2008, já reconheceu a necessidade de haver uma relação de causalidade e de proporcionalidade entre o valor da compensação ambiental e o impacto ambiental do empreendimento.

Declarou a Corte a inconstitucionalidade parcial do §1º do artigo 36 da Lei nº 9.985/2000, para afastar a alíquota mínima prevista e a base de cálculo vinculada ao montante de investimento, por não refletirem a extensão do dano e descaracterizarem a natureza indenizatória do instituto.

A almejada conciliação da exploração de petróleo e gás natural com a conservação ambiental possui instrumentos de controle específicos que servem para prevenir ou mitigar os danos decorrentes da atividade: compensação ambiental e a reparação in natura. Logo, não estão os danos ambientais à margem de indenização.

Com essa linha de pensamento, refutam-se, com toda vênia, um a um, os argumentos que embasam a cautelar que suspendeu os dispositivos da Lei nº 12.734/2012.

Primeiro, porque a tese de que teria o legislador desconsiderado a natureza indenizatória dos royalties ao subtrair dos entes produtores valores compensatórios pelos danos que a atividade lhes acarreta não se sustenta diante da conclusão de que os royalties, nos termos da legislação, revestem a natureza de participação no resultado da exploração e não de compensação financeira. Sua entrega aos entes subnacionais não está vinculada aos impactos da atividade, retratando partilha dos resultados da exploração de uma riqueza nacional, segundo critérios da lei ordinária.

Ao atestar a natureza indenizatória dos royalties, sem olhar para sua base de cálculo, a cautelar revela decisão conflitante, mutatis mutandis, com precedentes jurisprudenciais daquela Corte.

A uma, com a decisão no bojo do RE nº 228.800-5/DF que qualificou a CFEM como participação, independentemente da denominação legal, exatamente pelo cálculo do seu valor estar atrelado à grandeza alheia aos danos trazidos pela atividade.

E, a duas, com o acórdão prolatado na ADI nº 3.378-6/DF que reconheceu a necessidade de haver uma relação de causalidade e de proporcionalidade entre o valor da compensação ambiental e o impacto ambiental do empreendimento, afastando a alíquota mínima e a base de cálculo vinculada ao montante de investimento, sob o fundamento de que esse critério quantitativo não reflete a extensão do dano.

Nesse cenário só vislumbramos dois caminhos para a Corte na análise das legislações que tratam dos royalties:

  1. reconhecer que a obrigação não tem natureza indenizatória porque o cálculo do seu valor está atrelado à grandeza alheia aos danos trazidos pela atividade, sem, com isso, declarar a inconstitucionalidade da lei, eis que passível de subsunção da obrigação na alternativa prevista no texto constitucional: participação, independentemente do conceito legal; ou
  2. afastar, por vício de inconstitucionalidade, a base de cálculo eleita pelo legislador, por não refletir a extensão dos danos acarretados pela atividade e, assim, desnaturar o perfil indenizatório almejado, exigindo-se a adequação legal do critério quantitativo para a incidência da norma da compensação financeira.

Na sequência, o fundamento da cautelar em voga no sentido de que a aplicação imediata das novas regras de rateio dos royalties aos contratos de concessão vigentes causa insegurança jurídica restou esvaziado diante da diferenciação das três categorias de relações obrigacionais derivadas do texto constitucional, hábil a demonstrar que a repactuação da distribuição dos royalties entre, de um lado a União, e, de outro, os demais entes da federação, em nada atinge aquela relação contratual inaugural, firmada entre a União e o concessionário, da qual não participam os demais entes políticos, eis que inserida no campo das decisões políticas da União.

Por fim, a pretensão de vincular a norma constitucional de incidência do ICMS nas operações interestaduais envolvendo petróleo e gás natural com o critério de distribuição dos royalties, sob o pretexto de trazer um suposto equilíbrio na distribuição de receitas de naturezas diversas, não encontra autorização constitucional, tampouco o Judiciário está legitimado a afastar uma garantia constitucional dos entes políticos – participação ou compensação financeira pela exploração de petróleo e gás natural — pelo simples fato de serem esses entes detentores de privilégios constitucionais distintos.

Os royalties enquadram-se como participação no resultado da exploração, independentemente do conceito legal atribuído, não materializando incompatibilidade com o artigo 20, §1º, da CF, sua destinação aos entes subnacionais independentemente de suas posições geográficas em relação ao local da produção, como o fez a Lei nº 12.734/2012.

Um deslinde para o tema se aproxima, haja vista a decisão chamando os atores para o diálogo e a cooperação institucional visando à solução dos conflitos federativos em ambiente próprio voltado à solução dialogada da controvérsia. O rito proposto reacende a esperança de serem amenizados os deletérios efeitos gerados pela cautelar ao longo da última década, com prejuízos não apenas a um ou outro Estado, mas ao federalismo fiscal como um todo.

Autores

  • é procuradora-geral do Estado de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direito Tributário pelo Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários) e Master of Business Administration em Parcerias Público-Privadas e Concessões pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp). Designada Consultora Legislativa do Estado de MS (2018-2022) e procuradora-chefe da Coordenadoria Jurídica da Secretaria de Estado de Governo e Gestão Estratégica (2016-2018), procuradora do Estado chefe da Coordenadoria Jurídica da Secretaria de Estado de Educação (2015-2016) e procuradora-chefe da Procuradoria de Assessoria ao Gabinete da PGE (2008-2014).

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