Opinião

Não-discriminação de pessoas presas e em tratamento de transtornos mentais

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15 de junho de 2023, 16h13

A adoção recente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de novas diretrizes sobre o tratamento de pessoas com transtornos mentais e deficiências psicossociais em situação de privação de liberdade, por meio da publicação da Resolução CNJ nº 487/23, abre caminho para uma etapa essencial na implementação da reforma psiquiátrica no Brasil. Em jogo, está o respeito ao princípio de não discriminação de pessoas com transtornos mentais e deficiências psicossociais privadas de liberdade no sistema penitenciário.

Adotada em 2001, a Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216) representou um giro de perspectiva no campo da saúde mental no Brasil, transformando os princípios norteadores do tratamento de pessoas com deficiência psicossocial e a destinação de equipamentos públicos para o seu atendimento em saúde.

O arcabouço da Lei nº 10.216/01 veio para colocar em xeque o uso acrítico e regular dos hospitais psiquiátricos, dando lugar à condução de um tratamento humanizado, feito em ambiente terapêutico e pelos meios menos invasivos possíveis [1]; inserido no meio social, sendo a pessoa tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental [2]; e garantindo-se "acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades" [3]. Conforme a Reforma Psiquiátrica, apenas excepcional e temporariamente os pacientes devem ser mantidos hospitalizados, sendo vedada a internação em instituições com características asilares [4]. Mesmo nos casos de internação hospitalar, o tratamento deve visar, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio.

A guinada representada pela reforma psiquiátrica se contrapôs e buscou soluções para superar um contexto histórico em que pacientes psiquiátricos eram destinados para instituições asilares de longa permanência, as quais se tornaram conhecidas pelas condições de abandono, violência e estigmatização daqueles que viviam dentro de seus muros.

Na Organização das Nações Unidas (ONU), a aprovação do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes [5], em 2007, trouxe as instituições asilares para o centro das preocupações de iniciativas voltadas à prevenção à tortura. Pela redação do artigo 4.2 do Protocolo, a internação de pacientes em clínicas, hospitais e instituições afins passaram a estar englobadas na definição de medidas de privação de liberdade, dado que as pessoas que se encontram nesses "centros de detenção ou aprisionamento" por força de ordem judicial, administrativa ou de outra autoridade não têm permissão para ausentar-se por sua própria vontade.

Em 2008 foi a vez da Organização dos Estados Americanos (OEA) adotar diretrizes a respeito, por meio dos Princípios e Boas Práticas para a Proteção das Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas. O documento corrobora a preocupação em relação às pessoas privadas de liberdade, indicando que as medidas privativas de liberdade devem ser aplicadas pelo menor tempo possível e limitadas a casos estritamente excepcionais[6]. Mais detidamente sobre as "medidas especiais para as pessoas com deficiência menta", o Princípio 3 frisa a exigência de que se obtenha a gradual desinstitucionalização dessas pessoas, promovendo a "organização de serviços alternativos que possibilitem o cumprimento de objetivos compatíveis com um sistema de saúde e uma atenção psiquiátrica integral, contínua, preventiva, participativa e comunitária, desse modo evitando a privação desnecessária da liberdade nos estabelecimentos hospitalares ou de outra natureza".

O modelo proposto pela Lei nº 10.216/01 foi alvo de resistência por alguns setores da sociedade brasileira. Ainda assim, nos últimos 20 anos houve uma adoção gradual por parte do Estado dos preceitos antimanicomiais nela elencados, permitindo que a reforma psiquiátrica passasse a ser instrumento de gestão pública no campo da saúde e servisse de base para formar uma ampla e capilarizada Rede de Atenção Psicossocial (Raps) — em que pese as fragilidades inerentes ao serviço público no país.

A mudança de paradigma tem permitido ao Brasil alinhar-se ao que propõem os organismos internacionais de proteção dos direitos humanos, ainda que a realidade das pessoas com deficiência psicossocial em clínicas, comunidades terapêuticas, hospitais, presídios e hospitais de custódia seja frequentemente alvo de preocupação externada por esses organismos internacionais, como a Relatoria Especial Contra a Tortura [7], o Subcomitê de Prevenção à Tortura [8] e a Corte Interamericana de Direitos Humanos [9].

A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência [10], por sua vez, está transversalmente direcionada para a necessidade de enfrentar tal contexto de violação de direitos e discriminação históricos, trazendo um novo enfoque para reconhecer as pessoas com deficiência psicossocial como sujeitos plenos de direitos, ao invés de "objetos" de tratamento. A convenção sublinha a proibição da tortura e dos maus-tratos contra as pessoas com deficiência [11], proíbe a privação de liberdade baseada na deficiência [12] e consagra o direito das pessoas com deficiência de viverem de maneira independente na comunidade [13] [14].

No percurso de implementação da Lei nº 10.216/01 algumas iniciativas lograram paulatinamente incorporar determinados preceitos da Reforma no bojo do processo e da execução penal. A Portaria nº 94/2014 do Ministério da Saúde, por exemplo, indicou que as pessoas com deficiência psicossocial em conflito com a lei fossem atendidas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), instituindo o serviço de avaliação e acompanhamento de medidas terapêuticas.

Em 2010, como órgão responsável pelo aprimoramento da política criminal, o CNPCP recomendou a adoção da política antimanicomial na atenção de pacientes judiciários e sob execução de medida de segurança, conforme disposto no artigo 1º da Resolução CNPCP nº 4/2010. Em seu artigo 6º, a Resolução indica ao Poder Executivo concluir no prazo de 10 anos, em parceria com o Poder Judiciário, "a substituição do modelo manicomial de cumprimento de medida de segurança para o modelo antimanicomial, valendo-se do programa específico de atenção ao paciente judiciário".

Treze anos depois, vemos o Judiciário dando um passo significativo na direção do que preconizam resoluções do CNPCP, a Lei nº 10.216/01 e os parâmetros internacionais no tema. A Resolução CNJ nº 487/2023 sedimenta o percurso da reforma psiquiátrica no seio do sistema de justiça criminal, cuja operacionalização ainda refutava aspectos essenciais do giro de perspectiva enunciado nos diversos documentos mencionados acima. Ao delinear a Política Antimanicomial do Poder Judiciário, o CNJ adere à vedação da internação asilar de longa permanência para as pessoas com transtornos mentais ou qualquer forma de deficiência psicossocial em conflito com a lei, criando instrumentos para que a autoridade judicial possa amparar e fazer cumprir suas decisões de forma alinhada aos paradigmas de tratamento em saúde mental adotados pelo SUS e sua Raps. Ao mesmo tempo, proporciona o gradual fechamento das instituições asilares ainda presentes no seio das secretarias de administração penitenciária, como os HCTPs.

A atuação do Poder Judiciário para que pessoas com transtorno mental em conflito com a lei não sejam mantidas em enfermarias e áreas de isolamento de unidades prisionais, ou submetidas à internação em instituições como os HCTPs, deve ser recebida como um passo decisivo para que os preceitos da Reforma Psiquiátrica alcancem aqueles pacientes que se encontram em agravada situação de vulnerabilidade e sob risco de sofrer torturas ou maus-tratos no Brasil, que são as pessoas com transtornos mentais ou deficiência psicossocial em situação de privação de liberdade.

Dentre os fluxos indicados, a Resolução nº 487/2023 acerta, por exemplo, ao recomendar a avaliação judicial da adequação da prisão em face da necessidade de atenção em saúde, assegurando o contraditório, a escuta técnica de equipe multidisciplinar e possibilitando à pessoa presa acessar a Raps disponível no SUS [15]; ao delimitar a imposição de medida de segurança ou internação provisória para hipóteses absolutamente excepcionais e condicionadas à prescrição por equipe de saúde [16]; ao vincular tal internação em leito de saúde mental em Hospital Geral ou outro equipamento de saúde referenciado do Centro de Atenção Psicossocial da Raps [17]; ao orientar pelo fechamento dos HCTPs e outros estabelecimentos, alas ou instituições congêneres de custódia e tratamento psiquiátrico [18]; e ao apontar para a revisão a cada seis meses dos processos judiciais relativos às pessoas com transtornos mentais ou deficiência psicossocial a fim de se avaliar a possibilidade de extinção da medida em curso, a progressão para tratamento ambulatorial em meio aberto ou transferência para estabelecimento de saúde adequado, sob o paradigma da desinstitucionalização [19].

As orientações do CNJ logram preencher o vácuo de implementação das normativas identificadas durante duas décadas no sistema de justiça criminal após a adoção da Reforma Psiquiátrica. A Resolução CNJ nº 487/23 dá, assim, efetividade ao que estabelece a legislação doméstica e os tratados internacionais, oferecendo subsídios concretos à autoridade judicial para que possa dar cumprimento ao direito de que pessoas com transtorno mental ou deficiência psicossocial obtenham tratamento de saúde não-discriminatório junto ao SUS durante todo o processo penal e ampliando o alcance do princípio da desinstitucionalização. Ao privilegiar o tratamento desses pacientes à luz do que dispõe a Lei n° 10.216/01, o Estado brasileiro dá também um passo significativo na prevenção da tortura e dos maus-tratos, fechando as portas de espaços caraterizados por uma dupla dimensão de estigma e opacidade.

 


[1] Artigo 2º, parágrafo único, VIII, da Lei nº 10.216/01.

[2] Artigo 2º, parágrafo único, IX, da Lei nº 10.216/01.

[3] Artigo 2º, parágrafo único, I, da Lei nº 10.216/01.

[4] Artigo 4º, §3º, da Lei nº 10.216/01.

[5] Promulgado pelo Decreto nº 6.085, de 19 de abril de 2007.

[6] Princípio III.1.

[7] ONU. Report of the Special Rapporteur on torture and other cruel, inhuman or degrading treatment or punishment on his mission to Brazil, 29 January 2016, UN Doc No. A/HRC/31/57/Add.4, para. 139.

[8] ONU. Informe sobre la visita al Brasil del Subcomité para la Prevención de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, 5 de julio de 2012, UN Doc No. CAT/OP/BRA/1, para. 152.

[9] CORTE IDH. Caso Ximenes Lopes versus Brasil. Sentença de 4 de julho de 2006, Mérito, Reparações e Custas.

[10] Promulgada pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009.

[11] Art. 15 da Convenção.

[12] Artigo 14 da Convenção.

[13] Artigo 19 da Convenção.

[14] APT. Simposia Jean-Jaques Gautier para los MNP 2016: El monitoreo de las instituciones psiquiátricas – Informe final (Genebra: Associação para a Prevenção da Tortura, 2016), p. 13.

[15] Artigo 15, parágrafo único, da Resolução nº 487/2023.

[16] Artigo 13, da Resolução nº 487/2023.

[17] Artigo 13, parágrafo único, da Resolução nº 487/2023.

[18] Artigo 18, da Resolução nº 487/2023.

[19] Artigo 16, da Resolução nº 487/2023.

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